KANTAN
Zeami Motokiyo
(?) (1363-1443)
FONTE: Taiheiki, vol. XXV – “O sonho enquanto se cozinhava o painço”, que provém, com inúmeras modificações, do “Chenchung-chi” ou “Crônicas de Travesseiro”, de Shen Chi-chi, autor chinês do século VIII.
KANTAN pertence a uma subdivisão chamada “yugaku-mono”, ou “peças joviais” do Quarto Grupo, que recebe seu nome da danca “gaku” (“jovial”), que contém. Esta dança é inserida num enredo muito elaborado e cheio de contrastes.
O herói é um jovem chines chamado Lu-sheng (Rosei), que nasceu e vive numa parte afastada de Chu (Shoku), hoje Província de Szechwan. Ele se encontra dividido entre dois caminhos: a vida segundo Buda, ou ao mundo e suas promessas de fama e opulência. Ouve falar de um monje e decide procurá-lo para obter iluminação. Ele põe-se a caminho desta sua longa viagem e chega a Hantan* (Kantan), onde se aloja numa estalagem para passar a noite.
Ali existe um travesseiro mágico trazido por um velho taoista versado em bruxaria e, conta a lenda, quem dormir sobre o travesseiro será iluminado através de um sonho. O estalajadeiro, ao saber do objetivo da viagem de Rosei, entrega-lhe o travesseiro e ele dorme, enquanto sua refeição está sendo preparada. Rosei sonha que foi convidado a subir ao trono do imperador, e ele goza das boas coisas da vida durante cinquenta anos.
Subitamente seu sonho é interrompido pelo aviso de que a refeição está pronta. Ao acordar, ele percebe como é onirica a felicidade do mundo e como a única vida digna de ser vivida é aquela que renuncia à carne e que se dedica ao espírito de acordo com Buda. Iluminado, ele volta para casa.
Esta narrativa é dramatizada numa peça de três partes, cada uma refletindo um estado de espírito diferente do herói. Na Primeira Parte, ele está indeciso e disperso, fortemente movido tanto pela ambição quanto pela religião. Ele surge no palco vestindo uma estola e carregando um rosário, mas, de resto, suas vestes são as de um homem normal. Esta inconsistência no vestir é representativa da sua dúvida entre a vida mundana e a espiritual. A Segunda Parte se dá num mundo de sonhos. O herói atingiu o topo da fama e do poder. A “dança jovial” é executada neste momento. A Terceira Parte exibe-o despertando de seu sonho como alguém saturado de prazeres humanos. Percebendo o vazio do mundo que acabou de conhecer, ele finalmente decide seguir o caminho da fé religiosa.
* Cidade na Província de Hopei, China, outrora capital da dinastia Chou durante as Guerras Civis (403-221 AC).
Uma máscara especial – chamada “homem de Kantan” – é usada pelo herói. Ela representa o rosto de um jovem cândido e é feita de modo a permitir que se expressem a melancolia, jovialidade ou serenidade da mente, de acordo com as circunstâncias.
Um estrado, com bambus em cada um dos cantos a sustentarem um telhado simples, é colocado próximo ao assento do “waki”. Ele representa o quarto de dormir na estalagem, nas Primeira e Terceira Partes; na cena do sonho, ele é usado para sugerir o interior de um palácio imperial. A dança do herói / imperador se inicia no estrado; durante sua sequência, o ator vai para o chão, que passa a ser entendido como o salão de banquetes no palacio.
Ao final da dança, quando a cena se desloca do palácio para o quarto de dormir, o ator tem de atirar-se rapidamente no estrado e retomar a postura de quando dormia, na Primeira Parte.
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A VIDA É SONHO (Kantan)
de
Yukio Mishima
Traduzida do inglês
por
Flavio de Campos
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Personagens:
Jiro.
Kiku.
A Beleza.
Dançarinas.
Cavalheiros.
Secretário Particular.
Médico Ilustre.
Médicos.
Funcionária.
(ANTES DA CORTINA SE ABRIR.)
Kiku: (SUA VOZ VEM DAS COXIAS.) Que maravilha você ter vindo!
Jiro: (TAMBÉM DAS COXIAS.) Faz dez anos, não é, Kiku?
Kiku: Você cresceu tanto… Ah, eu carrego.
Jiro: Não, pode deixar. Tudo bem.
Kiku: Por favor, me dá. Eu aguento. E só u’a mala.
(KIKU ENTRA COM A MALA. ELA É UMA MULHER DE MAIS OU MENOS QUARENTA ANOS. JIRO A ACOMPANHA. ELE TEM DEZOITO ANOS; VESTE UM TERNO TRESPASSADO.)
Jiro: (OLHANDO EM VOLTA.) Ainda está escuro como breu.
Kiku: Vai clarear já, já. Os dias são longos nessa época do ano. Por favor, entre.
(KIKU SE AJOELHA E TOCA A CORTINA COM A MÃO: ELA SE ABRE DIANTE DOS DOIS. ELES ESTÃO DE COSTAS PARA A PLATEIA. NO FUNDO, AO CENTRO, ESTA UM “SHOJI”, UMA PORTA DUPLA DE PAPEL, TIPICAMENTE JAPONESA. MUITOS PÁSSAROS, FLORES E OUTROS ENFEITES DE PAPEL RECORTADO PENDEM DO TETO.)
Jiro: Que bonito! Esta arrumado exatamente como o meu quarto, quando eu era menino, não e?
Kiku: E sim. Eu não quero nunca me esquecer daquele quarto. Foi lá que eu criei você. Esse aqui é copia daquele na sua casa em Toquio; sempre quis que ele ficasse igualzinho.
Jiro: Aquele quarto pegou fogo, junto com a casa.
Kiku: Eu sei. Mas aqui não mudou nada.
Jiro: (BATENDO NOS ENFEITES DE PAPEL, FAZENDO-OS GIRAR.) Parece até que eu voltei para aquela casa em Toquio. Quando foi que você arrumou o quarto desse jeito?
Kiku: Faz dez anos. Desde quando eu deixei de trabalhar para a sua familia. Os enfeites, todo mes eu troco por novos.
Jiro: E incrivel como as mulheres se agarram ao passado. E incrivel…
Kiku: Pode implicar a vontade! Você tinha cinco anos e ja falava assim.
Jiro: (SENTANDO-SE NO CHAO.) Blocos de armar! Deve ser o jogo que os meus pais lhe deram como lembranca minha. Meus blocos de armar! Quanto tempo faz que eu brincava com eles? E, esse carrinho passa por baixo da ponte.
Kiku: Ela é baixa um tiquinho de nada. Você sempre levantava a ponte para o carro passar.
Jiro: O carro enguicou.
Kiku: O que?
Jiro: Quero dizer, o carro de verdade.
Kiku: Onde?
Jiro: No meio do caminho. Eu peguei o ultimo onibus, ontem a noite, o das oito. Na metade do caminho para ca, ele enguicou, la na encruzilhada.
Kiku: Lá sempre acontece alguma coisa.
Jiro: A gente esperou, esperou e nada de vir alguem para consertar. Cobri a cabeca com o meu casaco e tirei um cochilo dentro do onibus. Quando eu acordei, passava das tres. Ai’ eu vim andando.
Kiku: Sozinho, pela estrada, a noite?
Jiro: Impossivel alguem se perder naquela estrada. Alem do mais estava claro, as estrelas brilhavam.
Kiku: (INDO SENTAR-SE NOUTRO LUGAR.) Você sabe, pressentimento acaba acontecendo. No meio da noite, eu acordei de repente e me vesti. Eu estava tão agitada, eu sabia que não ia conseguir pegar no sono de novo.
Jiro: Você achou que eu estava vindo?
Kiku: Mas claro! Claro que eu ia ver você de novo!
Jiro: Você achou que eu ia viajar ate aqui so para fazer uma visita?
Kiku: Atras de dinheiro é que ninguem ia vir ate esse fim de mundo… Mas mesmo que seja por dinheiro, eu estou feliz. Tanto faz, eu estou muito feliz so em ver você.
Jiro: Faco ideia. Isso prova, eu acho, que, para mim, as coisas chegaram ao fim. Senão eu nunca teria resolvido vir para cá. Minha vida chegou ao fim.
Kiku: Que é isso?! Você so’ tem dezoito anos! Como é que a vida pode acabar aos dezoito anos? Você não está exagerando?
Jiro: Posso ter so’ dezoito anos, mas sou lucido o bastante para saber quando a minha vida chega ao fim.
Kiku: Mas você nem está ficando careca! Nem corcunda! Você não tem nenhuma ruga no rosto!
Jiro: Você é que não consegue ver. Meu cabelo pode parecer preto, mas ele está é todo branco; meus dentes cairam e minha corcunda vai até os joelhos.
Kiku: Eu, eu não estou entendendo nada.
Jiro: é, eu sei. (PAUSA)
Kiku: Patrãozinho… será que… bem… você… uma moca por ai’, quem sabe?
Jiro: Você está perguntando se eu estou apaixonado?
Kiku: E. Foi isso que aconteceu com você?
Jiro: (BRUSCAMENTE) Eu nunca amei ninguem, nem nunca ninguem me amou.
Kiku: Então não é caso de amor não correspondido?
Jiro: Não seja boba, Kiku. “Amor não correspondido”… Que criancice.
Kiku: (ARREGALANDO OS OLHOS) Mas, mas então o que é? Você sofreu a traição de um amigo?
Jiro: Amigo? Nunca tive amigo.
Kiku: Você passou nos exames?
Jiro: Larguei a escola faz muito tempo.
Kiku: Então você foi maltratado pelo mundo…
Jiro: Fiquei em casa, à toa.
Kiku: Mas então por que a sua vida acabou? Por que, se ela nem comecou?
Jiro: Ela acabou antes de ter comecado.
Kiku: Fico morta de medo quando você implica e faz troca de mim desse jeito.
Jiro: Velha boba, não fique ai’ se iludindo.
Kiku: Já sei. Você dormiu pouco essa noite e está com os nervos à flor da pele. Por que você não da uma deitadinha? Vamos, tire um bom cochilo enquanto Kiku prepara a sua comida. Você vai se sentir outro. Vou arrumar a cama.
Jiro: (FICA DE PE, ENTREABRE O “SHOJI”, OLHA PARA FORA.) Kiku, por que todas as plantas do jardim estão murchas? Não tem uma flor aberta. Esse jardim, que estranho, todo preto, todo quieto.
Kiku: (RETIRANDO A COLCHA DA CAMA.) Esta morto. As flores não desabrocham e as frutas não nascem. Esta assim já faz tempo.
Jiro: “Ja faz tempo” quer dizer desde que o seu marido foi embora?
Kiku: Então você já sabe.
Jiro: Não foi em livro que eu aprendi… Outro dia eu encontrei um homem-sanduiche vestido de Charles Chaplin. Era um solteirão e seus unicos prazeres na vida são tomar cafe e ir ao cinema. So’ precisa de cafe e cinema para ficar feliz. Ele me contou.
Kiku: Contou o que?
Jiro: O travesseiro, claro.
Kiku: (ELA RECUA, APAVORADA.) Ah…!
Jiro: Ele contou que você tem um travesseiro muito especial por aqui. Agora chega, não fique assim tão apavorada. Eu so’ estou lhe contando o que esse Chaplin me contou.
Kiku: Você não deve levar essas estorias a serio.
Jiro: Está bem. Mas você tem um travesseiro. Não sei como é que você conseguiu, mas o que importa é que ele está aqui… Certa vez – era verão, me disseram – aconteceu do seu marido achar o travesseiro e tirar um cochilo sobre ele. Na hora, você estava na cidade, fazendo compras. De noite, quando você voltou, não encontrou mais o seu marido. Para onde é que ele podia ter ido? Ele nunca mais voltou.
Kiku: Por favor, chega; chega, por favor. Eu não aguento falar dessas coisas.
Jiro: Os lirios, os cravos… Desde esse dia as flores do seu jardim nunca mais desabrocharam. Verdade, não é?
Kiku: é… é verdade… O travesseiro veio – isso faz muito tempo – de um lugar na China chamado Kantan. Ele passou de geração em geração ate que se tornou uma heranca da minha familia.
Jiro: Mas por que será que quando alguem dorme nesse travesseiro…?
Kiku: Eu não sei, não sei porque. Eu nunca tive coragem de dormir nele.
Jiro: Sabe o que o Chaplin me contou? Ele disse que se você dorme no travesseiro e sonha, o mundo perde o sentido, depois. Ai, quando você olha para o rosto da sua mulher, você não entende porque você viveu com essa mulher esse tempo todo. Ele disse que ai ele saiu de casa, na mesma hora.
(KIKU CHORA.)
Jiro: Desculpe, Kiku. Eu fiz você chorar? Desculpe.
Kiku: Não precisa pedir desculpas, patrãozinho. Você não tem culpa nenhuma.
Jiro: Mas, Kiku, você não usou o travesseiro nenhuma vez, esse tempo todo?
Kiku: Será que eu devo lhe contar tudo? Usei tres vezes.
Jiro: Tres vezes?
Kiku: Foi. Tem homem que é muito esquisito com mulher, você sabe. Depois que o meu marido me deixou, assim, apareceram uns homens, com propostas, investidas… E sempre aquele travesseiro vinha a calhar.
Jiro: Vinha a calhar? Quer dizer, eles desapareceram?
Kiku: Foi. Bem… é muito dificil explicar.
Jiro: Fala, por favor, fala!
Kiku: é dificil, mas não é nada que me de vergonha.
Jiro: Fala, Kiku. Por favor, fala.
(ELE TOCA-A NO JOELHO.)
Kiku: Quando você queria bolo – me lembro direitinho – você sacudia o meu joelho assim mesmo.
Jiro: Me conta! Não muda de assunto.
Kiku: Muito bem, vou contar. Eu consegui, gracas ao travesseiro, eu consegui me preservar.
Jiro: O que que você quer dizer com isso?
Kiku: E que, quando as coisas ficavam delicadas, eu oferecia o travesseiro. Podia ser o homem que fosse, não fazia diferenca. Ele ia dormir e quando abria os olhos tudo parecia absurdo para ele. Ele mal me olhava. Ai, patrãozinho, um por um, eles saiam por ai, para nunca mais serem vistos.
Jiro: O que que você quer dizer com “tudo parecia absurdo”?
Kiku: Mulheres, dinheiro, fama…
Jiro: Bem, então não vai ser novidade para mim: mulher é que nem bolha de sabão, dinheiro é que nem bolha de sabão, fama, a mesma coisa. E o mundo em que a gente vive é so o que a gente ve refletido nessas bolhas de sabão. Disso eu sei.
Kiku: So’ em palavras.
Jiro: Não, isso não é verdade. Eu vi atraves de todas as coisas. E por isso que a minha vida chegou ao fim. E é por isso, Kiku, que eu sou o unico homem que pode dormir nesse travesseiro sem correr risco algum.
Kiku: Não sei, não. Fico triste so em pensar que, depois de acordar, você pode olhar para essa Kiku como se ela fosse uma estranha, e depois desaparecer para nunca mais voltar.
Jiro: Não se preocupe. Eu não corro risco algum. Eu nunca vou ficar que nem aquele Chaplin.
Kiku: Chaplin?
Jiro: É, o seu marido.
Kiku: Como é que você sabe?
Jiro: Escuta: eu sei tudo.
(PAUSA)
Kiku: Então vamos combinar uma coisa, patrãozinho? Se o travesseiro fizer você sair por ai, você me leva junto?
Jiro: Mas se eu estou lhe dizendo, está tudo definido. O travesseiro não vai ter nenhum efeito sobre mim. Eu vim até aqui so’ para provar isso.
Kiku: Mesmo assim, eu olho para o seu rosto e vejo agua correndo para muito longe.
Jiro: De que que você está falando? Não, anda logo, o dia ja vai raiar, traz o travesseiro.
Kiku: Mas se pelo menos você prometesse que me levava junto…
Jiro: Mesmo que eu prometesse, não ia adiantar nada. Eu não vou embora.
Kiku: Mas e se, quem sabe, uma chance num milhão…
Jiro: Você está contando com essa chance num milhão, não esta? Você quer sair a procura do seu marido.
Kiku: (CONFUSA) Eu nunca ia fazer essa bob…/
Jiro: Ia, ia sim! Você está enrubescendo!
Kiku: Você não entende, patrãozinho. Doi muito esperar.
Jiro: E se você dormisse no travesseiro, so uma vez? Ai você podia se esquecer completamente do seu marido.
Kiku: Não tenho coragem. Tenho medo do que o travesseiro pode fazer.
Jiro: Se você tem medo, então não. Mas anda, traz o travesseiro!
Kiku: Sempre achei que eu ia ficar aqui, virar farelo, em paz, so isso. Mas, por causa de você, patrãozinho, minhas esperancas futeis…
Jiro: Uma chance num milhão, Kiku, so’ isso.
Kiku: Está bem. Vou buscar o travesseiro.
Jiro: Estou com sono, estou com muito sono. Anda logo, o dia já vai raiar.
Kiku: Está bem. Volto já.
(ELA SAI.)
Coro: O travesseiro é inocente,
A cabeca sobre ele, não.
Os passarinhos já não cantam,
As flores já não desabrocham,
Mas o travesseiro é inocente,
E o homem, não.
O travesseiro é inocente,
Os passarinhos, não.
O travesseiro é inocente,
As flores, não.
Nasce o dia, morre o dia,
As florestas verdes
Sussurram ao vento.
Inuteis,
Tremulam, tremulam…
E o lirio não desabrocha.
(DURANTE ESTE CANTO, JIRO TIRA O CASACO E DEITA-SE NA CAMA. KIKU ENTRA COM O TRAVESSEIRO E COLOCA-O SOB A CABECA DE JIRO. ELA SAI. AO FINAL DO CANTO CORAL, ENTRA A BELEZA, PELO CENTRO, AO FUNDO DO PALCO. ELA USA UMA MASCARA E UM VESTIDO DE GALA.)
Beleza: Jiro… Jiro…
Coro: Acorda… Acorda…
Beleza: Jiro… Jiro…
Coro: Acorda… Acorda…
Jiro: (ACORDANDO E SENTANDO-SE NA CAMA.) O que é? Quem é você? (COM ADMIRACAO.) é… você é uma beleza!
Beleza: Adivinha quem sou eu.
Jiro: (COM DESPRAZER) Ah, as mulheres! Antes de dizerem quem são, tem sempre que fazer um teatro.
Beleza: Você gosta de mulheres diretas, não é? Que coisa mais fora de moda! A mulher so’ é interessante – você sabe disso – se ela resiste.
Jiro: Não me amola com suas frases banais.
Beleza: Este é o meu nome: Banal.
Jiro: Nunca ouvi nome tão idiota.
Beleza: Mas, veja bem, se Banal vira nome proprio, então frase Banal deixa de ser frase banal.
Jiro: Não, virou trocadilho, agora!
Beleza: Oh! Suas mãos estão tremulas que nem borboletas! Deixa que eu pego para você.
(ELA LHE TOMA AS MAOS ENTRE AS SUAS.)
Beleza: Peguei! Se não fosse eu, suas mãos teriam voado.
Jiro: Você tem a imaginação solta.
Beleza: (SORRINDO MALICIOSAMENTE.) Eu so’ estou imitando você.
Jiro: O que que acontece quando uma mulher que conhece os homens imita um homem que não conhece as mulheres?
Beleza: Que coisa mais complicada você me pergunta, homenzinho!
Jiro: Você acaba ficando com uma mulher que não conhece homem.
Beleza: Se você vai ficar ai dizendo essas coisas e se achando muito esperto… Vamos tomar a bebida que Banal trouxe para você.
Jiro: Para mim, não. Não gosto de ficar bebado.
Beleza: Não existe bebida que não embebede.
Jiro: é por isso que eu não gosto de beber.
Beleza: Isso você diz agora, mas dentro de dez anos você vai ser um bebado acabado.
Jiro: Pode ser. Mas se daqui a dez anos eu vou virar um bebado, então por que que eu devo beber agora?
Beleza: Seus olhinhos ficam lindos quando você argumenta, olhos bebados nos seus proprios argumentos.
Jiro: Ah! Uma coisa medonha chispou dos seus olhos agora mesmo.
Beleza: O que foi?
Jiro: às vezes, dos olhos de uma mulher brota um lobo.
Beleza: Geralmente é um engano por parte do pastor.
Jiro: Não gosto de nada em você.
Beleza: Não faz diferenca, dentro de seis meses nos estamos casados.
Jiro: Não amo nada em você.
Beleza: Não faz diferenca, daqui a pouco nos estamos casados.
Jiro: Não tem pessoa no mundo que goste da poeira que se acumula nos bolsos das calcas, mas ela se acumula assim mesmo, e vai se acumulando pela vida a fora. As lavanderias não são la muito eficientes.
Beleza: (NUMA ENTONACAO CANTADA.) As lavanderias não são la muito eficientes… Depois, nos, em lua de mel.
Jiro: Gorjetas e mais gorjetas, paisagens e paisagens entre bocejos e mais bocejos, fotografias fora de foco, adultos num circo mambembe para criancas – e, na corda-bamba, com um parassol, o macaquinho se balanca…
Beleza: Você fala como se já tivesse vivido isso.
Jiro: Lua de mel… Lua de mel é so’ um teste do equipamento de cada um, não é não?
Beleza: (BATENDO PALMAS.) Que coisas encantadoras que você diz! E você é so’ uma crianca!
Jiro: Nos primeiros cinco anos você brilha que nem bicicleta nova. E para por ai’. Dai’ para frente a bicicleta vai enferrujando, enferrujando… O que as pessoas chamam de bom marido e um homem que nunca deixa sua mulher perceber que ele poderia andar, mesmo que não tivesse bicicleta.
Beleza: Você acha que vai me vencer com essas palavras, mas ai’ é que você se engana. Essa sua adversaria não foi nem arranhada! Imagine so: de manha eu vou me levantar antes de você e vou fazer torradas com ovo quente; você vai segurar o ovo assim, vai quebrar a casca com uma colher – teque, teque, teque…
Jiro: E dai’? Um ovo é um ovo.
Beleza: Ai’ eu vou dizer: – Mas como você é desajeitado! Deixa que eu faco.
Jiro: Você! Detesto gente intrometida.
Beleza: – Oh, querido, esse ovo ficou duro!
Jiro: Mulher na cozinha sempre dá nisso. A comida, ou passa do ponto, ou fica crua; ou salgada demais, ou doce demais.
Beleza: Olha que bonitinho o ovo que eu descasquei para você. Agora abra a boca e…
(ELA BEIJA-O DE REPENTE.)
Jiro: Não consigo respirar! Que coisa horrivel…
Beleza: Bobinho. Você não sabe nada. Para que você tem nariz? Nariz foi feito para você respirar enquanto beija.
Jiro: Detesto respirar pelo nariz.
Beleza: E por isso que a sua boca está sempre escancarada.
Jiro: Sabe de uma coisa? Você é bonita.
Beleza: Até que enfim você abriu os olhos!
Jiro: Parecia uma mascara me beijando.
Beleza: Assim é que são os beijos de mulher.
Jiro: Você é bonita mesmo. Mas se arrancar a pele, so’ vai sobrar uma caveira.
Beleza: Você é horrendo! Nunca pensei nisso.
(ELA TOCA SEU PROPRIO ROSTO.)
Jiro: Será que algumas caveiras são tidas como beldades entre as demais?
Beleza: Acho que sim. Algumas são, com certeza.
Jiro: Que seguranca a sua! Mas agora mesmo, quando você me beijou, eu sabia que por tras do seu rosto os ossos estavam rindo.
Beleza: Se o meu rosto ri, os ossos riem tambem.
Jiro: E isso o que você tem a dizer? Esta certo, quando o rosto ri, os ossos estão rindo. Mas os ossos riem tambem quando o rosto está chorando. O ossos dizem: – Se quiser, pode rir; pode chorar, se quiser. Daqui a pouquinho chega a nossa hora.
Beleza: A hora dos ossos! Que divino pensar numa coisa dessas!
Jiro: Mulher so tem dois valores criticos: “Que divino!”, ou então “Que tolice!”. So’ tem esses dois.
Beleza: Você é um cinico adoravel!
(ELA OLHA AFETUOSAMENTE PARA JIRO. SUBITO, DE UM BERCO A DIREITA DO PALCO, OUVE-SE O CHORO FORTE DE UMA CRIANCA.)
Beleza: Nosso filho nasceu!
Jiro: Hum! Que nem torrada pulando da torradeira.
Beleza: (OLHANDO DENTRO DO BERCO.) Não é uma gracinha? Nenem ve mamae? Uu-uuu! Mamae ve nenem!
Jiro: Para com isso! é ridiculo. Você não é Papai Noel de Shopping Center.
Beleza: Vem ver papai, vem? Pronto, não chora, não. Papai ainda é uma crianca tambem, mas ele é muito cabecudo em certas coisas.
(TRAZENDO O BERCO ATE A CAMA DE JIRO.)
Beleza: Papai, olha, papai! E o nosso primeiro filho!
Jiro: Hum-hum. Nossa primeira caveira?
Beleza: O que você acha? é com você ou comigo que ele se parece?
Jiro: (AFASTANDO O OLHAR.) Uma crianca nasceu para dentro desse mundo das sombras escuras. Na barriga da mae ela tinha mais cores. Por que sera que ela quis troca-las pelo negrume? Idiotinha. Ela, eu não consigo entender…
Beleza: Ele está piscando! Ele riu!
Jiro: Os ossos ja aprenderam a rir. Isso é assustador, você não acha?
Beleza: Uu-uuu.
Jiro: Eu rezo, eu suplico que isso seja so’ um sonho.
Beleza: Uu-uuu! Mamae ve nenem!
Jiro: So’ um sonho…
Beleza: Ele está rindo para o papai.
Jiro: Está é? é com você ou comigo que ele se parece?
Beleza: Pode falar o que quiser, mas eu sei que no fundo você está interessado nele.
Jiro: Hum? Com quem ele se parece?
Beleza: Se você faz essa cara medonha, ele vai acabar chorando. Já que você pergunta, sou obrigada a dizer que ele se parece mais com o pai do que comigo.
Jiro: é mesmo?
Beleza: As sobrancelhas, o nariz, a boca… Da para ver a silhueta do seu rosto atras do dele.
Jiro: Então ele se parece comigo.
Beleza: Você devia ficar feliz.
Jiro: Eu não gosto disso, de ele se parecer comigo.
Beleza: Você é tão modesto.
Jiro: Que nojo, nasceu um fedelho que se parece comigo!
Beleza: (GRITANDO DE DOR.) Para com isso!
Jiro: (APANHANDO UM CINZEIRO A CABECEIRA DA CAMA E SOCANDO FURIOSAMENTE O INTERIOR DO BERCO.) Ele vai ver!
Beleza: Para! O que você está fazendo? Para com isso!
Jiro: Morreu.
Beleza: Meu filhinho! Que horror!
Jiro: Melhor assim. Se ele tivesse vivido, ele ia crescer, e mais cedo ou mais tarde ele ia sofrer por causa da sua semelhanca com o pai. Esse é o destino de todo mundo.
Beleza: Homem horrendo! Você tem ciume até do seu filho!
Jiro: Isso mesmo. Eu não admito que ninguem se pareca comigo.
Beleza: (CHORANDO.) Monstro horrendo…
Jiro: Olha, os ossos estão rindo.
Beleza: E eu te amo assim mesmo.
Jiro: Eu esperava por isso.
Beleza: Agora eu entendo! Você matou o nenem porque você me ama. Você estava com medo de ter alguem entre nos. Foi isso, não foi? Eu te amo. Eu te amo muito. Agora eu entendo. Você é um homem muito passional. Eu não tinha percebido como você era passional. Que tolice a minha. O nenem já é coisa do passado, eu te perdoo. Eu te perdoo tudo, tudinho.
Jiro: A vaidade da mulher se amolda segundo às regras da conveniencia.
Beleza: Jiro, em troca, nunca me abandone.
Jiro: Se você for uma esposa fiel…
Beleza: Eu serei! Vou fazer tudo. Vou esfregar o chão, varrer, costurar as suas roupas, tudo. Se você disser para eu andar nua pelas ruas, eu ando.
Jiro: Bela decisão! Antes de mais nada, você nunca deve ter ciumes.
Beleza: Sim, sim; eu me submeto a tudo, tudo.
Jiro: (ESPREGUICANDO-SE.) Deixe-me ver… Ah, sim. Sou um pai que perdeu o filho. Preciso de consolo, de alguma coisa que me alegre, uma diversão, como os outros homens tem.
Beleza: Esta certo. Divirta-se o quanto quiser. Eu so vou olhar. Você pode fazer o que quiser, eu so vou olhar e nunca vou ter ciumes. Vou ser paciente e olhar. Tudo o que eu quero é poder olhar para você. Sou feliz.
(OUVE-SE UMA MUSICA ESTRANHA E SENSUAL.)
Beleza: Vou ficar em silencio e olhar para você, como um lirio.
Jiro: Um lirio! Está bem, você pode me olhar à vontade. Olhar não custa nada.
(A BELEZA SENTA-SE NUMA CADEIRA DE CRIANCA, A DIREITA. ENTRAM TRES DANCARINAS SEMINUAS, USANDO MASCARAS. ELAS FORMAM UM CIRCULO E DANCAM.)
Coro: O travesseiro é inocente.
Você danca: o sol brilha,
As nuvens brilham.
Você danca: sua vida é outra.
A danca é inocente.
Você danca: sua sombra é outra.
Dancarina 1: Jiro… Jiro…
Coro: Danca! Danca! Danca!
Dancarina 2: Jiro… Jiro…
Coro: Danca! Danca! Danca!
Dancarina 3: Jiro… Jiro…
Coro: Danca! Danca! Danca!
(AS TRES DANCARINAS TENTAM TRAZER JIRO PARA A DANCA, SEM SUCESSO: ELE PERMANECE INFLEXIVEL. DEITADO NA CAMA, A CABECA APOIADA NAS MAOS, ELE OBSERVA-AS. POR FIM, ELAS DESISTEM E SENTAM-SE NA CAMA, à VOLTA DELE.)
Dancarina 1: Que olhos lindos! Nunca vi homem com olhos tão divinos.
Jiro: Você diz isso porque ve o seu rosto refletido neles, não é?
Dancarina 1: Você não é muito gentil.
Dancarina 2: Que dentes lindos!
Jiro: Escovo todos os dias com acido sulfurico.
Dancarina 2: Que homem feroz! Ele é maravilhoso!
Jiro: Sua mão é bem gordinha, boa de se comer.
Dancarina 2: Pode comer à vontade. Cresce outra no lugar.
(AS DANCARINAS RIEM.)
Jiro: Vocês não sabem falar nada sem rir? Não tem nada mais chato do que mulher quando comeca a rir. A gente nunca sabe quando é que ela vai parar.
As Dancarinas: As coisas que ele diz não são gozadissimas?
Dancarina 3: Agora é a minha vez. Eu adoro a testa do Jiro. E alva, larga. Parece pista de aterrissagem.
Jiro: Seria uma pena ela ficar assim. Uma de vocês devia adubar e plantar alguma coisa aqui.
Dancarina 1: Eu…
Dancarina 2: Não, eu.
Dancarina 3: Deixa que eu…
Dancarina 1: Nós todas.
Jiro: Está bem, está bem… Vamos imaginar: vocês plantam as sementes – por exemplo, cenoura e nabo. Quando vocês menos esperam, as cenouras ja cresceram, os nabos ja cresceram. Vocês arrancam as cenouras e os nabos da minha testa e cozinham ate formarem uma pasta. Ai vocês derramam tudo num prato…
Dancarina 1: Sim, e ai’?
Jiro: Vocês devoram tudo.
Dancarina 1: Oh-hh!
Jiro: Vocês raspam o prato.
Dancarina 2: E ai’?
Dancarina 3: Que estoria maravilhosa! E depois?
Jiro: é so’ isso. é que nem a vida. Vocês entenderam, não e? Se entenderam, vão embora – e depressa.
Dancarina 1: Não, Jiro, eu não quero ir.
Jiro: Que praga! Vão embora, depressa!
Dancarina 2: Como ele é grosseiro! Mas tenho de confessar, existe um certo charme na sua frieza.
Jiro: Já disse, vocês são umas pragas! Vão embora! Me deixem sozinho!
Dancarina 3: Esta bem, a gente vai embora. Mas da uma boa gorjeta, vai.
Dancarina 1: Na proxima vez a gente precisa passar muito mais tempo juntos.
Dancarina 2: Jiro, eu percebi que você era generoso na hora em que meus olhos bateram em você. Adoro gente com rosto franco.
(ENQUANTO ELA FALA, SURGE A DIREITA UM HOMEM DE TERNO, COM UMA MASCARA DE SENHOR DE MEIA IDADE: O SECRETARIO. ELE FAZ UM SINAL PARA AS DANCARINAS, ASSINA UM CHEQUE E ENTREGA-O PARA ELAS. AS DANCARINAS E A BELEZA SAEM PELA DIREITA.)
Jiro: Quem é o senhor? O senhor pagou as mocas? Lamento te-lo incomodado. Aconteceu de eu estar sem trocado.
(O HOMEM SE APROXIMA E ENTREGA-LHE SEU CARTAO DE VISITAS.)
Secretario: Meu senhor, tenho a honra de ser o seu secretario particular. O dinheiro que dei era seu. Com a sua anuencia, é claro. Assinei o cheque por procuração. Dei a elas 10 mil yens, acrescidos de 2 mil a titulo de gratificação. Sem duvida, está verdadeiramente impossivel alguem divertir-se nesses nossos dias, a não ser a custa de vastas somas. Arrancam-lhe ate o ultimo centavo que conseguirem. Basta estarem a par dos lucros da nossa companhia.
Jiro: Nossa companhia?
Secretario: Quero dizer, da sua companhia, senhor, Senhor Presidente.
Jiro: Presidente?
Secretario: Não existe necessidade de fingir ignorancia, senhor. Isto não lhe cai bem. Parece possuir certos caprichos, Senhor Presidente…
Jiro: Presidente? Esta bem, seja como você quiser. Eu ia acabar presidente mesmo… Muito bem, prepare-me um relatorio detalhado sobre o montante do capital da firma, bem como sobre os meus bens pessoais.
Secretario: Pois não, senhor. Imediatamente.
(ELE FAZ UM SINAL PARA A DIREITA. UMA FUNCIONARIA, USANDO A MASCARA APROPRIADA, TRAZ NUMA BANDEJA UM APARELHO DE TELEFONE E UM LIVRO DE CONTABILIDADE. ELA COLOCA O TELEFONE JUNTO AO TRAVESSEIRO DE JIRO E O LIVRO DE CONTABILIDADE DIANTE DO SECRETARIO. ELA SAI.)
Jiro: Leia em voz alta.
Secretario: Pois não, senhor.
(O SECRETARIO COLOCA OS OCULOS. O TELEFONE TOCA. O SECRETARIO ATENDE.)
Secretario: Sim. Sim, senhor. O presidente se encontra aqui. (COBRINDO O BOCAL COM A MAO.) Novamente aquela firma de Osaka. O mesmo de sempre.
Jiro: (ABORRECIDO.) Está bem, está bem. (ELE PEGA O FONE.) Pronto, ele mesmo… Sei… Hum-hum… Hum-hum… é verdade… Oh… Compreendo… Hum-hum… Mesmo?… Bem… Hum-h
um… Hum-hum… Ha-ha… Sei… Sei… Sei… Sei… Oh… Hum-hum… Hum-hum… Ha-ha… Tchau. (ELE DESLIGA.)
Secretario: O senhor é a imagem viva do presidente anterior! Ao telefone, o senhor e rigorosamente identico. Era exatamente esta a maneira com que ele se desvencilhava de chamadas inconvenientes. Nisto ele era impecavel. Dele jamais se ouvia um “sim” ou um “não”. Que gloria saber que seu filho herdou-lhe o genio. Não, não há duvida: tal pai, tal filho… Curioso, sentado aqui, sinto como se estivesse em presenca dele… Ah, as lembrancas que me chegam!
(ELE RETIRA OS OCULOS E OLHA PARA O ALTO.)
Secretario: Pela manha, tão logo abria os olhos, ele mandava me chamar. Eu passava algum tempo a sua cabeceira para me inteirar dos planos para aquele dia e responder as chamadas telefonicas. Em seguida chegava o jornal. Era da coluna de fofocas que ele gostava; depois das cotações da Bolsa, era o que ele lia. Em seguida, mesmo aquela hora da manha, vinham – ha! ha! – as piadas, as de sempre – é mesmo! Em seguida, sua famosa galinha cozida. Ele sempre quebrava o jejum com galinha cozida. As pessoas diziam ser esta a razão de ele, naquela idade, ainda gozar de todo o seu vigor. Durante um bom tempo sua galinha cozida esteve muito em voga nos circulos financeiros. Maior honra não poderia ter-me tocado senão a de ter podido partilhar da sua galinha cozida. Todas as manhas, com o coração tomado pela gratidão, eu comia moela, figado – ele comia as partes tenras, e eu, as demais. Ah, aquelas refeições matinais, como descreve-las…?
Jiro: Leia a contabilidade.
Secretario: (COLOCANDO OS OCULOS.) Pois não, senhor. Imediatamente.
(O TELEFONE TOCA. JIRO ATENDE.)
Jiro: Pronto, ele mesmo… Hum-hum… Bla-bla-bla… Ha-ha… Ora… Mesmo?… Hum-hum… Tchau.
Secretario: (FAZENDO UMA MESURA.) Esplendido! Esplendido!
Jiro: E a contabilidade?
Secretario: Pois não, senhor.
(O TELEFONE TOCA. O SECRETARIO ATENDE.)
Secretario: Sim. Sim, correto, ele está.
(ENTREGA O FONE PARA JIRO.)
Jiro: É ele. Mas a essa hora da manha! Estou ocupado. Ah, garota, estou cheio das suas lamurias. E você lá sabe? Tem gente que chora no telefone. Você devia ter vergonha… Não, chega, acabou. Isso mesmo: ponto final. Depois eu mando dinheiro pelo meu secretario. Falei claro, não falei? (ELE DESLIGA.)
Secretario: Esplendido: “ponto final”! Que determinação! O presidente anterior deve estar regozijando-se em seu tumulo. A falar a verdade, ainda que não esteja entre as minhas atribuições a de dar-lhe conselhos, devo confessar que eu estava bastante preocupado quanto a esta questão. Mas o senhor deu-lhe um fim de forma cabal. Sua indole é verdadeiramente ilustre.
Jiro: E agora dá para eu saber da contabilidade?
Secretario: Pois não, senhor. Eu me deixei levar… O capital da firma, como o senhor não ignora, é de 230 milhões de yens. O ativo monta a…
Jiro: As minhas ações, qual é o montante delas?
Secretario: Pois não, senhor. Deixe-me ver… (ELE VIRA AS PAGINAS.)
Coro: (RUIDO DE GRITOS E GEMIDOS.)
Jiro: Que foi isso?
Coro: (OS MESMOS RUIDOS.)
Secretario: Não merece a sua consideração, senhor. O sindicato está promovendo agitação em torno de alguma coisa.
Coro: (OS MESMOS RUIDOS.)
Jiro: E muita agitação para um sindicato so…
Coro: (OS MESMOS RUIDOS.)
Secretario: (OLHANDO PARA TRAS.) O senhor tem razão. O populacho tambem participa.
Coro: (OS MESMOS RUIDOS.)
Jiro: A quanto montam as minhas ações?
Secretario: Cincoenta e cinco por cento.
Jiro: (JOGANDO A CABECA SOBRE O TRAVESSEIRO.) Vende tudo.
Secretario: Pois não, senhor!
Jiro: Todas.
Secretario: Vai causar rebulico no Conselho e na assembleia dos acionistas.
Jiro: Antes da gente passar para isso, e as minhas propriedades particulares?
Secretario: Oito milhões em bens imoveis, 12 milhões em titulos – evidentemente encobertos por alguns malabarismos para escapar do imposto de renda – o que totaliza 20 milhões de yens.
Jiro: Vende isso primeiro.
Secretario: Senhor Presidente, queira ter certeza do que está fazendo.
Coro: (OS MESMOS RUIDOS.)
Jiro: Distribui o que apurar entre os sindicatos. O resto, dá para as obras sociais.
Secretario: Deve existir uma forte razão por detras…
Jiro: Não tem razão nenhuma, não. Eu estou é com sono; eu quero é dormir, so’ isso.
(ELE VIRA-SE DE COSTAS PARA A PLATEIA E DORME.)
Secretario: (PARA SI MESMO.) Ha-ha! Entendi tudo. Ele tem ambições politicas. (LEVANDO O TELEFONE ATE A MESINHA, A DIREITA.) Alo, alo… E do Jornal do Japão? Editoria politica; o senhor Noyama, por favor. (PARA SI.) Preciso assessorar o presidente em sua carreira politica, ainda que isso me acabe com a saude, ainda que isso me acabe com a vida… Alo, Noyama? Tenho uma noticia quente para você. O presidente da minha companhia está revertendo toda a sua fortuna para os sindicatos e as obras sociais. Ele vai fundar um novo partido, sem um tostão. Isso mesmo. Por favor, de a cobertura devida. Falo com você amanha ou depois. Por favor… Sim… Por favor, isso mesmo.
(O PALCO ESCURECE. O SECRETARIO SAI. O CORO CANTA A MESMA CANCAO DA ENTRADA DA BELEZA. A LUZ SE ACENDE. DOIS HOMENS COM MASCARAS DE CAVALHEIROS IDOSOS ESTAO DE PE, VOLTADOS PARA A DIREITA.)
Cavalheiro 1: A reviravolta é total.
Cavalheiro 2: Não resta a menor duvida.
Cavalheiro 1: Uma especie de “coup d’etat”.
Cavalheiro 2: Mais do que um “coup d’etat”, um massacre. Fomos destruidos direitinho.
Cavalheiro 1: Nem tres anos se passaram desde que ele dizimou a sua fortuna para entrar na politica…
Cavalheiro 2: Pensando bem, era isto que deviamos ter feito.
Cavalheiro 1: Mas mesmo que um homem sem recursos como eu quisesse jogar fora todo o seu dinheiro, existe um limite quanto ao que ele podia dizimar.
Cavalheiro 2: O senhor sempre diz isso, mas aposto que tem uma fortuna escondida dentro do poco de sua casa.
Cavalheiro 1: Para o poco da minha casa, eu tenho uma utilidade mais importante do que esconder dinheiro. E lá que eu pretendo me esconder se as coisas ficarem pretas.
Cavalheiro 2: é uma vergonha o senhor, nessa idade, ter medo da morte. Eu sempre carrego veneno comigo. Faz parte dos apetrechos pessoais de um politico de hoje em dia.
(ORGULHOSO, ELE EXIBE O VENENO AO CAVALHEIRO 1, QUE EXAMINA ATENTAMENTE O FRASCO. DURANTE A CONVERSA QUE SE SEGUE, O VENENO E COLOCADO NA MESA, ONDE SERA ESQUECIDO.)
Cavalheiro 1: Está tudo acabado, agora que ele tem sob controle a mafia dos militares…
Cavalheiro 2: Era de se esperar, os chefes militares de cachorrinhos do Partido…
Cavalheiro 1: Como é facil virar heroi; basta não ter desejos. Atraves da indiferenca um homem consegue mais poder do que atraves da ambição. Veja bem, nesses nossos dias um simples rapazola pode dominar o pais so’ porque age com indiferenca e afirma – aparentemente com sinceridade – não precisar de dinheiro, mulheres ou fama.
Cavalheiro 2: O que aconteceria se o senhor agisse com indiferenca?
Cavalheiro 1: Agora é tarde.
Cavalheiro 2: Bom, pelo menos o senhor está consciente disto.
Cavalheiro 1: No entanto…
Cavalheiro 2: Permita-me informa-lo, mas “no entanto” é uma locução que so’ pode ser usada por intelectuais; não é locução de politico.
Cavalheiro 1: O senhor está ficando um rabugento. E inevitavel, creio eu. Mas como eu ia dizendo, no entanto, agora que ele tem os militares na coleira, a Camara e o Senado na mão e é lider das organizações de base, o proximo passo é a guerra.
Cavalheiro 2: Os preparativos já terminaram. O senhor já percebeu como os empresarios da industria pesada deram para posar de patriotas, ultimamente? Ontem mesmo, no Clube dos Industriais, alguem fez um discurso que me deu uma indigestão brutal.
Cavalheiro 1: Dizem que a comida de lá continua boa.
Cavalheiro 2: Pois é. Eu não aguento esta padronização das refeições. Meus rins sofrem se eu não como pelo menos uma boa refeição por semana.
Cavalheiro 1: é impressionante como os ditadores preferem comidas insossas. Talvez eles se martirizem, para terem a sensação de estar servindo a nação. Este ai com certeza dorme tarde, a julgar pela pessima qualidade do que come.
Cavalheiro 2: Enquanto dorme, os outros elaboram os planos para ele. Depois acorda, com o rosto tomado por aquela palidez mortal. E faz discursos, preside comicios, recebe representantes estrangeiros. E é so’.
Cavalheiro 1: E tudo está sob controle…
Cavalheiro 2: …de um ditador dorminhoco.
Cavalheiro 1: Enquanto ele dormia, o programa foi tracado.
Cavalheiro 2: Belo papel, não e? O ditador adormecido. Mesmo naquele dia em que veio com seus guarda-costas, tiveram de entupi-lo de estimulantes e ele se aguentou de pé a noite toda, os olhos arregalados que nem dois pires.
Cavalheiro 1: Veja! Enquanto nosso lider e senhor dorme, as ruas acordam e saltam para a vida.
Cavalheiro 2: Mas essas bandeirolas plebeias a panejar pelas ruas da cidade que nos viu nascer!
Cavalheiro 1: O senhor não acha lindas as nuvens da manha? So depois que fiquei velho e comecei a acordar cedo e que pude apreciar isto.
Cavalheiro 2: Não consigo escuta-lo. O Comite dos Jovens ja iniciou o seu desfile.
Cavalheiro 1: Um estado em petição de miseria. Hoje em dia os jovens acordam mais cedo do que os velhos.
(OUVE-SE UMA BANDA DE METAIS QUE SE APROXIMA.)
Coro: Viva Jiro! Vida longa, viva Jiro!
Cavalheiro 1: Viva Jiro? A que estado deploravel o mundo chegou!
Coro: Viva Jiro! Vida longa, viva Jiro!
Cavalheiro 1: Houve um tempo em que se dizia “Vida longa para o
Rei!” Que decadencia! As massas perderam o bom gosto.
Coro: Viva Jiro! Vida longa, viva Jiro!
Cavalheiro 1: So’ de ouvir essas vozes o meu reumatismo estrila. Vamos fumar um charuto lá no saguão.
Cavalheiro 2: Excelente ideia. Ate que o nosso lider Jiro se digne a abrir os olhos, não e? O senhor trouxe os charutos, quero crer.
Cavalheiro 1: Oh, não. Esperava ser obsequiado com um dos seus.
Cavalheiro 2: Oh, não. Nos dias de hoje não posso conceder-me estes luxos.
(ELES SAEM.)
Coro: Viva Jiro! Vida longa, viva Jiro!
(OS GRITOS E A BANDA DE METAIS DESAPARECEM NA DISTANCIA. O MEDIC
O ILUSTRE ENTRA. ELE USA UM JALECO PRETO. DOIS MEDICOS ACOMPANHAM-NO. ELES SENTAM-SE EM TORNO DA MESINHA E INICIAM UMA DISCUSSAO.)
Medico Ilustre: Shhh… Nosso lider ainda dorme.
Medico 1: Ainda dorme.
Medico 2: Ainda dorme.
Medico Ilustre: Enquanto ele dorme, temos de tomar uma decisão vital. Vou fechar meus olhos e seguir meus dedos. Estamos acordados? (PAUSA) Toquei algo.
Os dois Medicos: Tocou algo.
Medico Ilustre (ABRE OS OLHOS, OLHA: E O FRASCO DEIXADO PELOS DOIS CAVALHEIROS.): Veneno!
Os dois Medicos: Veneno!
Medico Ilustre: Ao que tudo indica, afinal, a eventualidade que eu encarava com tanta apreensão não deve ser evitada. Como os senhores indubitavelmente estão a par, sigo o metodo denominado Terapia Acidental, e eu ficaria extremamente penhorado aos senhores por sua coobrigação. Em suma – omito as explanações cientificas e seus detalhes – estou convicto da validade da hipotese segundo a qual, em casos de risco extremo, e cientifico calcar-se em indicações acidentais. Este metodo permite ao medico determinar de antemão, segundo as leis da probabilidade, o sucesso ou fracasso da terapia. Neste exato momento, por mero acidente, minha mão tocou neste veneno que, por alguma razão, aconteceu ter sido deixado exatamente neste lugar. Segundo minha teoria, isto significa que a unica coisa requerida pelo paciente que temos diante de nos é veneno.
Medico 1: E extremamente improvavel que em qualquer coisa que diga o senhor possa estar equivocado.
Medico 2: Todos os academicos da Faculdade de Medicina desta Universidade tomarão seu diagnostico como lei.
Medico Ilustre: Cavalheiros, estamos diante de uma situação deploravel. Nosso Jiro, nosso lider deve tomar o veneno. E esta a situação com que nos defrontamos.
Medico 1 (APOS CONFERENCIAR COM O SEGUNDO MEDICO.): Devo dizer, um diagnostico rigorosamente cientifico.
Medico 2: Fora de qualquer duvida. Nossas tradições academicas não podem ficar a merce de considerações politicas.
Medico Ilustre: Cavalheiros, rejubilo-me do fundo de meu coração com a confianca que me dedicam. Em breve nossa patria recorrera a ação. A esta altura um lider adormecido não possui poder algum. Em verdade, desde que surgiu na cena politica, ate o momento, ate este exato momento, nosso lider não cessou de dormir. Os unicos a estarem a par deste segredo, deste grande segredo nacional, somos eu proprio e dois ou tres encarregados das questões de estado. Um sem numero de substitutos sempre – observem bem, senhores, sempre – atuaram em seu lugar e obraram para manter o poder politico deste lider. A nação poderia ser comparada a uma rica senhora que comparece a festas portando uma imitação perfeita de um colar de brilhantes que ela mantem guardado no cofre.
Medico 1: Atenção! Atenção!
Medico 2: Seu entusiasmo juvenil servir-nos-a como inspiração imorredoura.
Medico Ilustre: A era de farsas e imposturas chegou ao fim. Nossa patria está prestes a rebelar-se, e a ronronante maquinaria ja comecou a avancar. O motor de nossa pujanca não está em nosso lider nem nos que o rodeiam, mas na juventude, no poder da juventude una e unida.
Medico 1: Fascinante!
Medico 2: Possui o verdadeiro fervor de um cientista.
Medico Ilustre: A maquinaria ja comecou a avancar. Um lider adormecido não nos é necessario. é necessario que o ditador adormecido morra.
(OS DOIS MEDICOS APLAUDEM. JIRO ACORDA E SENTA-SE NA CAMA.)
Jiro: O que é isso? O que que está havendo? Você ai, o velho, me diga.
Medico Ilustre: Esta é a hora da morte de nosso lider. Autorizamos a presenca daqueles que lhe eram mais proximos.
(ENTRAM A BELEZA E AS TRES DANCARINAS. ESTAO VESTIDAS DE PRETO, SEUS OLHARES ESTAO BAIXOS. ENTRA O SECRETARIO PARTICULAR. TODOS SENTAM-SE EM TORNO DA CAMA COM POSTURAS REVERENTES.)
Jiro: Essa é boa! Que que está havendo com todo mundo? Por que que de repente todo mundo ficou quieto? Ei! (CUTUCA UMA DAS DANCARINAS.) Essa não: chorando! Que que tem de triste? Gente mais doida!
Medico Ilustre: Viemos dizer adeus ão nosso lider.
(TODOS SE PROSTRAM.)
Jiro: Pronto, todo mundo quieto de novo. Ei, que que está havendo com você, minha mulher querida, meu lirio em flor? Me desculpe por ter matado o nenem.
Medico Ilustre: Um copo com agua.
Medico 1: Sim, senhor.
Medico Ilustre: Queira tomar este remedio.
Jiro: E o que é “este remedio”?
Medico Ilustre: Vamos, coragem. Estamos todos velando os seus derradeiros momentos.
Jiro: Não quero, não. Deixa de piada. Eu não quero morrer.
Medico Ilustre: Rogo-lhe que não proceda como uma crianca. Encare o seu destino como homem.
Jiro: Teimoso, você! Já disse que não quero morrer.
Medico Ilustre: Estes são os derradeiros momentos de nosso lider. Rogo-lhe que proceda com decoro.
Jiro: Eu não quero morrer. Vocês, facam esse cidadão parar com isso. Mulher não serve para nada, nem nessas horas.
Medico Ilustre: Este não é o momento para o senhor denegrir as mulheres. Vamos, esvazie o copo sem maiores delongas.
Jiro: Não. Não, e ponto final.
Medico Ilustre: Neste caso – impossivel evitar – sou forcado a convence-lo de que deve beber, a fim de que sejamos poupados de uma cena das mais desagradaveis. Por obsequio, queiram retirar-se. Confiem a mim esta tarefa. Reconheco que gostariam de estar presentes a seus derradeiros momentos, mas sou forcado a pedir-lhes que se retirem.
(TODOS SAEM, EXCETO O MEDICO ILUSTRE.)
Medico Ilustre: Bem, Jiro, você está me ouvindo? Vou convence-lo. Ouca em silencio. Somos espiritos da cidade de Kantan. Suponho que você saiba o que isto significa. E nossa norma absoluta: todo aquele que durma sobre este travesseiro deve atingir a iluminação. Em tempos idos, houve um homem que sonhou durante toda a sua vida enquanto um caldeirão de sopa era cozido para ele, e isto fez com que ele percebesse a ausencia de significado da vida. A mesma coisa continua a ocorrer hoje em dia. Todo mundo vive docil e obedientemente toda uma vida enquanto sonha. Adormecidos, todos sempre viveram sonhos. Por isto, a fim de agucar a percepção da futilidade da vida, quando despertam de seus sonhos, a eles é oferecido o elixir da imortalidade – o que está no sonho no qual eles se tornam Imperadores. E minha função oferecer o elixir. Todos os outros respeitaram as normas. Mas e você? Desde o inicio você sequer tentou viver, não foi? Em você não existe a menor particula de uma natureza humana normal. Mesmo em seus sonhos, você rejeitou, você completa e absolutamente rejeitou a vida. Estive atento a isto todo o tempo.
Jiro: Mas claro, meu velho. A gente é livre, inclusive nos nossos sonhos. Se a gente tenta viver, ou se a gente tenta não viver, isso não é da sua conta. Ou será que é?
Medico Ilustre: Sua atitude não é exatamente o que se poderia chamar de polida.
Jiro: Não estou dando a menor bola para ser ou não ser.
Medico Ilustre: Mas eu estou. E não há meio de fazer com que um louco como você compreenda a futilidade da vida. Noutras palavras, não consigo cumprir o meu dever. Quando as coisas atingem este ponto, eu definitivamente não posso traze-lo de volta para a vida. Seria violar os meus deveres sagrados.
Jiro: Pode falar a vontade, mas eu não quero morrer.
Medico Ilustre: Contradição! Uma contradição! Seu argumento carece de qualquer consistencia logica.
Jiro: Por que?
Medico Ilustre: Porque em momento algum você tentou viver. Você passou morto pela vida. Como pode afirmar que não quer morrer?
Jiro: Pois é, mas eu quero viver.
Medico Ilustre: Por favor, beba isto primeiro e depois pense nestas idiotices.
Jiro: Não. Eu quero viver.
(JIRO, QUE ESTIVERA ESPERANDO PELA OPORTUNIDADE, SUBITAMENTE AR
REBATA O VENENO DO MEDICO ILUSTRE E ATIRA-O NO CHAO. O VELHO DESAPARECE COM UM GRITO. O PALCO ESCURECE. APOS UMA PAUSA, O “SHOJI” ILUMINA-SE LIGEIRAMENTE, EM RESISTENCIA: JIRO DORME COMO NO INICIO. A LUZ AUMENTA GRADATIVAMENTE. OUVE-SE UM CHILREIO TUMULTUADO DE PASSAROS DO LADO DE FORA, NO JARDIM. ENTRA KIKU. ELA ACORDA JIRO, SACUDINDO-LHE OS OMBROS.)
Kiku: Vamos, acorda, patrãozinho.
Jiro: Humm. Humm.
Kiku: Acorda, vamos. Ah, você estava dormindo com um rosto tão inocente. Igualzinho quando você era bebe.
Jiro: Humm. Humm.
Kiku: Vamos, levanta, anda. A comida ja está pronta; o arroz está quentinho. Você sempre dizia que so comia arroz feito pela Kiku.
Jiro: é de manha, não é?
Kiku: Dia claro. O tempo está lindo.
Jiro: KIiku, eu tive sonhos dos mais fantasticos.
Kiku: (ANSIOSA, BAIXANDO A VOZ.) Será que…
Jiro: “Será”? Não, você se enganou. Eu sou um pouco diferente dos outros. A vida é exatamente o que eu pensava que fosse. Não fiquei surpreso com nada.
Kiku: Se você vai embora, que nem o meu marido…
Jiro: Você bem que queria, não e? Você queria que eu saisse por ai’.
(KIKU ESTá QUIETA.)
Jiro: Você tem que se conformar; esquece o seu marido. Eu não vou a lugar nenhum. Você perdeu a chance de vir comigo. Você perdeu a chance de encontrar o seu marido.
Kiku: Gozado, mas escutar você dizer isso me deixa tão aliviada, tão forte.
Jiro: é isso, Kiku: você está viva.
Kiku: Patrãozinho, você vai mesmo ficar aqui o tempo todo para nunca mais me deixar?
Jiro: Vou. O tempo todo. Você não se importa, não é?
Kiku: Estou tão feliz. Esse quarto acabou servindo para alguma coisa. Fico feliz so de pensar que vou poder ficar com o meu patrãozinho, so nos dois. Parece que a Kiku de dez anos atras voltou a viver.
Jiro: Vou ficar aqui o tempo todo. Talvez até morrer.
Kiku: Vou esquecer o meu marido. Parece que a vida aqui recomeca agora. Eu me pergunto o que é? Nunca teve manha tão exuberante.
(JIRO FICA DE PÉ, ABRE UM POUCO O “SHOJI” E SAI PARA A VARANDA.)
Jiro: Ha-ha, que beleza. Kiku, o jardim está todo florido.
(OUVE-SE UM CHILREIO INCESSANTE DE PASSAROS.)
Kiku: Os botões se abriram?
Jiro: (DO JARDIM.) Olha! Lirios, rosas, violetas, primaveras, marianas. Que beleza. Eles se abriram de repente!
Kiku: (ESPIANDO ATRAVES DA ABERTURA ENTRE OS PAINEIS DO “SHOJI”.) Incrivel! Quem é que podia imaginar uma manha dessas?
Jiro: (SUA VOZ ESTA DISTANTE.) Kiku, onde é que está o poco de lavar roupa?
Kiku: Ali, à esquerda.
Jiro: (MUITO DISTANTE.) Está coberto de flores.
Kiku: Que estranho, que estranho… O jardim voltou para a vida.
CAI O PANO
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