31
Maio
13

BERTA MANDA LEMBRANÇAS – do Tennessee Williams.

BERTA MANDA LEMBRANÇAS

de

Tennessee Williams

1946.

 

 

 

Tradução

de

Flávio de Campos

 

Março, 1988.

——————
Personagens:

Regina / Lena
Berta / Menina.

Um quarto no “vale” ‑ uma conhecida zona de prostituição ao longo do mangue, em St. Louis, Missouri, EUA.

No centro, deitada sobre uma pesada cama de cobre com travesseiros e cobertas em desalinho, nervosamente se agita Berta ‑ uma prostituta grande e loura. Encostada à parede da direita, uma penteadeira antiga e também pesada, com puxadores dourados, uma toalha espalhafatosa de seda por cima e duas grandes bonecas. Ao lado da cama, uma mesinha com garrafas de gim vazias. Algumas revistas sensacionalistas se espalham pelo chão. O papel de parede é de um brilho grotesco e coberto de rosas grandes e berrantes ‑ e está rasgado e soltando‑se, em alguns lugares. No teto, grandes manchas amarelas; pendurado no centro, um lustre velho, com uma franja de pingentes de vidro vermelho. Regina entra pela porta à esquerda. Ela usa um vestido sujo de duas peças, feito de cetim preto e branco, justo, a desenhar‑lhe o corpo magro.

Parada à porta, ela fuma um cigarro, enquanto fita, impacientemente, a figura prostrada de Berta.

REGINA: E então, Berta, que que você vai fazer? (PAUSA)

BERTA: (COM UM LEVE GEMIDO) Não sei…

REGINA: Você tem que resolver, Berta.

BERTA: Não posso resolver nada…

REGINA: Por quê?

BERTA: ‘cansada…

REGINA: Isso não é resposta.

BERTA: (AGITANDO‑SE) É a única que eu sei. Eu só quero ficar deitada aqui, pensando que que eu vou fazer.

REGINA: Você está deitada aqui, pensando ou sei lá o que, já faz duas semanas. (BERTA EMITE UMA RESPOSTA ININTELIGIVEL) Você tem que tomar uma decisão. As meninas precisam deste quarto.

BERTA: (COM UMA RISADA ROUCA) É todo delas!

REGINA: Com você deitada aqui, não dá.

BERTA: (DANDO UM TAPA NA CAMA) Ai, meu Deus!

REGINA: Se controla, Berta. (BERTA SE AGITA NOVAMENTE E GEME)

BERTA: Que que eu tenho?

REGINA: Você está doente.

BERTA: Eu estou é com dor de cabeca. Quem é que me deu aquele grogue, ontem de noite?

REGINA: Ninguem te deu grogue nenhum. Você está deitada nessa cama já faz duas semanas ‑ e falando sem parar. Agora, o que você deve fazer, Berta, é voltar para casa ou então…

BERTA: Voltar pra casa nenhuma! Vou ficar aqui mesmo, até eu conseguir (BREVE PAUSA) me erguer novamente.

(OBSTINADA, ELA DESVIA O ROSTO)

REGINA: Bordel não é lugar para menina no seu estado. Alem disto, nos precisamos deste quarto.

BERTA: Me deixa em paz, Regina. Quero dar uma descansadinha antes de comecar a trabalhar.

REGINA: Berta, você tem que tomar uma decisão!

POR UM BOM TEMPO ESTA ORDEM PAIRA PESADAMENTE PELA ATMOSFERA FLORIDA DO QUARTO. LENTAMENTE BERTA VIRA O ROSTO NA DIREÇÃO DE REGINA.

BERTA: (DEBIL) Que que eu tenho que decidir?

REGINA: Para onde é que você vai?

POR ALGUNS INSTANTES, BERTA FITA-A EM SILENCIO.

BERTA: ‘lugar nenhum. Agora me deixa em paz, Regina. Eu tenho que descansar.

REGINA: Se eu deixar você em paz, você vai ficar deitada aqui até o dia do Juizo Final! (A RESPOSTA DE BERTA É ININTELIGIVEL) Escuta! Ou você se decide agora mesmo, ou eu chamo a ambulância para te levar já já!

BERTA: (O CORPO ENRIJECE UM POUCO ANTE ESTA AMEACA) Não posso decidir nada… estou cansada, exausta…

REGINA: Está muito bem! (ELA ABRE A BOLSA NUM GESTO RAPIDO) Vou levar esta moeda e vou ligar agorinha mesmo. Vou dizer para eles que aqui tem uma garota doente, que não fala coisa com coisa.

BERTA: (FIRME) Vai, telefona… estou pouco ligando pro que vai acontecer comigo.

REGINA: (MUDANDO DE TATICA) Por que que você não escreve outra carta, Berta, para aquele homem lá de Memphis, que vende… ferragens ou sei lá o quê?

BERTA: (SUBITAMENTE ALERTA) O Charlie!? Deixa o nome dele de fora dessa tua boca fedida!

REGINA: Olha só como você fala comigo… Eu, deixando você ficar aqui por pura piedade, e você sem me trazer um tostão furado, já faz duas semanas! Onde é que você…

BERTA: Charlie… ele é um amor de pessoa. O Charlie é… (A VOZ SE TORNA UM RESMUNGO SOLUCANTE)

REGINA: Mas qual é o problema!? Mais uma razão para você escrever para ele te tirar deste buraco em que você se meteu, Berta.

BERTA: (EXALTADA) Pra ele eu não peco mais nem um tostão! Ouviu bem? Ele não se lembra nada de mim; nem do meu nome, nem nada. (ELA LENTAMENTE DESCE A MÃO PELO CORPO) Alguem me cortou de faca, quando eu estava dormindo.

REGINA: Acorda, Berta. Se esse cara tem dinheiro, quem sabe ele te manda um pouco, para ajudar você a “se erguer novamente”.

BERTA: Claro que ele tem dinheiro. Ele é o dono de uma loja de ferragem. Pelo menos isso eu tinha que saber: eu trabalhei lá! E ele sempre me dizia: “Broto, quando você precisar de alguma coisa, é só falar com o Charlie aqui…” A gente se divertiu a valer, naquele quarto lá dos fundos!

REGINA: Aposto que ele também não esqueceu.

BERTA: Ele descobriu tudo o que eu fiz, depois que eu larguei ele e… vim pra St. Louie. (ELA DA DOIS TAPAS NA CAMA)

REGINA: Descobriu nada, Berta. Aposto como ele não sabe de nada. (BERTA RI BAIXO)

BERTA: Foi você que escreveu pra ele… Inventou um monte de nojeira a meu respeito e saiu contando! Essa tua língua fedida matraqueia tão depressa que/…

REGINA: Berta! (BERTA RESMUNGA UMA OBSCENIDADE ININTELIGÍVEL) Eu sempre fui sua amiga, Berta.

BERTA: Não faz diferença: ele esta casado, agora.

REGINA: Manda só um cartão, um bilhetinho dizendo que você passou por umas dificuldades. Lembra ele que ele falou que ajudava você, quando você precisasse.

BERTA: Me deixa sozinha, um pouco, Regina. estou me sentindo muito mal por dentro, agora.

REGINA: (AVANCANDO UNS PASSOS E ENCARANDO BERTA COM MAIS PREOCUPAÇÃO) Quer ir no medico?

BERTA: Não. (PAUSA)

REGINA: Um padre? (BERTA AGARRA O LENCOL E PUXA‑O SOBRE SI)

BERTA: Não!

REGINA: Qual é a sua religião, Berta?

BERTA: Não tenho.

REGINA: Acho que uma vez você falou que era catolica.

BERTA: ‘capaz. E daí?

REGINA: Se você fosse, quem sabe nos conseguiamos umas freiras ou sei lá o que que te arrumavam um quarto, que nem o que arrumaram para a Rose Kramer; aí você podia descansar em paz e se recuperar e tudo, hem, Berta?

BERTA: Eu não quero freira nenhuma pra me arrumar droga nenhuma! Quero é ficar aqui, sossegada, até acabar de descansar.

REGINA: Berta… você está muito doente, Berta.

BERTA: (APOS PEQUENA PAUSA) Muito?

REGINA: Muito, Berta. Eu não quero te meter medo, mas…

BERTA: (COM VOZ ROUCA) estou morrendo?

REGINA: (APOS PENSAR POR UM INSTANTE) Eu não disse isto. (OUTRA PAUSA)

BERTA: Não, mas pensou.

REGINA: Nos temos que pensar no futuro, Berta. Não podemos ficar só de papo para o ar.

BERTA: (TENTANDO SENTAR‑SE) Se eu estou morrendo, eu quero escrever pro Charlie. Eu quero… contar pra ele umas coisinhas…

REGINA: Se você quer se confessar, querida, acho que um padre seria…

BERTA: Não, nada de padre! Eu quero o Charlie!

REGINA: O Padre Callahan podia…

BERTA: Não! Não! Eu quero o Charlie!

REGINA: O Charlie está em Memphis. Ele está cuidando da loja de ferragens lá dele.

BERTA: É mesmo. Lá na Avenida Central. Numero cinco meia tres.

REGINA: Eu vou escrever para ele e vou contar como é que você está, hem, Berta?

BERTA: (APOS PAUSA PARA PENSAR) Não… Escreve só que eu mandei lembranças. (ELA VIRA O ROSTO PARA A PAREDE)

REGINA: Eu preciso dizer mais alguma coisa, Berta.

BERTA: É só isso que eu quero que você escreve: “Berta manda lembranças.”

REGINA: Você sabe que isso não faz sentido.

BERTA: Claro que faz. “Berta manda lembranças para o Charlie com todo amor.” Não faz sentido?

REGINA: Não!

BERTA: Claro que faz.

REGINA: (VIRANDO‑SE PARA A PORTA) Melhor eu telefonar para o hospital e mandar vir a ambulância.

BERTA: Não, você não vai fazer isso! Prefiro morrer.

REGINA: Você não está em condicoes de ficar no bordel, Berta. Uma menina no seu estado precisa de cuidados, ou o pior pode acontecer.

LÁ FORA, NA RECEPÇÃO, ALGUEM LIGOU A VITROLA DE FICHA. TOCA “THE ST. LOUIS BLUES”. UMA VOZ ROUCA DE HOMEM REPETE O REFRÃO. EM SEGUIDA, OUVE‑SE UMA GARGALHADA E UMA PORTA BATENDO.

BERTA: (APOS LIGEIRA PAUSA) Dizer isso pra mim, maninha… (ELA ERGUE OS OMBROS) estou por dentro das regras desse jogo! (ELA FITA REGINA COM OLHAR BRILHANTE E REMOTO) Quando você vai pro escanteio, não tem volta. E nem “a senhora”, “Dona” Regina, nem “a senhora” ia conseguir voltar!

ELA SACODE A CABECA. LENTAMENTE, TORNA A RECOSTAR‑SE. ELA CERRA OS PUNHOS E SOCA A CAMA VARIAS VEZES. EM SEGUIDA, A MÃO RELAXA E PENDE DA BEIRADA DA CAMA.

REGINA: Pronto, agora vamos, Berta. Eu vou arrumar um quarto bonitinho para você. E lá você vai ter comida gostosa e uma cama limpinha para dormir.

BERTA: “Pra morrer” que você quer dizer! Me ajuda a sair dessa cama! (ELA LUTA PARA SE LEVANTAR)

REGINA: (INDO ATÉ ELA) Ah, não fica nervosa, Berta!

BERTA: Me ajuda a levantar. Anda! Cade o meu robe?

REGINA: Berta, você não está em condicoes de sair sacaricando por aí, não.

BERTA: Cala essa boca, para de me urubuzar! Fala pra Lena vir aqui. Ela vai me ajudar a carregar os meus cacarecos.

REGINA: Que que você decidiu, Berta?

BERTA: Ir embora.

REGINA: Para onde?

BERTA: Isso é problema meu.

REGINA: (APOS UMA PAUSA) Está bem, eu vou chamar a Lena. (BERTA LEVANTOU‑SE COM DIFICULDADE E AGORA CAMBALEIA EM DIREÇÃO À PENTEADEIRA)

BERTA: Ei, pera aí! Da uma olhada debaixo dessa bandeja. A bandeja do pente e da escova. (OFEGANTE, ELA SE DEIXA CAIR NUMA CADEIRA DE BALANCO) Você vai achar cinco pratas.

REGINA: Berta, não tem dinheiro nenhum debaixo dessa bandeja aí.

BERTA: ‘ta querendo dizer que eu estou dura?

REGINA: Você está dura há dez dias, Berta. Desde que você ficou doente, que você está dura.

BERTA: Mentirosa!

REGINA: (COM RAIVA) Não me ofende, Berta!

ELAS SE ENCARAM. UMA MENINA, VESTINDO O QUE PARECE SER UMA ROUPA DE GINASTICA FEITA DE CETIM, SURGE À PORTA E, CURIOSA, DA UMA ESPIADA PARA DENTRO. ELA SORRI E DESAPARECE.

BERTA: (FINALMENTE) Traz a Lena até aqui. Ela não vai armar pra cima de mim.

REGINA: (INDO ATÉ A PENTEADEIRA) Olha, Berta. Só para satisfazera sua vontade. Está vendo debaixo da bandeja? Não tem nada. Só este cartão que você recebeu do Charlie há muito tempo atras.

BERTA: (LENTAMENTE) Me roubaram. É, me roubaram. (FALANDO GRADATIVAMENTE MAIS RAPIDO) Só porque eu estou aqui, doente, sem eira nem beira, que nem consigo tomar conta de mim, que vão e me roubam! Se eu estivesse de posse da minha saude, você sabe o que que eu ia fazer? Eu estourava esse lugar, eu virava isso aqui de cabeca pra baixo! Eu ‘garrava de volta a grana que você me roubou, eu ‘rancava ela de onde você escondeu, sua velha…

REGINA: Berta, você gastou tudo, tudinho. Você comprou gim.

BERTA: Não!

REGINA: Você ficou doente numa noite de terca feira. Naquela noite, você comprou uma garrafa de gim. Isto eu posso jurar, Berta.

BERTA: Nem que você jurasse na Biblia eu acreditava. Chama a Lena! Isso é arapuca! (ELA SE LEVANTA E CAMBALEIA ATÉ A PORTA) Lena! Lena! Me chama a policia!

REGINA: (SOBRESSALTADA) Não, Berta!

BERTA: (AINDA MAIS ALTO) CHAMA A POLICIA!

TROMBANDO DE FRAQUEZA CONTRA A LATERAL DA PORTA, ELA SOLUCA, AMARGURADA, E COBRE OS OLHOS COM UMA DAS MÃOS. A ELETROLA RECOMECA A TOCAR. OUVE‑SE O ARRASTAR DOS PES DAS PESSOAS A DANCAR, LÁ FORA.

REGINA: Berta, se acalma. Agora sossega, vem, aqui.

BERTA: (VIRANDO‑SE PARA A OUTRA) Não vem me pedir calma, não, o bruaca velha. Me chama a policia, anda, senão eu…! (REGINA AGARRA‑A PELO BRACO E ELAS LUTAM, MAS BERTA SE SOLTA COM UM SAFANÃO) Eu vou registrar queixa de furto na Delegacia, nem que seja a ultima coisa que eu faco na vida! Você é capaz de roubar até esmola de cego ‑ e depois vem posar de piedosa. Entra aqui dentro e me cospe um papo vaselina de “padre, confissão”… ME CHAMA A POLICIA! (ELA ESMURRA A PAREDE E SOLUCA)

REGINA: (ATONITA) Berta, você está precisando de um bom calmante. Volta para a cama, meu bem, que eu vou te trazer dois calmantes e uma caixa de aspirina.

BERTA: (COM RAPIDEZ E NUMA SÓ EXPIRAÇÃO, OS OLHOS FECHADOS, A CABECA PARA TRAS, AS MÃOS CERRADAS) Você vai me devolver os meus vinte e cinco dolares que você me roubou de debaixo da bandeja do pente e da escova!

REGINA: Olha, Berta…

BERTA: (SEM MUDAR DE POSIÇÃO) Você vai me devolver ou eu vou te meter um processo no meio das fucas! (OS LABIOS TREMEM DE TENSÃO; UM FIO DE SALIVA BRILHA QUEIXO ABAIXO. ELA PARECE UMA PESSOA EM TRANSE CATATONICO) Eu tenho amigo nessa cidade. Gente importante! (EXULTANTE) Advogado, político! Eu me safo de qualquer artigo da lei que você tentar me enquadrar! (OS OLHOS BRILHAM, ARREGALADOS) Vadiagem? (ELA RI, DESVAIRADA) Essa é boa, né não? (PATETICA) Eu estou na posse dos meus direitos constitucionais! (A RISADA SE ESVAI E ELA CAMBALEIA ATÉ A CADEIRA DE BALANCO, PARA NELA AFUNDAR. COM MUITO MEDO, REGINA A OBSERVA. EM SEGUIDA, ELA CIRCUNDA BERTA CUIDADOSAMENTE E SAI PELA PORTA, ASSUSTADA, A ARFAR)

BERTA: Charlie, Charlie, você era um amorzinho, um amorzinho! (A CABECA BALANCA E ELA SORRI DE ANGUSTIA) Você me enganou tantas vezes, Charlie, que eu até perdi a conta. Me enganou, iludiu ‑ e casou com uma cantorazinha do coral da igreja ‑ oh, meu Deus! E eu te amo tanto que me doi toda por dentro só de olhar para essa tua fotografia. (O EXTASE SE ESVAI E RETORNA O OLHAR DE SUSPEITA ESQUIZOFRENICA) Cade aquela bruaca venenosa? Cade os meus dez dolares? Ei, OOOO!!! Volta aqui com o meu dinheiro! Eu rebento as tuas fucas, se eu te pego sacaricando por aí com o meu dinheiro!… Ah, Charlie… estou louca de dor de cabeca, Charlie… Não, amor. Fica comigo hoje de noite. (ELA SE LEVANTA DA CADEIRA DE BALANCO) Ei, você. Me traz uma compressa de gelo: estou com dor de cabeca… estou com uma ressaca dos infernos, meu bem! (ELA RI) Vadiagem… Vadia é a perereca da tua vó! Chama o meu advogado. Eu tenho prestigio nessa cidade. É… Minha familia é dona da metade dos pocos de petroleo do Estado de… de… Nevada. (ELA RI) Essa é boa, né não? (À PORTA, CHEGA LENA, UMA JUDIA MORENA DE SHORT E BLUSA DE CETIM COR DE ROSA. BERTA FITA‑A COM OS OLHOS SEMI-ABERTOS) E você, quem é?

LENA: Sou eu, a Lena.

BERTA: Ah, Lena, é? Senta aí, estica as pernas… Pega um cigarro, meu bem. Eu não estou bem. Aqui não tem cigarro nenhum. A Regina levou. Ela leva tudo o que é meu. Senta e… aceita um…

LENA: (À PORTA) A Regina me falou que você não estava muito bem, hoje à noite. Daí que eu resolvi dar uma passadinha, pra te ver.

BERTA: Essa é boa, né não? Eu estou bem. Eu volto pro batente agora de noite. Pode crer. Eu sempre dou a volta por cima, não dou, garota? Já me viu pedir arrego? Posso estar nu’a maré meio de azar agora, mas… é só isso! (ELA DA UMA PAUSA, COMO SE ESPERASSE APROVAÇÃO) É só isso, né não, Lena? Velha, eu não estou. Inda estou enxuta, não estou?

LENA: Claro que esta, Berta. (PAUSA)

BERTA: Então que que ‘ce esta rindo?

LENA: Eu não estou rindo, Berta.

BERTA: (COM UM VAGO SORRISO) Eu pensei que quem sabe você estava pensando que era engracado eu estar perguntando se eu ainda estava enxuta.

LENA: (APOS UMA PAUSA) Não, Berta. Você pensou errado.

BERTA: (ASPERA) Escuta aqui, o minha flor. Eu conheco o Prefeito desse fim de mundo. A gente é assim, um com o outro. Viu? Eu me safo de qualquer artigo da lei que você tentar me enquadrar e eu não quero nem saber! Vadiagem? Essa é boa! Pega a minha mala, faz favor, Lena. Cade? Já fui despejada de lugar muito melhor do que esse. (ELA SE LEVANTA E SE ARRASTA SEM RUMO PELO QUARTO. EM SEGUIDA, CAI NA CAMA. LENA VAI ATÉ A CAMA) Meu Deus, eu estou muito cansada. Vou ficar deitada até a minha cabeca parar de rodar… (REGINA APARECE À PORTA. LENA E ELA TROCAM OLHARES SIGNIFICATIVOS)

REGINA: E então, Berta, já resolveu?

BERTA: “Resolveu” o quê?

REGINA: O que que você vai fazer?

BERTA: Me deixa em paz. Eu estou cansada…

REGINA: (COM DISPLICENCIA) Telefonei para o hospital, Berta. Estão mandando uma ambulância para te pegar. Vão cuidar de você, num quarto limpinho.

BERTA: Manda eles me jogar no rio pra economizar dinheiro do governo. A ver estão com medo d’eu poluir a agua. Acho que eles vão ter é que cremar as carnes da Berta aqui, pra não espalhar epidemia. É o único jeito. Essa é boa! Olha só para ela, Lena: a bruaca metida a madame. Ela acha que tem um coração grande. Essa é boa, né não? A única coisa grande que ela tem esta no meio das pernas dela. É, a bruaca é velha! Ela entra aqui dentro e vomita um papo vaselina, que vai chamar padre, que vai me meter em casa de caridade… Pra cima de mim, não, camaleão! Pra cima de mim, não, estou te avisando!

REGINA: (CONTROLANDO O ODIO) Seria bom que você tomasse cuidado com o que diz. Cuidado, que eles te metem numa camisa de forca ‑ e acabou‑se o que era doce.

BERTA: (LEVANTANDO‑SE DE SUBITO) Passa fora! (ELA ATIRA UM COPO EM REGINA, QUE SOLTA UM GRITO E SAI CORRENDO) Cadela dos infernos! (BERTA VIRA‑SE PARA LENA) Senta e escreve uma carta pra mim. Tem papel debaixo daquela boneca.

LENA: (OLHANDO SOBRE A PENTEADEIRA) Tem não, Berta.

BERTA: Não tem? Até isso me roubaram! (LENA VAI ATÉ A MESA DE CABECEIRA E APANHA UM BLOCO DE PAPEL)

LENA: Pronto, Berta.

BERTA: ‘ta bem. Escreve uma carta. Para o Senhor Charlie Aldrich, proprietario da maior loja de ferragem da Cidade de Memphis. Escreveu aí?

LENA: Qual é o endereco, Berta?

BERTA: É Avenida Central, cinco meia duzia tres. Pegou? Muito bem. Senhor Charlie Aldrich. Querido Charlie. Tem gente armando para me meter no manicomio municipal. Sob a acusação de atividade criminosa, sem o devido processo da lei. Escreveu aí? (LENA PARA DE ESCREVER) E eu estou na posse da minha saude, como você está, da sua saude, neste exato momento, Charlie. Sempre regulei bem da bola e sempre assim será. Escreveu aí? (LENA BAIXA OS OLHOS E FINGE ESCREVER) Assim sendo, vem até aqui, Charlie, e paga a minha fianca e me leva embora daqui, meu amor, por amor aos velhos tempos. Envio‑lhe junto com esta todo o meu amor… e muitos beijos, da sua amada de sempre, Berta. … Pera aí. Escreve um P.S. e pergunta “como vai a sua esposa e a sua”… Não! Risca! Isso não tem nada a ver. Risca, risca tudo, risca toda a carta! (O SILENCIO É DOLOROSO. BERTA SUSPIRA E, LENTAMENTE, VIRA‑SE SOBRE A CAMA, PUXANDO PARA TRAS OS CABELOS SEM BRILHO) Pega outra folha de papel. (LENA SE LEVANTA E ARRANCA OUTRA FOLHA DO BLOCO. UMA MENINA COLOCA A CABECA À PORTA)

MENINA: Lena!

LENA: Já vou.

BERTA: Pegou?

LENA: Peguei.

BERTA: Muito bem. Agora, diz só isso: Berta manda lembranças… para o Charlie… com todo amor. Escreveu aí? Berta manda lembranças… para o Charlie…

LENA: (LEVANTANDO‑SE E ENDIREITANDO A BLUSA) Escrevi.

BERTA: Com todo… amor… (LÁ FORA, A MUSICA RECOMEÇA)

CAI O PANO


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