31
Maio
13

CATASTROFE – de Samuel Beckett.

 

 

CATASTROFE

de
Samuel Beckett.

 

 

Traducao
de
Flavio de Campos.

Fevereiro, 1984.

 

————–
Personagens:
Diretor (D).
Sua Assistente (A).
Protagonista (P).
Lucas, iluminador, nos bastidores (L).

Ensaio.
Retoques finais na ultima cena.
Palco vazio. A e L acabaram de montar a luz; D acabou de chegar. D, numa poltrona, na direita‑baixa; casaco de peles; touca de peles para combinar; idade e fisico nao sao relevantes.
A esta de pe ao lado de D; ela veste um guarda‑po branco; nada sobre a cabeca; lapis preso na orelha; idade e fisico nao sao relevantes.
P, no centro do palco, de pe sobre uma caixa preta de meio metro de altura; chapeu preto de abas largas; camisolao preto ate os tornozelos; descalco; cabeca vergada a frente; maos nos bolsos; idade e fisico nao sao relevantes.
D e A observam P.

Pausa longa.

A ‑ (FINALMENTE) Gosta dele assim?

D ‑ Mais ou menos. (PAUSA) Para que o praticavel?

A ‑ Para a primeira fila ver os pes. (PAUSA)

D ‑ Para que o chapeu?

A ‑ Para ajudar a esconder o rosto. (PAUSA)

D ‑ Para que o camisolao?

A ‑ Para ele ficar todo preto. (PAUSA)

D ‑ Que que ele usa por baixo?

(A SE MOVE EM DIRECAO A P.)

D ‑ Fala.

(A PARA.)

A ‑ Roupa de dormir.

D ‑ Cor?

A ‑ Cinza. (D PEGA UM CHARUTO.)

D ‑ Fogo.

(A VOLTA, ACENDE O CHARUTO, FICA IMOVEL. D FUMA.)

D ‑ Como e a cabeca?

A ‑ Voce ja viu.

D ‑ Eu esqueco.

(A VAI ATE P.)

D ‑ Fala.

(A PARA.)

A ‑ Ficando careca; cabelo ralo.

D ‑ Cor?

A ‑ Cinza. (PAUSA)

D ‑ Para que mao no bolso?

A ‑ Para ele ficar todo preto.

D ‑ Nao devia.

A ‑ Vou tomar nota.

(ELA PEGA UM BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)

A ‑ Maos expostas.

(ELA GUARDA BLOQUINHO E LAPIS.)

D ‑ Como e que sao?

(A CONFUSA.)

D ‑ (IRRITADO) As maos, como e que elas sao?

A ‑ Voce ja viu.

D ‑ Eu esqueco.

A ‑ Doentes. Degeneracao fibrosa.

D ‑ Que nem uma garra?

A ‑ Pode ser.

D ‑ Duas garras?

A ‑ So se ele fechar as maos.

D ‑ Nao pode.

A ‑ Vou tomar nota.

(ELA PEGA O BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)

A ‑ Maos abertas.

(ELA GUARDA BLOQUINHO E LAPIS.)

D ‑ Fogo.

(A VOLTA, REACENDE O CHARUTO, FICA IMOVEL. D FUMA.)

D ‑ Bom. Vamos dar uma olhada.

(A CONFUSA.)

D ‑ (IRRITADO) Anda. Solta aquele camisolao.

(D CONSULTA O RELOGIO.)

D ‑ Corre com isso. Eu tenho uma reuniao.

(A VAI ATE P; TIRA O CAMISOLAO.
P SE SUBMETE, PASSIVO.
A RECUA, O CAMISOLAO NOS BRACOS.
P DE PIJAMA CINZA E VELHO, CABECA BAIXA, PUNHOS CERRADOS. PAUSA.)

A ‑ Acha melhor sem? (PAUSA) Ele esta tremendo.
D ‑ Tem coisa demais. Chapeu.

(A AVANCA, TIRA O CHAPEU, RECUA, O CHAPEU NA MAO. PAUSA.)

A ‑ Gosta daquele cranio?

D ‑ Precisa embranquecer.

A ‑ Vou tomar nota.

(ELA LARGA CHAPEU E CAMISOLAO, PEGA BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)

A ‑ Embranquecer cranio.

(ELA GUARDA BLOQUINHO E LAPIS.)

D ‑ As maos.

(A CONFUSA.)

D ‑ (IRRITADO) Os punhos. Anda logo.

(A AVANCA, ABRE OS PUNHOS, RECUA.)

D ‑ E embranquecidos.

A ‑ Vou tomar nota.

(ELA PEGA BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)

A ‑ Embranquecer maos.

(ELA GUARDA BLOQUINHO E LAPIS. ELES OBSERVAM P.)

D ‑ (FINALMENTE) Tem coisa errada. (ANGUSTIADO) O que que e?

A ‑ (TIMIDAMENTE) Que tal se… e se a gente… que tal juntar as duas?

D ‑ Nao custa tentar. (A AVANCA, JUNTA AS MAOS, RECUA.) Mais alto.

(A AVANCA, LEVANTA AS MAOS UNIDAS A ALTURA DA CINTURA, RECUA.)

D ‑ Um pouquinho mais.

(A AVANCA, LEVANTA AS MAOS UNIDAS A ALTURA DO PEITO.)

D ‑ Para! (A RECUA.) Melhor. Esta quase. Fogo.

(A VOLTA, REACENDE O CHARUTO, FICA IMOVEL. D FUMA.)

A ‑ Ele esta tremendo.

D ‑ Faz bem para o coracao.

(PAUSA)

A ‑ (TIMIDAMENTE) Que tal uma… pequena… so uma mordaca?

D ‑ Pelamor de Deus! Essa mania de clareza! Todo i pingado ate o infinito! Pequena mordaca! Pelamor de Deus!

A ‑ Certeza de que ele nao vai falar?

D ‑ Nem um pio.

(ELE CONSULTA SEU RELOGIO.)

D ‑ Na hora aga. Vou ver da plateia como e que esta.

(SAI D, PARA NAO APARECER MAIS.
A SE JOGA NA POLTRONA; SE POE DE PE MAL TINHA SENTADO; PEGA UM TRAPO, ESFREGA COM FORCA O ENCOSTO E O ASSENTO DA POLTRONA, JOGA O TRAPO FORA, SENTA DE NOVO.
PAUSA.)

D ‑ (DE FORA, QUEIXOSO) Nao da para eu ver os dedos do pe. (IRRITADO) Estou sentado na primeira fila e nao consigo ver os dedos do pe.

A ‑ (LEVANTANDO‑SE) Vou tomar nota.

(ELA PEGA BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)

A ‑ Levantar praticavel.

D ‑ Tem uma nesga de rosto.

A ‑ Vou tomar nota.

(ELA PEGA BLOQUINHO, LAPIS; FAZ QUE VAI ANOTAR.)

D ‑ Abaixar a cabeca.

(A CONFUSA.)

D ‑ (IRRITADO) Anda logo. Abaixa a cabeca dele.

(A GUARDA BLOQUINHO E LAPIS, VAI ATE P, ABAIXA‑LHE A CABECA UM POUCO MAIS, RECUA.)

D ‑ Mais um pouquinho.

(A AVANCA, ABAIXA‑LHE A CABECA UM POUCO MAIS.)

D ‑ Aí!

(A RECUA.

D ‑ Bom. Esta ficando bom. (PAUSA) Podia ter um pouco mais de nudez…

A ‑ Vou tomar nota.

(ELA PEGA BLOQUINHO, FAZ QUE VAI PEGAR LAPIS.)

D ‑ Anda logo! Anda logo!

(A GUARDA BLOQUINHO, VAI ATE P, HESITA.)

D ‑ Mostra o pescoco.

(A ABRE OS BOTOES DE CIMA, ABRE AS GOLAS, RECUA.)

D ‑ As pernas. As canelas.

(A AVANCA, ENROLA ATE ABAIXO DO JOELHO UMA DAS PERNAS DA
CALCA, RECUA.)

D ‑ A outra.

(O MESMO PARA A OUTRA PERNA, RECUA.)

D ‑ Mais alto. Os joelhos.

(A AVANCA, ENROLA AS CALCAS ACIMA DOS JOELHOS, RECUA.)

D ‑ E embranquecer.

A ‑ Vou tomar nota.

(ELA PEGA BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)

A ‑ Embranquecer toda a carne.

D ‑ Esta quase. O Lucas está por ai?

A ‑ (CHAMANDO) Lucas!

(PAUSA. MAIS ALTO.)

A ‑ Lucas!

L ‑ (DE FORA, DISTANTE) Estou escutando.

(PAUSA. MAIS PERTO.)

L ‑ Qual é o problema, dessa vez?

A ‑ O Lucas está.

D ‑ Black‑out no palco.

L ‑ O que?

(A TRANSMITE EM TERMOS TECNICOS. FADE‑OUT DA LUZ GERAL. LUZ SÓ EM P. A NA SOMBRA.)

D ‑ Só a cabeca.

L ‑ O que?

(A TRANSMITE EM TERMOS TECNICOS. FADE‑OUT DA LUZ SOBRE O CORPO DE P. LUZ SO NA CABECA.
LONGA PAUSA.)

D ‑ Beleza.

(PAUSA)

A ‑ (TIMIDAMENTE) Que tal se ele… que tal se… que tal levantar a cabeca dele… um instantinho… mostrar o rosto… so um instantinho?

D ‑ Pelamor de Deus! Que mais? Levantar a cabeca! Onde e que voce acha que a gente está? Na Patagonia? Levantar a cabeca! Pelamor de Deus!

(PAUSA)

D ‑ Bem. Aí esta a nossa catastrofe. Na bucha. Mais uma e eu me mando.

A ‑ (PARA L) Mais uma e ele se manda.

(FADE‑IN NO CORPO DE P. PAUSA.
FADE‑IN DA LUZ GERAL.)

D ‑ Para!

(PAUSA)

D ‑ Agora… só quero ver eles…

(FADE‑OUT DA LUZ GERAL.
PAUSA. FADE‑OUT DA LUZ NO CORPO. LUZ SO NA CABECA. LONGA PAUSA.)

D ‑ Maravilha! Todo mundo a bater palma de pé. Dá para ouvir daqui.

PAUSA.

ENXURRADA DE APLAUSOS AO LONGE.

P ERGUE A CABECA, FITA A PLATEIA.

O APLAUSO DIMINUI, MORRE.

LONGA PAUSA.

FADE‑OUT DA LUZ NO ROSTO


0 Respostas to “CATASTROFE – de Samuel Beckett.”



  1. Deixe um Comentário

Deixe um comentário