CATASTROFE
de
Samuel Beckett.
Traducao
de
Flavio de Campos.
Fevereiro, 1984.
————–
Personagens:
Diretor (D).
Sua Assistente (A).
Protagonista (P).
Lucas, iluminador, nos bastidores (L).
Ensaio.
Retoques finais na ultima cena.
Palco vazio. A e L acabaram de montar a luz; D acabou de chegar. D, numa poltrona, na direita‑baixa; casaco de peles; touca de peles para combinar; idade e fisico nao sao relevantes.
A esta de pe ao lado de D; ela veste um guarda‑po branco; nada sobre a cabeca; lapis preso na orelha; idade e fisico nao sao relevantes.
P, no centro do palco, de pe sobre uma caixa preta de meio metro de altura; chapeu preto de abas largas; camisolao preto ate os tornozelos; descalco; cabeca vergada a frente; maos nos bolsos; idade e fisico nao sao relevantes.
D e A observam P.
Pausa longa.
A ‑ (FINALMENTE) Gosta dele assim?
D ‑ Mais ou menos. (PAUSA) Para que o praticavel?
A ‑ Para a primeira fila ver os pes. (PAUSA)
D ‑ Para que o chapeu?
A ‑ Para ajudar a esconder o rosto. (PAUSA)
D ‑ Para que o camisolao?
A ‑ Para ele ficar todo preto. (PAUSA)
D ‑ Que que ele usa por baixo?
(A SE MOVE EM DIRECAO A P.)
D ‑ Fala.
(A PARA.)
A ‑ Roupa de dormir.
D ‑ Cor?
A ‑ Cinza. (D PEGA UM CHARUTO.)
D ‑ Fogo.
(A VOLTA, ACENDE O CHARUTO, FICA IMOVEL. D FUMA.)
D ‑ Como e a cabeca?
A ‑ Voce ja viu.
D ‑ Eu esqueco.
(A VAI ATE P.)
D ‑ Fala.
(A PARA.)
A ‑ Ficando careca; cabelo ralo.
D ‑ Cor?
A ‑ Cinza. (PAUSA)
D ‑ Para que mao no bolso?
A ‑ Para ele ficar todo preto.
D ‑ Nao devia.
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA PEGA UM BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)
A ‑ Maos expostas.
(ELA GUARDA BLOQUINHO E LAPIS.)
D ‑ Como e que sao?
(A CONFUSA.)
D ‑ (IRRITADO) As maos, como e que elas sao?
A ‑ Voce ja viu.
D ‑ Eu esqueco.
A ‑ Doentes. Degeneracao fibrosa.
D ‑ Que nem uma garra?
A ‑ Pode ser.
D ‑ Duas garras?
A ‑ So se ele fechar as maos.
D ‑ Nao pode.
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA PEGA O BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)
A ‑ Maos abertas.
(ELA GUARDA BLOQUINHO E LAPIS.)
D ‑ Fogo.
(A VOLTA, REACENDE O CHARUTO, FICA IMOVEL. D FUMA.)
D ‑ Bom. Vamos dar uma olhada.
(A CONFUSA.)
D ‑ (IRRITADO) Anda. Solta aquele camisolao.
(D CONSULTA O RELOGIO.)
D ‑ Corre com isso. Eu tenho uma reuniao.
(A VAI ATE P; TIRA O CAMISOLAO.
P SE SUBMETE, PASSIVO.
A RECUA, O CAMISOLAO NOS BRACOS.
P DE PIJAMA CINZA E VELHO, CABECA BAIXA, PUNHOS CERRADOS. PAUSA.)
A ‑ Acha melhor sem? (PAUSA) Ele esta tremendo.
D ‑ Tem coisa demais. Chapeu.
(A AVANCA, TIRA O CHAPEU, RECUA, O CHAPEU NA MAO. PAUSA.)
A ‑ Gosta daquele cranio?
D ‑ Precisa embranquecer.
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA LARGA CHAPEU E CAMISOLAO, PEGA BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)
A ‑ Embranquecer cranio.
(ELA GUARDA BLOQUINHO E LAPIS.)
D ‑ As maos.
(A CONFUSA.)
D ‑ (IRRITADO) Os punhos. Anda logo.
(A AVANCA, ABRE OS PUNHOS, RECUA.)
D ‑ E embranquecidos.
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA PEGA BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)
A ‑ Embranquecer maos.
(ELA GUARDA BLOQUINHO E LAPIS. ELES OBSERVAM P.)
D ‑ (FINALMENTE) Tem coisa errada. (ANGUSTIADO) O que que e?
A ‑ (TIMIDAMENTE) Que tal se… e se a gente… que tal juntar as duas?
D ‑ Nao custa tentar. (A AVANCA, JUNTA AS MAOS, RECUA.) Mais alto.
(A AVANCA, LEVANTA AS MAOS UNIDAS A ALTURA DA CINTURA, RECUA.)
D ‑ Um pouquinho mais.
(A AVANCA, LEVANTA AS MAOS UNIDAS A ALTURA DO PEITO.)
D ‑ Para! (A RECUA.) Melhor. Esta quase. Fogo.
(A VOLTA, REACENDE O CHARUTO, FICA IMOVEL. D FUMA.)
A ‑ Ele esta tremendo.
D ‑ Faz bem para o coracao.
(PAUSA)
A ‑ (TIMIDAMENTE) Que tal uma… pequena… so uma mordaca?
D ‑ Pelamor de Deus! Essa mania de clareza! Todo i pingado ate o infinito! Pequena mordaca! Pelamor de Deus!
A ‑ Certeza de que ele nao vai falar?
D ‑ Nem um pio.
(ELE CONSULTA SEU RELOGIO.)
D ‑ Na hora aga. Vou ver da plateia como e que esta.
(SAI D, PARA NAO APARECER MAIS.
A SE JOGA NA POLTRONA; SE POE DE PE MAL TINHA SENTADO; PEGA UM TRAPO, ESFREGA COM FORCA O ENCOSTO E O ASSENTO DA POLTRONA, JOGA O TRAPO FORA, SENTA DE NOVO.
PAUSA.)
D ‑ (DE FORA, QUEIXOSO) Nao da para eu ver os dedos do pe. (IRRITADO) Estou sentado na primeira fila e nao consigo ver os dedos do pe.
A ‑ (LEVANTANDO‑SE) Vou tomar nota.
(ELA PEGA BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)
A ‑ Levantar praticavel.
D ‑ Tem uma nesga de rosto.
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA PEGA BLOQUINHO, LAPIS; FAZ QUE VAI ANOTAR.)
D ‑ Abaixar a cabeca.
(A CONFUSA.)
D ‑ (IRRITADO) Anda logo. Abaixa a cabeca dele.
(A GUARDA BLOQUINHO E LAPIS, VAI ATE P, ABAIXA‑LHE A CABECA UM POUCO MAIS, RECUA.)
D ‑ Mais um pouquinho.
(A AVANCA, ABAIXA‑LHE A CABECA UM POUCO MAIS.)
D ‑ Aí!
(A RECUA.
D ‑ Bom. Esta ficando bom. (PAUSA) Podia ter um pouco mais de nudez…
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA PEGA BLOQUINHO, FAZ QUE VAI PEGAR LAPIS.)
D ‑ Anda logo! Anda logo!
(A GUARDA BLOQUINHO, VAI ATE P, HESITA.)
D ‑ Mostra o pescoco.
(A ABRE OS BOTOES DE CIMA, ABRE AS GOLAS, RECUA.)
D ‑ As pernas. As canelas.
(A AVANCA, ENROLA ATE ABAIXO DO JOELHO UMA DAS PERNAS DA
CALCA, RECUA.)
D ‑ A outra.
(O MESMO PARA A OUTRA PERNA, RECUA.)
D ‑ Mais alto. Os joelhos.
(A AVANCA, ENROLA AS CALCAS ACIMA DOS JOELHOS, RECUA.)
D ‑ E embranquecer.
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA PEGA BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)
A ‑ Embranquecer toda a carne.
D ‑ Esta quase. O Lucas está por ai?
A ‑ (CHAMANDO) Lucas!
(PAUSA. MAIS ALTO.)
A ‑ Lucas!
L ‑ (DE FORA, DISTANTE) Estou escutando.
(PAUSA. MAIS PERTO.)
L ‑ Qual é o problema, dessa vez?
A ‑ O Lucas está.
D ‑ Black‑out no palco.
L ‑ O que?
(A TRANSMITE EM TERMOS TECNICOS. FADE‑OUT DA LUZ GERAL. LUZ SÓ EM P. A NA SOMBRA.)
D ‑ Só a cabeca.
L ‑ O que?
(A TRANSMITE EM TERMOS TECNICOS. FADE‑OUT DA LUZ SOBRE O CORPO DE P. LUZ SO NA CABECA.
LONGA PAUSA.)
D ‑ Beleza.
(PAUSA)
A ‑ (TIMIDAMENTE) Que tal se ele… que tal se… que tal levantar a cabeca dele… um instantinho… mostrar o rosto… so um instantinho?
D ‑ Pelamor de Deus! Que mais? Levantar a cabeca! Onde e que voce acha que a gente está? Na Patagonia? Levantar a cabeca! Pelamor de Deus!
(PAUSA)
D ‑ Bem. Aí esta a nossa catastrofe. Na bucha. Mais uma e eu me mando.
A ‑ (PARA L) Mais uma e ele se manda.
(FADE‑IN NO CORPO DE P. PAUSA.
FADE‑IN DA LUZ GERAL.)
D ‑ Para!
(PAUSA)
D ‑ Agora… só quero ver eles…
(FADE‑OUT DA LUZ GERAL.
PAUSA. FADE‑OUT DA LUZ NO CORPO. LUZ SO NA CABECA. LONGA PAUSA.)
D ‑ Maravilha! Todo mundo a bater palma de pé. Dá para ouvir daqui.
PAUSA.
ENXURRADA DE APLAUSOS AO LONGE.
P ERGUE A CABECA, FITA A PLATEIA.
O APLAUSO DIMINUI, MORRE.
LONGA PAUSA.
FADE‑OUT DA LUZ NO ROSTO
0 Respostas to “CATASTROFE – de Samuel Beckett.”