O CANTO DO CISNE
Estudo dramatico em um ato,
de Anton Chekov.
Tradução
de
Flavio de Campos.
Marco, 1984.
= Da versao francesa de Genia Cannac e Georges Perros. Paris, Gallimard, 1966.
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Personagens:
– Vassili Vassilievitch Svetlovidov, ator, 68 anos.
– Nikita Ivanytch, Ponto de teatro.
A acao se passa a noite, depois do espetaculo, num palco de um teatro, numa pequena cidade do interior. A direita, uma carreira de portas toscas em madeira clara que dao para os camarins. A esquerda e ao fundo do palco, muitos aderecos. No centro do palco, um banquinho virado de cabeca para baixo. A luz é pouca.
I
Svetlovidov, caracterizado como Calchas, sai de seu camarim segurando uma vela. Ele ri às gargalhadas.
Sv: Essa e boa! Essa e formidavel! Cochilar no camarim! O espetaculo acabou ha muito tempo, todo mundo ja foi embora e eu a cochilar como o mais tranquilo dos homens. Ah! velho gaga, velho gaga! Pobre velho! Fica bebendo e acaba dormindo sentado! Essa e boa! Parabens, meu garoto. (ELE CHAMA.) Egorka! Egorka! Deus do ceu! Petrouchka! Eles estao dormindo, os pilantras! Que os diabos, que toda urucubaca do mundo os carregue! Egorka!
ELE DESVIRA O BANQUINHO, SENTA-SE, COLOCA A VELA NO CHAO.
Sv: Nao se escuta nada… So o eco me responde… E nisso que da pagar esses garotos. Tres rublos para cada um… agora, para achar eles… nem mesmo com cachorro policial… Sumiram, os patifes! Na certa fecharam todas as portas a chave…
ELE SACODE VIOLENTAMENTE A CABECA.
Sv: Acho que estou bebado. O que eu devia mesmo era meter uma cerveja com vinho pela goela abaixo em homenagem a esse espetaculo. Meus cabelos estao um bagaco, e esse gosto na boca… repugnante… E triste.
PAUSA
Sv: Digno de um idiota… Olhem so esse velho idiota que se embebedou. Para comemorar o que? Vao perguntar a vovozinha! Ai, meu Deus! Os rins ja nao servem para mais nada, a cabeca estoura, arrepios pelo corpo todo, e dentro da alma esta tudo frio, preto, que nem numa tumba. Pedaco de velho festeiro, se voce pouco se importa com a sua saude, tende ao menos piedade da sua velhice.
PAUSA
Sv: Pois é, a velhice… De que que adiantou iludir, representar, fingir: a vida acabou… sessenta e oito anos nas costas… Adeus, carcaca… voce nao os fara voltar… A garrafa esta vazia… So uma gotinha no fundo… a borra… Isso mesmo… Pois e, meu pobre Vassia… Querendo, ou nao querendo, esta na hora de ensaiar o papel de defunto… A morte, nossa Mae, nao esta nada longe…
ELE OLHA A SUA FRENTE.
Sv: Olha so, quarenta e cinco anos que eu faco teatro, e tenho para mim que e a primeira vez que vejo um no meio da noite… E, a primeira vez… Gozado, mesmo assim eu nao tenho nada para dizer.
ELE SE APROXIMA DA BOCA DO PALCO.
Sv: Nao se ve patavina. Mal distingo a caixa do Ponto… O camarote daqueles senhores… a mesa… o resto, nada, trevas. Um buraco negro sem fundo, uma tumba, a morte em pessoa la dentro… Brrr… Que frio! Vem da plateia, como de um tunel de vento… Lugar ideal para se evocar os espiritos! Estou com medo que o diabo me carregue… Arrepios na espinha…
ELE CHAMA.
Sv: Petrouchka! Egorka! Onde e que voces estao, seus diabos! Senhor, que que tem se eu evoco o Diabo! Ah, meu Deus, chega de blasfemias. E para de beber, que voce esta velho, vai morrer logo, logo… Aos sessenta e oito anos as pessoas de bem, elas vao a missa, elas se preparam para a morte. Nao como voce que… Ah, Senhor! Os palavroes, essa goela de beberrao, essa roupa de palhaco… E deploravel… Vou correndo trocar de roupa… Estou com medo! Se eu fico aqui a noite toda, eu morro e de medo…
ELE SE DIRIGE A SEU CAMARIM. NESTE MOMENTO, NIKITA IVANOVITCH, DE CAMISA BRANCA, SAI DA PORTA MAIS DISTANTE E SURGE NO FUNDO DO PALCO.
II
AO VER NIKITA, SVETLOVIDOV SOLTA UM GRITO DE PAVOR E RECUA.
Svetlovidov: Que e isso? O que? Que que voce quer?
ELE BATE COM O PE NO CHAO.
Sv: Quem e voce?
Nikita: Sou eu, senhor.
Sv: Eu quem?
Ni: (SE APROXIMANDO LENTAMENTE.) Sou eu, senhor… Nikita Ivanovitch, o Ponto… Sou eu, Vassili Vassilevitch.
EXAUSTO, SVETLOVIDOV SE DEIXA CAIR NO BANQUINHO; ELE OFEGA E TREME TODO.
Sv: Meu Deus! Quem? E voce… voce, Nikitouchka? Para… Para que voce esta aqui?
Ni: Eu durmo aqui, senhor, num camarim… Mas, pelo amor de Deus, nao conta para Alexis Fomitch, senhor… E o unico lugar que eu tenho para dormir, palavra de honra…
Sv: E voce, Nikitouchka… Meu Deus, meu Deus. Dezesseis cortinas… tres premiacoes… uma porcao de outras coisas… Todo mundo entusiasmado, mas ninguem para acordar o velho bebado, levar ele para casa… Eu estou e velho, Nikitouchka… Sessenta e oito anos… Eu estou doente… Meu pobre espirito esta atormentado…
ELE CHORA, ABRACADO AO PONTO.
Sv: Nao me deixa sozinho, Nikitouchka… Eu estou velho, doente, perto da hora da morte… Eu estou com medo. Eu estou com medo!
Ni: (COM AFEICAO E RESPEITO) O senhor devia voltar para casa, Vassili Vassilievitch.
Sv: Eu nao quero. Eu nao tenho casa. Nao, nao, nao…
Ni: Meu senhor! Sera que esqueceu onde mora?
Sv: Eu nao quero ir para casa, nao quero! Eu fico sozinho la. Eu nao tenho ninguem, Nikitouchka. Nem parente, nem mulher, nem filhos. Sozinho. Que nem vento na planicie. Se eu morro, ninguem vai chorar por mim. E eu tenho muito medo de ficar sozinho. Ninguem para cuidar de mim, me consolar, me botar na cama quando estou bebado. Quem sou eu? Quem precisa de mim? Quem me ama? Ninguem, Nikitouchka, ninguem!
Ni: (EM MEIO A LAGRIMAS) O publico, o publico ama o senhor, Vassili Vassilievitch.
Sv: O publico? Ele foi embora, ele esta dormindo, ele esqueceu esse bufao. Nao, ninguem precisa de mim, ninguem me ama. Eu nao tenho nem mulher, nem filhos…
Ni: Bah! Nao tem porque se preocupar.
Sv: Mas eu estou vivo, Nikitouchka. Nao e agua, e sangue que corre nas minhas veias. Eu sou bem nascido, de boa familia… Antes de cair nesse buraco, eu era militar, oficial de artilharia. E – ah, se voce tivesse me visto! – que folgazao! Bem apessoado, honesto, corajoso, ardente. Meu Deus, e tudo isso, para onde e que foi tudo isso? E entao, Nikitouchka, eu nao fui um ator magnifico?
ELE SE LEVANTA, APOIANDO-SE NO BRACO DO PONTO.
Sv: Que fim levou esse tempo todo? Meu Deus! De repente, olhei nesse buraco e me lembrei de tudo, tudo. Foi esse buraco que engoliu quarenta e cinco anos da minha vida. E que vida! Olhando para ela, eu revejo cada detalhe, como eu vejo agora cada ruga do teu rosto. A pujanca da minha
juventude, a fe, o ardor, o amor! As mulheres, Nikitouchka!
Ni: Vassili Vassilievitch, esta na hora de voce descansar.
Sv: Uma vez, eu estava comecando – um ator comecando a se apaixonar por sua arte – uma moca, me lembro bem, ela se apaixonou por mim por causa do meu talento. Era bonita, esbelta como um lirio, jovem, inocente, pura e ardente como manha de verao. O azul do seu olhar, seu sorriso maravilhoso faziam recuar ate mesmo a noite. “As ondas do mar se quebram sobre o rochedo. Mas nem as pedras, nem as espumas, nem as montanhas nevadas teriam resistido as ondas dos seus cabelos.” Uma vez, me lembro bem, eu estava diante dela, como agora, aqui com voce… Ela estava mais linda do que nunca, e seu olhar… ah! dele eu nao esqueco, nem mesmo na tumba! O carinho, o aveludado, a profundidade desse olhar, o arrebol da juventude… Embriagado, louco de felicidade, eu caio a seus pes, eu peco a sua mao! (COM UMA VOZ ESMAIDA) E voce sabe o que que ela me respondeu? Hem? “Largue o teatro!” Voce compreende? “Lar-gue-o-te-a-tro.” Ela podia se apaixonar por um ator, mas casar com ele, nunca! Naquela noite, me lembro bem, eu tinha espetaculo, um papel infame de farsante. E, enquanto representava, eu senti meus olhos se abrirem. E, compreendi que a arte sagrada nao existia, que tudo era engodo e mentira, que eu nao passava de um escravo, um fantoche para os ociosos, um bufao, um farsante. E o publico, eu tambem compreendi o que ele era. Depois disso, nao acreditei mais em aplausos, em coroas de louro, em delirios de entusiasmo. Pois e, Nikitouchka, me aplaudem, pagam um rublo por minha fotografia, mas o publico me despreza. Para eles eu sou menos que nada, um fantoche! Essa gente toda quer me conhecer – por pura vaidade – mas nunca se rebaixam a ponto de me entregarem sua irma ou sua filha em casamento. Nao acredito mais no publico!
ELE SE JOGA NO BANQUINHO.
Sv: Nao acredito mais.
Ni: O senhor nao me parece bem, Vassili Vassilievitch. E, para falar a verdade, o senhor me da ate medo. Que tal irmos embora? Por favor!
Sv: Foi ai que eu vi tudo – e isso me custou caro. Depois dela, dessa moca, eu dei de andar para la, para ca, sem eira nem beira, a viver a esmo, sem pensar no futuro. Fiz o bufao, o bobo, o imbecil. Eu era ma companhia – mas que artista que eu era! que talento! Mas esse talento, eu enterrei, eu deformei; vulgarizei minha linguagem, perdi a imagem e a semelhanca do divino. Foi esse buraco negro ai que me engoliu, me devorou. E eu nao tinha me dado conta disso ate essa noite. Agora eu dei por mim… olhei para tras… Estou com sessenta e oito anos. Acabo de ver minha velhice. Minha
cancao chegou ao fim! (ELE SOLUCA.) Minha cancao chegou ao fim!
Ni: Vassili Vassilievitch! Meu paizinho, meu amigo… Vamos la, acalme-se. Meu Deus! (ELE CHAMA.) Petrouchka! Egorka!
Sv: Que talento, sim, e que vigor! E que diccao! Voce nao imagina quanto sentimento, quanta finesse, que cordas vocais…
ELE BATE NO PEITO.
…dentro desse peito! De tirar a respiracao… Meu velho, escuta… deixa eu recuperar o folego. Tome, por exemplo, Godounov:
Foi a sombra do Terrivel quem me adotou
e quem, de sua tumba, me chama Dimitri,
a minha volta ela salvou os povos,
fez de Boris minha vitima prometida.
Sou o Tsarevitch. Basta! Basta!
Nao me rebaixo diante da altiva Polonaise. (1)
Nada mal, hem? (ANIMANDO-SE.) Escuta, o Rei Lear. Voce sabe: ceu escuro, chuva, to-rovaao, os relampagos – zas! – rasgando o ceu. E, no meio:
Soprai, ventos, rasgai vossas bochechas! Furia! Soprai!
Cataratas e furacoes, jorrai,
Inundai os campanarios, afogai os cataventos!
Vos, fogos sulfuricos, velozes como pensamento,
Arautos dos raios que ceifam carvalhos,
Queimai minha cabeca branca! E vos, trovao que tudo treme,
Acaçapai a densa rotundidade do mundo!
Estilhacai os moldes da natureza; cuspi, ja, todos os germes
De que e feito o homem ingrato!
(COM IMPACIENCIA) Depressa, a replica do Bobo.
ELE BATE O PE.
Sv: Me da, vai, a replica do Bobo, eu nao tenho tempo!
Ni: (REPRESENTANDO O BOBO.) Ah, titio, mais vale agua benta da corte em casa seca do que agua de chuva no relento. Bondoso titio, entra e pede a bencao a suas filhas. Essa noite aqui nao tem do nem do sabio nem do bobo.
Sv: Ribombai todo o vosso ventre! Cuspi, fogo! Despencai, chuva! Nao existe chuva nem vento, trovao nem fogo que sejam minhas filhas. Vos, elementos, nao vos cobro gratidao; nunca vos dei reino, nunca vos chamei de filhas… (2)
… Que forca! que talento! que artista! Vamos em frente. Vamos representar outra coisa qualquer… para reviver o passado. Tomemos…
ELE REBENTA NUM RISO ALEGRE.
…Hamlet. Vamos la, eu comeco… Mas por onde comecar? Pronto! Eu fico ali.
ELE REPRESENTA O HAMLET.
… Ah! as flautas! Deixe-me ver uma. (A NIKITA) Voce, para resolver isso logo; por que voce fica andando por ai, tentando pegar o meu ar, como se fosse me lancar numa armadilha?
Ni: Ah, senhor, se meu zelo e desmesurado, minha afeicao peca pela rudeza.
Sv: Eu nao entendo bem isso. Quer tocar essa flauta?
Ni: Senhor, eu nao sei.
Sv: Eu lhe peco.
Ni: Acredite, eu nao sei.
Sv: Eu lhe suplico.
Ni: Nao sei uma nota, senhor.
Sv: E tao facil quanto mentir. Controle esses furos com os dedos, sopre o ar pela boca e ela emitira a mais eloquente das melodias. Veja, esses sao os registros.
Ni: Mas deles eu nao consigo tirar qualquer pio de harmonia; eu nao possuo a arte.
Sv: Ora, veja bem em que coisa desprezivel voce me transforma. Queria fazer de mim o seu instrumento, parecia conhecer os meus registros, queria arrancar o coracao do meu misterio, fazer soar desde a minha nota mais baixa ate o topo da minha escala. Existe muita musica e excelente voz nesse pequeno orgao, e nem assim voce e capaz de faze-lo falar. Pelo sangue dos ceus, voce acha que sou mais facil de ser tocado do que uma flauta? Pode me chamar do instrumento que quiser; apesar de poder me dedilhar, voce nao consegue me tocar. (3)
ELE DA GARGALHADAS E APLAUDE.
Sv: Bravo! Bis! Bravo! Qual foi o diabo que falou em velhice? A velhice nao existe; bobagem,
tolice! Quando o vigor jorra por todas as veias, isso e a juventude, o frescor, a vida! Onde existe talento, Nikitouchka, nao existe velhice! Voce nao responde, nao e? Esta atordoado, Nikitouchka! Espera, deixa eu retomar o folego… Ah! Senhor, meu Deus! E essa, escuta so, que finesse, que musica! Silencio… Shii…!
A noite ucraniana esta calma
O ceu, transparente; as estrelas rebrilham,
O ar se deixa vencer pelo sono,
As folhas dos choupos tremilicam um nada… (4)
OUVE-SE O RUIDO DE UMA PORTA QUE SE ABRE.
Sv: Que e isso?
Ni: Com certeza Petrouchka e Egorka voltaram… Que talento, Vassili Vassilievitch! Que talento!
Sv: (EM DIRECAO A PORTA) Aqui, minhas aguias! (PARA NIKITA) Vamos nos vestir. Que velhice, que nada. Bobagem, tolice.
ELE RI ALEGREMENTE.
Sv: Mas por que que voce esta chorando? Meu bobo querido, para que derramar lagrimas? Ah! Isso nao esta certo! De jeito nenhum! Anda, anda, meu velho, nao me olhe com essa cara. Por que que voce esta me olhando? Anda, anda…
ELE O ABRACA E FALA POR ENTRE LAGRIMAS.
Sv: Nao se deve chorar… Onde existe arte e talento, antidotos da velhice, da solidao, da doenca, onde a propria morte quase… (ELE CHORA.) Nao, Nikitouchka, nossa cancao chegou ao fim… Sera que sou so talento? Um bagaco, isso, gelo derretido, prego enferrujado. E voce, voce nao passa de um velho rato de teatro, um Ponto… Vamos embora daqui.
ELES SE DIRIGEM A PORTA.
Sv: Sera que ainda tenho talento? Nas pecas sérias, eu so sirvo para figurar no sequito de Fortinbras… e mesmo para isso eu estou muito velho… estou mesmo… Voce se lembra dessa
passagem do Otelo, Nikitouchka?
Ah! Agora, para sempre,
Adeus, paz de espirito, adeus, contentamento!
Adeus, tropas emplumadas, adeus, grandes guerras
Que fazem da ambicao virtude! Ah, adeus!
Adeus, cavalo e relincho, adeus, trombeta e estridulo;
E o tambor instigante, o pifano ensurdecedor,
O estandarte real e toda a beleza,
Orgulho, pompa e circunstancia de guerra gloriosa! (5)
Ni: Que talento! Que talento!
Sv: Ou entao, escuta so mais essa:
Vou-me embora de Moscou. Nunca mais vou voltar.
Parto. Para o meu coracao ulcerado,
Por entre a imensidao da natureza, ao longe,
Vou procurar abrigo. Avante com a minha carroca! (6)
ELE SAI COM NIKITA IVANYTCH.
A CORTINA CAI LENTAMENTE.
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Notas:
1. Pouchkine. BORIS GODOUNOV.
2. REI LEAR. ato III, cena II.
3. HAMLET. ato III, cena II.
4. Pouchkine. POLTAVA.
5. OTELO. ato III, cena III.
6. Griboiedov. SAGACIDADE EM DEMASIA E NOCIVO.
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