UMA BREVE INTRODUÇÃO
Flávio de Campos
Wallace Stevens (1879‑1955) se insere nesta tradição de escritores que, eminentemente poetas, incursionaram palco adentro, talvez à procura da concretude que as idéias e imagens ganhavam ali.
Entre nós, Fernando Pessoa executou movimento semelhante com seus belíssimos “Poemas Dramáticos” ‑ “Na Flor esta do Alheamento”, “O Marinheiro” e “Primeiro Fausto”. Na Irlanda, W. B. Yeats (1865‑1939) foi outro que usou o palco ‑ e de maneira bastante mais freqüente ‑ para bordar este mesmo caleidoscópio no qual as coisas vistas apresentam frestas através das quais o olhar do espectador é convidado a penetrar; no qual o aparente não representa a idéia, mas a evoca. Nas obras destes poetas subjaz um fio segundo o qual as “idéias de ordem”, se vistas e evocadas (ou invocadas?) com a clareza com que se manifestam, carregam uma homologia com as forças que ordenam as coisas da vida, i.e., lhes são correspondentes. Esta lista de autores poderia ter seguimento com James Joyce, Mallarmé, e. e. cummings, etc.
Fica evidente que estas peças ‑ que se desenham fundamental-mente como murais de idéias, como a que apresentamos a seguir ‑ não gozam dos melhores favores nesses nossos dias. Hoje, sob o jugo das emoções e produtos humanos, os esforços teatrais (exceção feita aos “absurdistas” e alguns metafísicos) tendem a desconsiderar, a entender como não teatral aquelas suas obras que não privilegiam as regras de conflito e enredo. Se de fato não são drama por ignorarem os trilhos da ação dramática, são teatro, já que apresentam fatias de vida num palco. E, no caso desta “Três viajantes contemplam um amanhecer” de Wallace Stevens, excelente teatro.
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TRÊS VIAJANTES CONTEMPLAM UM AMANHECER
de
Wallace Stevens
Tradução
de
Flávio de Campos
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Personagens: três chineses, dois pretos e uma moça.
Cenário: uma floresta de árvores densas no alto de uma montanha; leste da Pensilvânia, USA. À direita, uma estrada obscurecida pelas folhagens.
São mais ou menos quatro horas de uma manhã de agosto; a época é a presente. Quando a cortina se abre, o palco está escuro. O galho de uma árvore range. Um Preto passa pela estrada, carregando uma lanterna.
O som se repete. O Preto atravessa o mato, levanta a laterna e olha para as árvores. Percebendo um objeto escuro entre os galhos, ele recua, atravessa o palco e sai pelo bosque à esquerda.
Um segundo Preto entra pelo mato, à direita. Ele carrega duas cestas grandes, que coloca no chão, entre os arbustos.
Entram três chineses. O Primeiro Chinês é de meia idade, baixo, gordo e excêntrico. O Segundo, de estatura média, magro, os cabelos tornando‑se grisalhos; um homem sagaz e simpático. O Terceiro é jovem, preocupado e desligado. Eles vestem roupas ocidentais. Um deles carrega uma lanterna. Eles param na estrada.
Segundo Chinês: Para encontrar poesia,
É só procurar
com uma lanterna. (Ele ri.)
Terceiro Chinês: Eu achava sem,
Se, numa noite de agosto,
Eu visse só
O orvalho nos celeiros.
O Segundo Preto emite um som para chamar‑lhes a atenção. Os três chineses atravessam o mato e entram.
Segundo Chinês: (olhando para as cestas)
Orvalho é água de ver,
Não é água de beber:
A gente esqueceu a água de beber.
Mas eu estou contente
Só de ver o sol nascer de novo.
É coisa que eu não vejo
Desde o dia em que a gente saiu de Pequim.
Lá ele cobria toda a minha porta,
Que nem mulher gemendo.
Primeiro Chinês: Eu nunca vi nada disso…
Se a gente não tem água,
Procura aí nas cestas
Um melão para mim.
O Segundo Preto abre uma cesta e entrega‑lhe um melão.
Primeiro Chinês: Não tem uma fonte por aqui?
O Preto tira de uma das cestas uma garrafa dágua de porcelana vermelha e coloca‑a perto do Terceiro Chinês.
Segundo Chinês: (para o Terceiro Chinês) Sua garrafa dágua de porcelana.
Uma das cestas contém roupas de seda, vermelhas, azuis e verdes. Durante as falas seguintes, os chineses vestem estas roupas, com a ajuda do Preto. Em seguida, eles se sentam no chão.
Terceiro Chinês: Essa aqui pega a sua própria água.
(Ele pega a garrafa e coloca‑a no centro do palco.)
Dela eu bebo, mesmo vazia assim,
(para o Segundo Chinês)
Como você, das máximas,
(para o Primeiro Chinês)
Ou você, dos melões.
Primeiro Chinês: Que nem eu, dos melões, não.
Disso você pode ter certeza.
Segundo Chinês: Bem, está certo quanto as máximas.
(Ele tira um livro do bolso e lê.)
“A corte tinha conhecido pobreza e desgraca;
a humanidade invadira‑lhe a reclusão com seu
sofrimento e piedade.”
(Um galho de árvore range.)
É, você está certo quanto a máximas,
Como quanto a poetas,
Ou sábios, ou nobres,
Ou jade.
Primeiro Chinês: Beber dos sábios? De jade?
Não tem uma fonte por aqui, não?
(Voltando‑se para o Preto, que retirou um jarro de uma das cestas.)
Enche e devolve.
O Preto tira uma vela grande de uma das cestas e entrega‑a para o Primeiro Chinês. Em seguida ele pega o jarro e a lanterna e sai pelas árvores, à esquerda. O Primeiro Chinês acende a vela e colo‑ ca‑a no chão, perto da garrafa dágua.
Terceiro Chinês: Existe uma reclusão de porcelana
Que a humanidade jamais invade.
Primeiro Chinês: (com sarcasmo) Porcelana!
Terceiro Chinês: É como a reclusão do amanhecer,
Antes de brilhar numa casa.
Primeiro Chinês: Baaa!
Segundo Chinês: Esta vela é o sol;
Esta garrafa é terra:
Isto é uma ilustração
Usada por gerações de eremitas.
A diferença da realidade
Está nisto:
Que, nesta ilustração,
A terra é sempre de uma cor só:
Ela é sempre vermelha,
Ela é sempre o que é.
Mas quando o sol brilha sobre a terra
Ele não brilha realmente
Sobre uma coisa que continua sendo
O que tinha sido ontem.
O sol brilha
Sobre o que quer que a terra seja.
Terceiro Chinês: E existem momentos indefinidos
Antes que ele brilhe,
Como este,
(Faz um gesto para trás.)
Antes que alguém perceba
De que a garrafa vai ser ‑
Porcelana, vidro de Veneza,
Do Egito…
Bem, existem momentos
Em que a vela, a se queimar,
Se encontra em reclusão.
(Ele ergue a vela no ar.)
E brilha, talvez só pela beleza de brilhar.
Esta é a reclusão do amanhecer,
Antes que ele brilhe numa casa.
(Ele coloca a vela no lugar.)
Primeiro Chinês: (sacudindo a cabeca)
Abstrato que nem porcelana…
Segundo Chinês: Esta reclusão conhece a beleza
Como a corte conhecia.
A corte despertou
Em seus aposentos sem vento,
E contemplou manhãs escolhidas,
Como contemplava
Porcelanas escolhidas.
O que a corte via era sempre da mesma cor,
E bem moldado,
É visto sob luz clara.
(Ele aponta para a vela.)
Ela nunca acordou para ver,
Ela nunca soube
Dos jarros mal moldados,
Das cores opacas,
Do vidro torto.
Nunca soube
Da luz fraca.
(Ele abre o seu livro com gestos largos.)
Quando a corte sabia só da beleza,
Na sua reclusão,
Ela não tinha nem amor nem sabedoria ‑
Estes vieram com a pobreza
E a desgraça,
Com o sofrimento
E a piedade. (Pausa.)
É a invasão da humanidade
O que importa.
Um galho de árvore range. O Primeiro Chinês se volta por um instante na direção do som.
Primeiro Chinês: (pensativo) A luz da mais tranqüila das velas
Ia tremilicar numa porcaria duma bandeja.
Segundo Chinês: (com um gesto de desdém) É a invasão
O que importa.
Se imaginarmos que somos três figuras
Pintadas em porcelana ‑
Assim como estamos aqui, sentados ‑
Que estamos pintados nesta garrafa,
O eremita deste lugar,
A nos iluminar com esta vela,
Ia dar de pensar…
Mas se imaginarmos
Que estamos pintados como guerreiros,
A vela ia dar de tremer nas mãos dele.
Ou se imaginarmos, por exemplo,
Que estamos pintados como três homens mortos;
A dor não lhe permitiria ver a luz.
Isto seria verdade
Mesmo se fosse o imperador
Quem segurasse a vela.
Ele não veria a porcelana,
Por causa das figuras pintadas nela.
Terceiro Chinês: (dando de ombros)
Deixa a vela brilhar só pela beleza de
brilhar.
Não gosto da invasão;
Quero os aposentos sem vento.
Mas pode até ser verdade
Que nada é belo
A não ser em relação a nós mesmos;
Nem feio,
(Ele aponta para o céu.)
Nem alto,
(Ele aponta para a vela.)
Nem baixo.
Nada, nem o amanhecer.
(para o Primeiro Chinês, zombeteiramente)
Dá para fazer música disto
(Ele se levanta.)
Para nós?
Primeiro Chinês: (hesitante) Eu sei uma música ‑
Chama “Patroa e Empregada”.
Não tem interesse nenhum para eremitas,
Nem para imperadores,
Mas tem lá o seu valor.
Porque se a gente afeta o amanhecer,
A gente afeta todas as coisas.
Terceiro Chinês: Pena que seja de mulheres…
Vai, canta aí…
Ele tira um instrumento de uma das cestas e entrega‑o ao Primeiro Chinês, que canta a canção abaixo, acompanhando‑se um tanto desafinadamente no instrumento. O Terceiro Chinês tira vários objetos da cesta, a preparar o chá; ele arruma as frutas. O Primeiro Chinês olha para ele enquanto toca. O Segundo Chinês fita o chão. O céu exibe os primeiros sinais da manhã.
Primeiro Chinês: A patroa fala, com voz rouca:
“Em terra distante,
Ele a pensar, errante,
Nas pedras brancas
Perto do meu portão.
E eu, aqui, cantante,
Cansei daquele errante.”
Ela, áspera, diz para a empregada:
“Não cante sozinha, não.”
Aí a empregada diz, para si mesma:
“Em terra distante,
Ele a pensar, errante,
Nas pedras brancas
Perto do seu portão.
Mas foi a mim, aqui, cantante,
Na janela, que nem antes,
Que ele tomou pela mão.”
“Em terra distante,
Ele a pensar, errante,
No verde vestido
Que eu vestia.
Para ela, adeus
Era o que ele dizia.”
A empregada baixa os olhos e diz
pra patroa:
“Não canto sozinha, não.”
Terceiro Chinês: Isto afeta
As pedras brancas,
Disto podem ter certeza. (Eles riem.)
Primeiro Chinês: E afeta o vestido verde.
Segundo Chinês: Aí vem o nosso preto.
O Segundo Preto volta um tanto agitado, com a água, mas sem a lanterna. Ele entrega o jarro ao Terceiro Chinês. O Primeiro Chinês tira acordes do instrumento de vez em quando. O Terceiro Chinês olha para a esquerda, por onde o Preto veio.
Terceiro Chinês: Você largou a lanterna lá atrás.
Ela brilha, no meio das árvores,
Como Vênus Vespertina no topo de uma nuvem.
O Segundo Preto sorri, mas não responde. Ele se senta atrás do Chinês à direita.
Primeiro Chinês: Ou que nem morango maduro
No meio das folhas. (Eles riem.)
Hoje à noite eu ouvi dizer
Que eles estão correndo o morro
À procura de um italiano.
Ele sumiu com a filha do vizinho.
Segundo Chinês: (confiante) Você ouviu primeiro
Os pés fugitivos,
E, depois, o som dos pés
A correrem atrás.
Primeiro Chinês: (sorridente) Não foi uma fuga.
O jovem cavalheiro foi visto
A subir o morro,
Suando que nem ator trágico.
Isso acontece de noite.
Ele era “un misérable”.
Segundo Chinês: Fala da moça, anda!
Primeiro Chinês: (Ele tira dois acordes do seu instrumento,
como a preludiar sua narrativa.)
Pode‑se ver essa moça
Através de tantos pontos de vista
(Ele aponta para a garrafa dágua.)
Quantas são as faces de uma garrafa redonda.
Quanto a mim, eu via ela bela,
Bela, muito bela, ela…
Eles riem. O Primeiro Chinês tira um acorde do instrumento e olha para o Terceiro Chinês, que boceja.
Primeiro Chinês: (declamando) Bela, bela
Que nem garrafa de porcelana.
Assim era ela, a bela donzela.
(Ele faz a pontuação com o instrumento.)
Para mim, ela era
Uma jovem donzela.
Então essa canção
Terá do sangue
A coloração.
Ele tira um acorde do instrumento. Um galho de árvore range. O Primeiro Chinês percebe isto e coloca a mão sobre o joelho do Segundo Chinês ‑ sentado entre ele e o Terceiro Chinês ‑ para chamar‑lhe a atenção para o som. Eles não estão de frente para o lugar de onde veio o som. O objeto escuro pendurado num galho de árvore torna‑se uma silhueta. O céu se torna cada vez mais claro. Nenhuma cor deverá ser vista até o final da peça.
Segundo Chinês: (para o Primeiro Chinês) E só uma árvore,
A ranger no vento da noite.
Terceiro Chinês: (dando de ombros) Nada rangeria
Nos aposentos sem vento.
Primeiro Chinês: (retomando) A essa altura,
A donzela dessa balada
Já terá sido estudada,
Com muita filosofia,
Pelo eremita e sua vela.
E é possível que o imperador tenha gritado:
‑ Luz! Mais luz!
Mas assim é que são as baladas:
Quanto mais bonito o seu início,
Pior será o seu final.
Que aqui também foi mostrado
Que a donzela era pobre;
A vela do eremita deve ter desenhado
Sombras assustadoras.
E o imperador deve ter segurado
A porcelana numa das mãos…
Ela abraçava
Aquele suarento ator trágico,
E derramava lágrimas morro acima.
Segundo Chinês: (fazendo uma careta)
Não está com cara de fuga.
Primeiro Chinês: É uma balada triste,
Coisa de bisbilhoteiro.
Terceiro Chinês: A gente vai continuar com isto, é?
Segundo Chinês: Por que não?
Terceiro Chinês: A gente veio à procura de isolamento,
Para descansar ao amanhecer.
Segundo Chinês: (erguendo um pouco o livro)
Mas isto vai ser parte do amanhecer.
Sera que você pode dizer como é que vai
terminar? ‑
Vidro veneziano,
Egípcio,
Vidro torto…
Ele cobre a vela com uma das mãos e se volta para a luz no céu, à direita; ele indica o amanhecer.
Enquanto isto, a vela brilha,
(para o Terceiro Chinês)
Como diz você,
Só por brilhar…
Primeiro Chinês: (com simpatia) Chii! Isso vai terminar mal.
O pai da donzela
Veio estrondando atrás dos dois
Até o sopé do morro.
Veio gritando: (ele imita)
‑ Ana, Ana, Ana!
Sem ela, ele era sozinho.
Que nem o jovem cavalheiro
Era sozinho sem ela:
Três mendigos ‑ cês ‘tão vendo? ‑
Mendigando um pelo outro.
O Primeiro Preto, com duas lanternas, surge cauteloso por entre as árvores. Ao vê‑lo, o Segundo Preto, sentado perto dos chineses, se levanta, rápido. Os chineses se levantam, alarmados. O Segundo Preto passa pelos chineses e vai até o Primeiro Preto. Todos vêem o corpo de um homem pendurado num galho de árvore. Eles se chegam uns aos outros, os olhos fixos no corpo. O Primeiro Preto sai do meio das árvores e coloca as lanternas no chão; ele olha para o grupo e, em seguida, para o corpo.
Primeiro Chinês: (comovido) O jovem cavalheiro da balada…
Terceiro Chinês: (lentamente, aproximando‑se do corpo)
É o final da balada.
Afastem o mato.
Os Pretos começam a afastar o mato.
Segundo Chinês: Morte, o eremita
Não precisa de vela
No seu eremitério.
O Segundo Chinês assopra a vela; o Primeiro Chinês apaga as lanternas. Enquanto o mato vai sendo afastado, a figura de uma moça semi‑estupefata, sentada sob a árvore, se torna visível primeiro para o Segundo Chinês, em seguida para o Terceiro Chinês. Eles recuam. Os Pretos se movem para a esquerda. Quando o Primeiro Chinês vê a Moça, o instrumento escorrega das suas mãos e cai ruidosamente no chão. A Moça desperta.
Segundo Chinês: (para a Moça) É você, Ana?
A Moça estremece. Ela levanta a cabeca, olha vagarosamente em volta, fica de pé e grita.
Segundo Chinês: (suavemente) É você, Ana?
Ela se volta rapidamente para o corpo, fita‑o e vai trôpega para o fundo do palco.
Ana: (amarga) Vai.
Conta pro meu pai:
Ele está morto.
Ela se apoia no Segundo e no Terceiro Chinês. O Primeiro Preto sussurra alguma coisa para o Primeiro Chinês, pega as lanternas e sai pela estrada, em direção ao vale.
Primeiro Chinês: (para o Segundo Preto)
Traz água da fonte
Pra gente.
Já.
O Segundo Preto pega o jarro e sai por entre as árvores, à esquerda. Lentamente a Moça volta a si. Ela olha para os chineses e para o céu. Trêmula, ela dá as costas para o corpo e não olha mais para ele.
Ana: Daqui a pouco terá amanhecido.
Segundo Chinês: Uma vela substitui
A outra.
O Primeiro Chinês anda até o mato, à direita. Ele se põe à beira da estrada, como para atrair a atenção de alguém que passasse por ali.
Ana: (com simplicidade)
Quando ele estava nas terras dele,
Eu trabalhava nas nossas ‑
Usava roxo vistoso.
E quando eu estava no jardim dele,
Usava brincos dourados.
Ontem à noite, encontrei ele na estrada;
Me pediu para ir com ele
Até o topo do morro.
Senti o mal,
Mas ele não queria nada…
Ele se enforcou na minha frente.
Ela olha em torno, à procura de apoio. O Segundo e o Terceiro Chinês levam‑na até a estrada. Na beira da estrada, o Primeiro Chinês toma o lugar do Terceiro. A Moça e os dois chinêses saem pela estrada. Só o Terceiro Chinês permanece no palco. Ele atravessa o palco lentamente, empurrando o instrumento com o pé, para fora de seu caminho; o instrumento ressoa. Ele olha para a garrafa dágua.
Terceiro Chinês: Da cor do sangue…
Reclusão de porcelana…
Reclusão de amanhecer…
(Ele pega a garrafa dágua.)
A vela do sol
Já vai raiar
(Ele indica a garrafa.)
Nesta terra eremita.
Já vai raiar
Sobre as árvores;
(Ele indica o corpo.)
Vai descobrir uma coisa nova
(Ele indica as árvores.)
Pintada nesta porcelana,
(Ele indica a garrafa.)
Mas não nesta.
Ele coloca a garrafa no chão. Uma nuvem pequena, sobre o vale, se torna rubra. Ele se volta para ela. Em seguida, anda para a direita. Ele encontra o livro do Segundo Chinês no chão; pega‑o e vira‑lhe as folhas.
Vermelho não é só
Cor do sangue,
Ou (Ele indica o corpo.)
Dos olhos de um homem
Ou (mordaz)
De uma moça.
É como o vermelho do sol
É uma coisa pra mim
É outra, pra outro,
Assim também acontece
(Ele indica uma árvore.)
Com o verde de uma árvore
(Indica outra.)
E o verde de outra,
Sem o que tudo seria preto.
O sol da manhã é multiplicado,
Como a terra onde ele brilha,
Pelos olhos que se abrem pra ele,
Até mesmo olhos mortos.
E o vermelho é multiplicado
pelas folhas das árvores.
Perto do final desta fala o Segundo Preto entra pela esquerda, sem ser notado. O Terceiro Chinês, de costas para o Preto, sai pela estrada à direita. O Preto observa os objetos no palco. Ele vê o instrumento, senta‑se perto dele e tira vários acordes, saboreando cada um. Um ou dois pássaros cantam. Ouve‑se uma voz à distância, tocando um cavalo; ouve‑se o estalido de um chicote. O Preto fica de pé, anda para a direita e se põe à beira da estrada.
A cortina desce lentamente
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