Author Archive for Flavio de Campos
ÉDIPO EM COLONUS – Sofocles.
ÉDIPO EM COLONUS, de Sófocles.
Tradução e adaptação de Flavio de Campos,
a partir da tradução de Richard Jebb.
Petrópolis, outubro de 2023.
Este trabalho visa mais a palco do que a Academia. Por esta razão, cuidei para que escolhas lexicais, sintaxe e sonoridade visassem a clareza, economia e fluência, o que redundou em alguns cortes e reconfigurações. Como W. B. Yeats, “com a tradução de Richard Jebb nas mãos”, pretendi “tornar o idioma clássico mais acessível, tanto para os atores que devem expressá-lo, quanto para o espectador que deve recebê-lo”.
(apud K.P.S. Jochum, in https://muse.jhu.edu/article/367339/pdf)
Muitos anos se passaram desde os eventos narrados em Édipo Rei.
Depois de sua queda, Édipo permanece em Tebas por um tempo, mas, incitados por Creonte, os tebanos decidem expulsá-lo dali. Seus filhos Polinices e Etéocles nada fazem para impedir sua expulsão.
O cego Édipo sai de Tebas com sua filha Antígona; sua filha Ismênia fica em Tebas, para defender os interesses do pai.
A princípio, Polinices e Etéocles concordam em legar o trono a seu tio Creonte, mas logo passam a disputar o trono entre si e Etéocles, o mais moço, vence a disputa. Expulso de Tebas, Polinices vai para Argos e, lá, se casa com Argeia, a filha mais velha do Rei Adrasto, com cujo apoio ele prepara um ataque a Tebas.
Um oráculo de Apolo vai a Tebas e revela que, se a cidade quer prosperar, o túmulo de Édipo deve estar em terreno tebano. Se aquele túmulo estiver na Ática, Atenas irá dominar Tebas. Assim, Édipo, velho, cego, esmolambado e degradado, carrega consigo a bênção divina para o lugar em que for sepultado.
Cena em Colonus, a dois quilômetros de Atenas, em frente ao bosque das deusas da vingança, as Três Fúrias, também chamadas de Erínias ou de Eumênides.
PERSONAGENS:
ÉDIPO.
ANTÍGONA, filha de Édipo.
ISMÊNIA, filha de Édipo.
HOMEM DE COLONUS.
TESEU, Rei de Atenas.
CREONTE, Rei de Tebas.
POLINICES, filho mais velho de Édipo.
MENSAGEIRO.
CORO DE ANCIÃOS DE COLONUS.
ÉDIPO e ANTÍGONA entram.
ÉDIPO: – Antígona, filha deste velho cego, a que lugar chegamos, a que cidade? Quem irá acolher este Édipo errante, hoje com bens escassos ou nenhuns? Almejo pouco, recebo menos do que pouco e assim me contento. Cansaço, sofrimento e anos desta nossa longa peregrinação nos ensinaram a paciência. (T) O cansaço…
Um tempo.
ÉDIPO: – Minha filha, se vires um lugar de descanso, profano ou sagrado, sente, sente-se comigo, para que, como estrangeiros que somos, possamos saber dos moradores onde estamos e quais as suas demandas.
ANTÍGONA: – Meu cansado pai, sente-se aqui nesta pedra. O senhor trilhou longo caminho para homem velho. Sente. (T) Pelo que vejo, as torres que guardam a cidade estão distantes. E, pelo que vejo, este lugar é sagrado. Ele é repleto de louros, oliveiras, videiras e, no seu cerne, um coro de rouxinóis produz música.
ÉDIPO: – Então, cuide deste cego.
ANTÍGONA: – Não necessito aprender. O tempo me ensinou.
ÉDIPO: – Podes dizer, agora, a que lugar chegamos?
ANTÍGONA: – Atenas, eu conheço. Mas este lugar, não.
ÉDIPO: – Assim todos os viajantes nos disseram…
ANTÍGONA: – Devo procurar saber como este lugar é chamado?
ÉDIPO: – Sim, minha filha. Se de fato for habitado.
ANTÍGONA: – Habitado certamente é. E…/ Pronto, vejo um homem.
ÉDIPO: – Vindo ou indo?
ANTÍGONA: – Vindo.
Entra um HOMEM DE COLONUS.
ANTÍGONA: – Ele está aqui. Fale quando queira.
ÉDIPO: – Estrangeiro, ouvindo esta donzela, que tem visão para si mesma e para mim, o senhor veio para dissipar nossas dúvidas…/
HOMEM: – Antes de me dirigir perguntas, abandone esse assento. O senhor está em terreno no qual não é lícito estar.
ÉDIPO: – Que terreno é este? Sagrado por qual divindade?
HOMEM: – Divindades tenebrosas o possuem: as filhas das trevas.
ÉDIPO: – Quem são? Que nome tenebroso devo ouvir e invocar?
HOMEM: – Eumênides, as que tudo vêem. É assim que o povo daqui as chama. Mas outros povos as chamam por outros nomes.
ÉDIPO: – Neste caso, elas podem receber seu suplicante, pois jamais deixarei esta terra.
HOMEM: – O que significa isto?
ÉDIPO: – A senha do meu destino.
HOMEM: – Não, não ouso expulsá-lo sem anuência da cidade. Antes, devo relatar o que estou fazendo.
ÉDIPO: – Por amor aos deuses, homem, não recuse a este infeliz errante que sou o que necessito saber.
HOMEM: – Fale. Em mim, não encontrareis recusa.
ÉDIPO: – Qual, então, é o lugar em que entramos?
HOMEM: – Tudo o que sei, saberás agora pela minha voz. Este lugar é sagrado. Poseidon o possui e, dentro deste lugar, está um deus repleto de fogo, o titã Prometeu. Mas onde pisais é o limiar desta terra, o que guarda Atenas. Os povos vizinhos consideram o cavaleiro Colonus como seu senhor primordial. Saibas, estrangeiro, este lugar não é honrado pela história, mas amado pela vida.
ÉDIPO: – Há moradores aqui?
HOMEM: – Sim, certamente.
ÉDIPO: – Eles têm um rei ou a fala é do povo?
HOMEM: – Este lugar é governado pelo rei de Atenas.
ÉDIPO: – E quem é o soberano, em saber e poder?
HOMEM: – Chama-se Teseu, filho de Egeu, rei antes dele.
ÉDIPO: – Poderia um mensageiro ir buscá-lo?
HOMEM: – Que desejo ou oferta o traria aqui?
ÉDIPO: – Diga-lhe que uma pequena oferta lhe trará grande bênção.
HOMEM: – Que bênção pode vir de quem não vê?
ÉDIPO: – A de que, em tudo o que falo, há visão e bênção potentes.
HOMEM: – Atente, estrangeiro: não vim fazer-te mal. Se deixo tua sina de lado e julgo pelo que vejo, tu és nobre. Esteja aqui, até que eu vá e relate ao povo deste lugar o que vi e ouvi. Eles decidirão se deves ficar ou ir.
HOMEM sai.
ÉDIPO: – Minha filha, o homem se foi?
ANTÍGONA: – Sim. Falai o que quiserdes, meu pai. Apenas eu estou por perto.
ÉDIPO: – Ó, veneradas senhoras, vosso assento é o primeiro em que dobrei os joelhos, nesta terra. Sejais generosas, por mim ou por Apolo que, quando traçou meu destino, falou deste lugar como um descanso hospitaleiro no qual eu, exaurido, encerraria minha vida. Aqui, aqueles que me acolherem receberão graças. Lá, aqueles que me expulsaram receberão desgraças. E Apolo falou dos sinais do porvir: terremoto ou trovão ou raio de Zeus.
Agora, sim, entendo que uma predição das senhoras me trouxe a este bosque. Como poderia eu, que no vinho não me deleito, ter vos encontrado? Como chegaria eu a este assento solene?
Se assim é, veneradas senhoras, por Apolo, concedam-me o fim da minha vida. Ou estarei abaixo de vossa graça? Não, não! Ouvi, doces filhas das trevas, ouvi, vós que fostes chamadas a Atenas: tende piedade deste espectro do Édipo de outrora.
ANTÍGONA: – Silêncio! Aí vêm uns idosos, para examinar vosso local de repouso.
ÉDIPO: – Rápido, esconda-me no bosque! Ouvir o que esses homens dizem nos dirá o que fazer.
ÉDIPO e ANTÍGONA saem.
Entra o CORO de anciãos de Colonus, fragmentado e numa busca frenética.
CORO: – Atenção! – É ele? – Quem é ele? – Onde está ele? – Para onde ele correu? – Insolente. – Ele se crê acima dos viventes. – Examinemos o terreno. – Procuremos. – Olhemos bem. – Todas as partes. – Um andarilho. – Deve ser andarilho. – E velho. – Morador daqui? – Não. – Morador daqui jamais entraria neste bosque das donzelas. – Donzelas contra quem ninguém pode lutar. – Cujo nome trememos ao falar. – De quem, quando por aqui passamos, desviamos nosso olhar. – Por quem nossos lábios sussurram sem soar um só som. – Nem palavra. – Em devoção. – Mas, agora, se diz que veio alguém. – Que, de forma alguma, as reverencia. – Procuremos. – Aqui. – Ali. – Lá. – Acolá. (Um tempo) – Procuramos tudo. – Aqui e alhures. – E nada. – Nada. – Não conseguimos encontrá-lo. – Nem vê-lo. – Nem sequer vê-lo…
ANTÍGONA e ÉDIPO saem do bosque.
ÉDIPO: – Aqui vedes o homem que procurais. Já eu, eu os vejo apenas no som que emitis.
CORO: – Ó, horror de ver! – Ó, pavor de ouvir!
ÉDIPO: – Não, não me considerem maligno, eu vos suplico.
CORO: – Zeus, nos defenda! – Tu, velho, quem és?
ÉDIPO: – Guardiões desta terra, sou alguém cuja sorte não invejais! Perambulo no escuro, sustentado em minha débil filha.
CORO: – És cego desde o dia em que nasceste? – Parecem malditos, os teus dias. – Muitos dias, ao que parece. – Sim. – Sim. – E tu não atiras sobre nós as maldições que sofreste? – Sendo assim, de nós não receberás maldição acrescentada às tuas. – Mas afasta-te. – Afasta-te. – Foste longe demais. – Teus passos imprudentes não podem violar o chão deste bosque. – Ali, as bacias misturam água às oferendas. – Esteja ciente, infeliz forasteiro: é transgressão. – Afasta-te! – Afasta-te do bosque! – Um espaço nos separa dele. – Ouves, andarilho exausto? – Saia do terreno proibido. – Venha para lugar lícito. – Fale. – Mas, antes, afasta-te!
ÉDIPO: – Filha, o que faremos?
ANTÍGONA: – Devemos nos conformar aos costumes da terra. Cedendo, no que for necessário. E ouvindo.
ÉDIPO: – Então, me dê tua mão.
ANTÍGONA: – Está junto à vossa.
.
ÉDIPO: – Estrangeiros, não me façam mal. Confiei em vós quando deixei meu refúgio.
CORO: – Jamais, velho, alguém te removerá a força do teu lugar de repouso.
ÉDIPO anda com dificuldade.
ÉDIPO: – (pára) Aqui está bem?
CORO: – Não. – Adiante.
ÉDIPO: – (pára) Mais?
CORO: – Conduza-o adiante, donzela. – Tu entendes.
ANTÍGONA: – Venha, meu pai. Siga-me com vossos passos escuros.
CORO: – Estrangeiro numa cidade estrangeira. Tu deves abominar o que a cidade abomina. E reverenciar o que a cidade reverencia.
ÉDIPO: – Que assim seja. (T) Minha filha, leve-me a um lugar onde eu possa falar e ouvir sem ofender o sagrado nem conflitar com o destino.
Com delicadeza, ANTÍGONA conduz ÉDIPO até uma pedra, no limiar do terreno sagrado.
CORO: – Aí! – Aí está bem! – Não avança teus passos além da rocha!
ÉDIPO: – Aqui?
CORO: – Sim.
ÉDIPO: – Devo me sentar?
CORO: – Sim. Anda para o lado e senta na borda da rocha.
ANTÍGONA: – Pai, esta tarefa é minha. Vem.
ÉDIPO: – Ah… Ah…
ANTÍGONA: – Desça o peso do vosso corpo em meu braço.
ÉDIPO: – Ah, o destino de uma alma em trevas!
ANTÍGONA senta-o na rocha.
CORO: – Agora, tens paz. – Agora, fala. – De onde vieste? – Quem és? – Qual o teu nome?
ÉDIPO: – Estrangeiros, sou um exilado, mas abstenham-se de…/
CORO: – Nos abstermos de quê? – O que temes?
ÉDIPO: – Abstenham-se, abstenham-se de perguntar quem sou.
CORO: – Por quê? – Por qual razão? – Com que propósito?
ÉDIPO: – Minha concepção, meu nascimento, minha existência…/
CORO: – Como? – Por quê? – Fala!
ÉDIPO: – Minha filha, o que devo falar?
CORO: – Qual é tua linhagem? – Quem é tua mãe? – Quem é teu pai? – Fala! – Fala!
ÉDIPO: – Ah… O que será de mim, minha filha?
ANTÍGONA: – O senhor foi levado ao limite, meu pai. Fale.
ÉDIPO: – Falarei. Não tenho como ocultar.
CORO: – Basta! Não tardes! Fala!
ÉDIPO: – Conheçam, então: eu sou o filho de Laio e…/
O CORO emite um grito longo.
ÉDIPO: – …da dinastia de Lábdaco.
CORO: – Zeus! – Não! – Édipo? – O infeliz Édipo? – Não! – Tu não és Édipo! – Tu és Édipo?
ÉDIPO: – Nada do que eu fale deve lhes provocar temor.
Num urro de aversão, o CORO abafa sua voz e traz seus mantos à frente dos olhos.
ÉDIPO: – Sim, eu sou Édipo.
CORO: – Não! Não! Não! Não! Não!
ÉDIPO: – Filha, o que está prestes a acontecer?
CORO: – Saia desta cidade! – Saia desta terra! – Saia daqui! – Suma! – Desapareça!
ÉDIPO: – E vossa promessa de que jamais alguém me removerá do meu lugar de repouso? Não será cumprida!?
CORO: – Não! Destino nenhum desgraça ninguém que busca justiça contra malfeito. Tu, levanta deste assento! Leva tu de volta contigo! Anda! Sai! Vai! Para longe! Já! Antes que atraias desgraça para nossa cidade!
ANTÍGONA: – Estrangeiros de reverente alma, percebo que vós não tolerais meu velho pai, mesmo sabendo, como sabem, da inocência de intenções em seus atos. Tende ao menos piedade por ele, eu vos suplico. Suplico com olhos que ainda podem ver os vossos, como se tivessem nascido de vós. É assim que um sofredor pode encontrar compaixão. Como de um deus, de vós dependemos. Vede nossa miséria! Concedei a bênção que de mais ninguém esperamos! Por tudo o que brota daquilo que vós amais, eu vos suplico! Olhai e vereis que não existe mortal algum que consiga escapar a um deus.
CORO: – Sim, filha de Édipo, percebemos tua sina. E temos piedade por teu pai. Mas tememos o julgamento dos deuses.
ÉDIPO: – Aqui é Atenas. Atenas é famosa por praticar justiça, por reverenciar os deuses, por acolher estrangeiro alquebrado. E o que encontro? Vós, que me expulsais desta terra!? Vós, que temeis apenas o meu nome!? Não, não temei minha pessoa nem minhas ações. Minhas ações foram reações a sofrimento. Ou necessito narrar as ações de meu pai e de minha mãe? Não existe maldade em minha pessoa. Eu apenas reagi a um erro. E agi sem conhecimento. Mesmo se tivesse agido com conhecimento, eu não poderia ser considerado mau. Os que me injustiçaram buscaram minha ruína. Por tanto e tudo, estrangeiros, eu vos suplico, pelos deuses: protegei-me! Não recusai aos deuses o que lhes é devido. Atentai que eles percebem os puros e os impuros. E que jamais houve fuga para mortal impuro. Sob a luz dos deuses, não obscurecei a fama de Atenas, não cometei ações profanas. Acolhei um suplicante. Acolhei-me até o fim; até o meu fim. Vim a vós como alguém sagrado, piedoso e repleto de conforto para vosso povo. Quando vosso soberano vier, ouvireis, vereis e sabereis a verdade.
CORO: – Teus pensamentos, velho homem, foram traduzidos em densas palavras. Teus pensamentos nos causaram comoção. Mas cabe a nosso soberano julgar esta causa.
ÉDIPO: – E onde, estrangeiros, está vosso soberano?
CORO: – Está na cidade. O mensageiro que nos trouxe aqui, nós o enviamos, para buscá-lo.
ÉDIPO: – Ele virá atender a um cego?
CORO: – Sim. Teu nome, Édipo, ecoa por todas as terras. Quando ouvir teu nome, Édipo, nosso rei virá.
ÉDIPO: – Que venha. Trago bênção à vossa cidade e a mim.
ANTÍGONA: – Ó, Zeus! O que devo pensar, meu pai, o que devo dizer?
ÉDIPO: – O que há, minha filha?
ANTÍGONA: – Uma mulher. Vejo uma mulher. Ela vem para cá, montada num potro. Ela usa um gorro da Tessália, para se proteger do sol. O que devo dizer? É ela? Não. Me iludo? Sim. Não. Não sei. Ah, sei, sim! Ela me saúda! Seus olhos brilham. Sim, é Ismênia!
ÉDIPO: – O que dizes, minha filha?
ANTÍGONA: – Que vejo minha irmã, vejo tua filha Ismênia com um servo. O senhor irá reconhecê-la pela voz.
ISMÊNIA entra com um Servo.
ISMÊNIA: – Meu pai! Minha irmã! Que felicidade dizer estas palavras! Como foi difícil encontrá-los! Como é difícil vê-los atrás de minhas lágrimas!
ÉDIPO: – Minha filha Ismênia! Tu estás aqui!
ISMÊNIA: – Sim, meu pai E feliz. E triste, ao ver vosso destino.
ÉDIPO: – Toque, toque em mim, minha filha!
ISMÊNIA: – Toco nos dois.
ÉDIPO: – Minha filha… Minhas duas filhas…
ISMÊNIA: – Três vidas infelizes…
ÉDIPO: – Filha, por que vieste?
ISMÊNIA: – Por preocupação com o senhor. E para trazer notícias.
ÉDIPO: – Sozinha? Com apenas um servo? E teus irmãos?
ISMÊNIA: – Eles estão onde estão: na escuridão.
ÉDIPO: – Vivem como egípcios: ficam em casa, enquanto as mulheres saem para trabalhar. Como vós, que carregam o fardo de vosso pai, enquanto eles ficam em casa. Minha filha Antígona, tão logo se tornou adulta, tornou-se guia de velho, atravessando florestas, suportando chuva, calor e fome, para que vosso pai não fenecesse. E tu, minha filha Ismênia, escondida dos tebanos, trazias a teu pai o que os oráculos profetizavam. Enquanto estive no exílio, tu zelaste pelo meu nome.
Que notícias trazes? (T) Percebo: tens medo.
ISMÊNIA: – Não narrarei as dores pelas quais passei, procurando pelo senhor. Não quero reviver dores. Narrarei os males que agora afligem vossos desventurados filhos.
Era desejo deles que o trono fosse para Creonte e, assim, a cidade fosse poupada da desgraça que caiu sobre nossa família. Mas, agora, movidos por algum deus ou ideia tortuosa, eles lutam entre si, pelo poder, pelo reino. Etéocles, mesmo sendo o mais jovem, privou do trono Polinices, o mais velho, e o expulsou de sua terra. Polinices se exilou em Argos, casou, reuniu guerreiros e vai atacar Tebas. Meu pai, não falo palavras vãs; falo de fatos, de terríveis fatos. (T) Quando, deuses, tereis piedade do sofrimento de meu pai!?
ÉDIPO: – Tu esperas que os deuses, algum dia, olhem para meu sofrimento?
ISMÊNIA: – Sim, meu pai. Minha esperança vem dos oráculos de agora.
ÉDIPO: – O que profetizam os oráculos de agora, minha filha?
ISMÊNIA: – Que os homens de Tebas querem o senhor, corpo vivo ou cadáver, para bem-estar deles.
ÉDIPO: – Que pessoa poderia receber um bem de pessoa como eu?
ISMÊNIA: – O poder deles, assim dizem os oráculos, está em vossas mãos.
ÉDIPO: – Agora, quando deixo de ser? Agora, sou homem?
ISMÊNIA: – Sim. Os deuses trabalharam para vossa ruína. Agora, trabalham para vossa consagração.
ÉDIPO: – É perverso consagrar um velho, depois que sua juventude foi arruinada.
ISMÊNIA: – Saiba ao menos que, por esta razão, Creonte virá até o senhor. E ele vem mais cedo do que tarde.
ÉDIPO: – Com que propósito, filha, me diga?
ISMÊNIA: – Para dominar o senhor. Para sepultar o senhor perto de Tebas e, assim, seus pés não pisarão em Tebas.
ÉDIPO: – E como posso lhes ser útil, enquanto descanso fora de seus portões?
ISMÊNIA: – Vosso túmulo guarda uma desgraça para eles, se não for bem cuidado.
ÉDIPO: – Para tal, não carece haver deus algum.
ISMÊNIA: – Para tal, lhes convém ter o senhor num lugar no qual não terá domínio sobre si.
ÉDIPO: – Eles me cobrirão com terra tebana?
ISMÊNIA: – Não, meu pai. O senhor verteu sangue de seu pai.
ÉDIPO: – Então, eles jamais serão meus mestres.
ISMÊNIA: – Então, uma maldição cairá sobre os tebanos.
ÉDIPO: – Sob que conjunto de eventos, minha filha?
ISMÊNIA: – Por força da vossa ira, no instante em que se aproximarem de vossa tumba.
ÉDIPO: – E quem contou para ti o que tu, agora, contas para mim?
ISMÊNIA: – Os oráculos de Apolo, do templo de Delfos.
ÉDIPO: – Apolo falou assim, sobre mim?
ISMÊNIA: – Assim falaram os oráculos que foram a Tebas.
ÉDIPO: – Algum dos meus filhos ouviu isso?
ISMÊNIA: – Ambos ouviram, ambos sabem.
ÉDIPO: – Mais do que a minha volta, meus filhos querem um trono?
ISMÊNIA: – Tomada de dor, devo anuir.
ÉDIPO: – Deuses! Deuses! Façam que o agora rei perca reinado e cetro. E que o desterrado jamais retorne à sua terra. Eles viram o pai ser expulso de sua cidade e nada fizeram. Deuses! Deuses! Façam os dois arderem no próprio ódio. Eles dirão que ser expulso foi desejo meu, que a cidade me concedeu esta dádiva. Não. Não. Naquele dia, meu desejo era morrer. Sim, morrer por apedrejamento. Ninguém me concedeu este desejo. Depois, quando meu horror arrefeceu, percebi que, ao punir meus erros passados, minha ira fora excessiva. Foi nesta hora que a cidade me expulsou e meus filhos, que poderiam ter-me amparado, nada fizeram, nada disseram, e fui posto a vagar, um pária, um errante, um pedinte, para sempre.
É a vós, minhas filhas, que devo alimento, proteção e laços de parentesco. Vossos irmãos trocaram vosso pai por um trono. Não, eles jamais terão Édipo como aliado, nem jamais o bem lhes virá do reinado de Tebas. Quando ouço os oráculos pela boca de minha filha, percebo as profecias que Apolo lançou para mim. Que qualquer poderoso de Tebas venha me caçar, que venha Creonte! Se, em comunhão com as deusas que aqui habitam, vós, estrangeiros, estiverdes dispostos a me amparar, vós tereis, em mim, um protetor desta cidade e um tormento dos inimigos dela.
CORO: – Tu, Édipo, e tuas filhas são merecedores de compaixão. E, se a teu apelo, tu adicionas poder para proteger nossa terra, acolhe um conselho.
ÉDIPO: – Estou pronto para acolher o que têm a dizer. Digam!
CORO: – Purga a ofensa que cometeste contra estas divindades, cujo terreno invadiu.
ÉDIPO: – Com que ritos? Instruam-me!
CORO: – Primeiro, de fonte perene e com mãos limpas, encha de água uma das bacias que lá estão.
ÉDIPO: – E, com a bacia cheia…?
CORO: – Cubra sua borda e alças.
ÉDIPO: – Com folhas? Galhos? Com lã?
CORO: – Com lã de cordeiro, recém-tosquiada.
ÉDIPO: – O que devo acrescentar à água?
CORO: – Acrescente mel. Jamais vinho. E, com o rosto voltado para a aurora, verta a água. Verta em três fluxos. No terceiro, esvazia a bacia. Completamente. E faça a oração.
ÉDIPO: – A quem devo orar? O que devo orar?
CORO: – Ore para as Eumênides, as bondosas Eumênides. Elas podem acolher o suplicante. A oração, ela será a tua própria ou a de quem ore por ti. Que a voz saia sem som. Isto feito, retire-se. Sem olhar para trás. Assim faça e ficaremos tranquilos, ao teu lado. O contrário nos fará temer por ti.
ÉDIPO: – Filhas, ouviram estes cidadãos daqui?
ANTÍGONA: – Ouvimos, pai. Diga-nos o que fazer.
ÉDIPO: – Que uma de vós fique. Careço de força e de guia. Que uma de vós vá e assim faça. Que vá já.
ISMÊNIA: – Eu vou. Eu executo o rito. Onde?
CORO: – Do outro lado deste bosque, donzela. Se carecer de algo, há o guardião do lugar. Ele irá orientá-la. Ele irá ajudá-la.
ISMÊNIA: – Eu vou. Antígona fica. Filha não recusa ajuda a pai.
ISMÊNIA sai.
CORO: – Traz temor despertar dor adormecida há tanto tempo, estrangeiro. Ainda assim, ansiamos saber…/
ÉDIPO: – O quê? O que mais?
CORO: – …ansiamos saber o horror contra o qual lutaste. E segues lutando.
ÉDIPO: – Por respeito às leis da hospitalidade, não exponhais minha desonra!
CORO: – É história alastrada. É história que não arrefece. Ansiamos saber a verdade. Narre o que aconteceu. E o que o acontecido fez acontecer.
ÉDIPO: – Deuses!
CORO: – Concede nosso pedido…
ÉDIPO: – Deuses, concedam-me força!
CORO: – … como nós concedemos o teu.
ÉDIPO: – Sofri – os deuses são sabedores! – sofri por acontecidos alheios à minha escolha. Dor, pavor, horror.
CORO: – Quais?
ÉDIPO: – Fiz casamento maligno. Tebas me uniu, sem saber, à mulher que era minha desgraça.
CORO: – Foi, como soubemos, que tu fizeste tua mãe companheira de tua cama?
ÉDIPO: – Deuses! Estas palavras dilaceram meus ouvidos. As duas donzelas nascidas de mim…
CORO: – O que vais dizer?
ÉDIPO: – … brotaram do ventre do qual eu brotei.
CORO: – Elas são, então, filhas e…
ÉDIPO: – …irmãs do pai!
CORO: – O horror trouxe o horror!
ÉDIPO: – Horrores que rasgam minha alma!
CORO: – Tu sofreste…/
ÉDIPO: – Sofrimentos insuportáveis.
CORO: – Tu pecaste…/
ÉDIPO: – Pecado nenhum!
CORO: – Nenhum?
ÉDIPO: – Tebas me concedeu uma homenagem. Não, jamais deveria ter recebido aquela homenagem por ter servido Tebas!
CORO: – Amaldiçoado! Da tua mão pingou sangue?
ÉDIPO: – Por que a pergunta? O que vós aprenderieis?
CORO: – Sangue de um pai?
ÉDIPO: – Ah! Vós vindes num segundo ataque! Um segundo ataque!
CORO: – Assassino!
ÉDIPO: – Não! Matador. E aqui revelo o que me redime.
CORO: – O quê?
ÉDIPO: – Aquele que matei teria me matado.
CORO: – Shhh… Suspenda a narrativa. Aí vem nosso rei. Ele atende a teu rogo. Aqui está Rei Teseu, o filho de Egeu.
Entra TESEU.
TESEU: – O filho de Laio. Muitos me falaram da destruição dos teus olhos; agora percebo que é fato. Tuas vestes rotas, o tormento estampado em teu rosto e tudo dita o teu nome: Édipo, o desgraçado. Também vivi desterro como o teu e, como tu, lutei sozinho para sobreviver. Sei bem que minha dimensão não é maior do que a tua. Tenho compaixão e pergunto qual o teu interesse por Atenas ou por mim? Por que fizeste daqui o teu lugar? Teu e da infeliz donzela ao teu lado. Fala, confessa, roga. Apenas um rogo horrendo me afastaria de ti.
ÉDIPO: – Vossa realeza expressou com exatidão quem sou, de que pai nasci, a que desterro sobrevivi. Para mim, resta apenas expressar meu rogo.
TESEU: – Fala. Desejo saber.
ÉDIPO: – Venho oferecer este meu corpo roto. Não, ele não é belo, mas as bênçãos que traz superam qualquer beleza.
TESEU: – Que bênçãos dizes trazer?
ÉDIPO: – Daqui a pouco saberás.
TESEU: – Quando?
ÉDIPO: – Quando eu estiver morto e vós me concederdes sepultura.
TESEU: – Tu almejas ao derradeiro sopro da vida?
ÉDIPO: – Sim. Por esta concessão, eu acolho tudo.
TESEU: – É rogo singelo.
ÉDIPO: – Em verdade, não. Não é singelo.
TESEU: – Por quê? Envolve teus filhos e eu?
ÉDIPO: – Meus filhos, Rei Teseu, querem me arrastar para Tebas.
TESEU: – Mas, se eles querem acolher-te, o desterro não é apropriado.
ÉDIPO: – Quando roguei acolhimento, eles recusaram.
TESEU: – Homem tolo. No infortúnio, não cabe deixar-se levar pelo rancor.
ÉDIPO: – Fazei vosso julgamento após saber da minha história. Até lá, abstende.
TESEU: – Procede. Não devo julgar sem saber.
ÉDIPO: – Sofri injustiça sobre injustiça.
TESEU: – Falas da maldição sobre a tua família?
ÉDIPO: – Não. Isto é sabido por toda a Grécia.
TESEU: – Que dor supera as dores de um homem?
ÉDIPO: – Por ter matado meu pai, fui expulso da minha cidade por meus próprios filhos, para não mais voltar.
TESEU: – Como, então, eles te querem de volta?
ÉDIPO: – Da boca de um deus virá a ordem.
TESEU: – Cuja desobediência se ata a que desgraça?
ÉDIPO: – A de eles serem destroçados por esta cidade.
TESEU: – Como o ódio irá se instaurar entre mim e eles?
ÉDIPO: – Bondoso filho de Egeu, apenas os deuses não conhecem velhice e morte. Tudo mais é dominado pelo tempo, tudo é esvaído pelo tempo. O vigor de um corpo se esvai, o vigor de um país se esvai, a confiança fenece, a desconfiança nasce, o elo se quebra, mesmo entre amigos, mesmo entre cidades. Cedo ou tarde, vemos o doce se tornar amargo, o amor se tornar ódio que, um tempo mais, se torna amor. Agora, entre Atenas e Tebas, tudo é paz. Mas o tempo, no seu fluxo sem fim, gera dias e noites e dias e noites que, por razão pouca ou nenhuma, farão cruzar lanças que hoje lutam em concórdia. Quando meu corpo estiver adormecido e sepultado, o frio da morte beberá meu sangue quente e…/ Não, não quebrarei os mistérios. Encerro por onde comecei: fazei valer vossa palavra e jamais tereis de dizer que acolhestes Édipo em vão.
CORO: – Rei Teseu, desde o início, este homem demonstrou vontade de cumprir suas promessas à nossa terra.
TESEU: – Impossível rejeitar oferecimento de amizade como este. Lar de amigo está sempre aberto a amigo. Ele veio, suplicante aos nossos deuses e portador de benefício à nossa terra e a mim. Em reverência, acolho sua graça e o torno cidadão desta terra. Se lhe for de agrado permanecer aqui, eu me encarregarei de protegê-lo. Se lhe for de agrado vir comigo, venha. Édipo, a tua vontade é a minha.
ÉDIPO: – Zeus, sejais bondoso para tais homens!
TESEU: – Qual é a tua vontade? Queres vir para minha casa?
ÉDIPO: – Quereria, se lícito fosse. Mas meu lugar é aqui.
TESEU: – Por que teu lugar é aqui?
ÉDIPO: – Aqui, vencerei aqueles que me derrotaram.
TESEU: – Parece grande a graça trazida por tua presença.
ÉDIPO: – Será, se vossa promessa for mantida.
TESEU: – Não há o que temer. Não fui feito para falhar.
ÉDIPO: – Não vos atarei a promessa alguma. Não vos tomo por duvidoso.
TESEU: – Minha palavra basta.
ÉDIPO: – O que ireis fazer?
TESEU: – Qual o teu temor?
ÉDIPO: – Eles virão…
TESEU: – (indica o Coro) Eles cuidarão disto.
ÉDIPO: – Rei Teseu, se vós vos ausentardes…/
TESEU: – Não me digas o que fazer.
ÉDIPO: – O medo me faz dizer.
TESEU: – Meu coração não tem medo.
ÉDIPO: – Vós sabeis das ameaças.
TESEU: – Sei que ninguém te levará daqui sem minha permissão. A ira lança ameaças, mas, quando a razão se exibe, as ameaças cessam. Tenha coragem. Independente de qualquer decisão minha, Apolo traçou o teu caminho. Mesmo na minha ausência, meu nome irá protegê-lo.
TESEU sai.
CORO: – Estrangeiro, tu vieste para Colonus, o lar mais belo que há, a terra dos mais belos cavalos, na qual os rouxinóis, nossos hóspedes constantes, trinam suas notas mais límpidas, no bojo das clareiras, ali, em meio à hera verde-escura. E, nos caramanchões inviolados dos deuses, ricos em uvas e frutas, Dionísio, o exuberante dançarino, se encontra com as bacantes, suas ninfas. Alimentado por orvalho celestial, o narciso brota de manhã em belos cachos, o açafrão floresce com raios dourados e as fontes indormidas, de onde escorrem as águas do rio Céfiso, fecundam as planícies. Também é aqui que florescem as oliveiras perenes de folhas cinzentas, que produzem alimento às nossas crianças e terror aos nossos inimigos. Outro louvor que temos a fazer a esta cidade, nossa mãe, é sua força no mar e a pujança dos seus cavalos, pois Poseidon, filho de Cronos, nos deu remo de suprema velocidade e freio que freia a fúria dos cavalos.
ANTÍGONA: – Ó terra louvada, agora, cabe a vós tornar louvores em ações!
ÉDIPO: – O que aconteceu, minha filha?
ANTÍGONA: – Creonte e seu séquito aí vêm.
ÉDIPO: – Bondosos anciãos, eu lhes suplico, me dêem segurança!
CORO: – Nada temas. Se somos velhos, a força desta terra não envelheceu.
Entram CREONTE e séquito.
CREONTE: – Senhores, nobres habitantes desta terra, vejo que minha chegada trouxe temor a vossos olhos. Não, não se afastem nem pronunciem palavra hostil. Não trago hostilidade. Estou velho e sei que a cidade para onde vim é poderosa. Vim para suplicar àquele homem que volte comigo para Tebas. Vim encarregado pelo nosso povo, já que me cabe, por parentesco e, mais que todos os tebanos, lamentar suas desgraças. Infeliz Édipo, ouça-nos: volta para tua casa! Tu és clamado por todo o povo de Tebas e, mais do que todos, por mim. Eu seria o mais vil de todos os homens se contemplasse sem tristeza teus infortúnios, tua velhice e tu, assim, um mero estrangeiro a vagar na mendicância, com uma menina e mais nada. Infeliz menina, solteira e solitária, vulnerável a qualquer mão cruel, nunca imaginei que pudesses cair tão fundo na miséria. Esta vergonha não pode seguir exposta. Com gratidão, se despeça daqui e volte para tua cidade, para a casa de teus pais, onde foste amamentada.
ÉDIPO: – Pessoa peçonhenta, sonsa e cínica, que torce fatos para obter intentos. Por que tu tentas, mais uma vez, me lançar numa rede de dor e horror? Quando, ensandecido por infortúnios forjados por mim mesmo, eu ansiava por ser expulso de Tebas, tua vontade não se juntou à minha. Mas quando minha dor se esvaneceu e a reclusão tornou-se doce, parentesco algum de nada valeu: tu me expulsaste da casa e da terra. Agora, percebes que sou acolhido numa cidade, escondes pensamentos cruéis em palavras suaves e vens me sequestrar? A bondade que recebo aqui afronta o teu intento? Tu vieste me buscar, não para me levar para casa, mas para me largar nas fronteiras da tua cidade e ela, assim, escapar ilesa das maldições.
Sei mais das sinas de Tebas do que tu. Muito mais. Minhas fontes de conhecimento são íntegras: Apolo e seu pai, Zeus. Tu, o mais vil de todos os homens, tens apenas língua afiada e fraude nos lábios. Teu rogo te fará mais mal do que bem. Vá! Parta! Suma! Nós viveremos aqui. Aqui viveremos felizes.
CREONTE: – Quem sofre mais? Eu, pelo curso que deste à tua vida, ou tu, que por ela cursa?
ÉDIPO: – Sou feliz, ao ver teu rogo falhar comigo, assim como com estes homens que me são próximos.
CREONTE: – És um velho infeliz, cujos anos de vida não lhe trouxeram sabedoria.
ÉDIPO: – Tens língua afiada, mas tuas palavras carecem de honestidade.
CREONTE: – Palavras, palavras e mais palavras… O que importa são suas intenções.
ÉDIPO: – Como se as tuas fossem poucas e bem-intencionadas…
CREONTE: – Não para inteligência como a tua.
ÉDIPO: – Vá! Parta! Suma! Não traga desconforto ao lugar onde estou destinado a ficar. Falo também em nome destes homens!
CREONTE: – Vós, cidadãos, sejam minhas testemunhas: quando estiver sob meu domínio, esse homem terá suas palavras voltadas contra ele.
ÉDIPO: – Quem poderia me dominar, se tenho estes aliados?
CREONTE: – Logo saberás.
ÉDIPO: – Que ação sustenta estas palavras vazias?
CREONTE: – Saiba, então: uma de tuas filhas acaba de ser capturada por mim. A outra, aqui, capturarei em seguida.
ÉDIPO: – Ai de mim!
CREONTE: – Em seguida, proferirás palavras, palavras e mais palavras de lamento.
ÉDIPO: – Tu tens Antígona?
CREONTE: – (a seu séquito) Ou ela vem por vontade própria, ou usem a força.
ANTÍGONA: – Não! Não! Deuses! Homens! Venham em meu socorro!
CORO: – (a Creonte) Estrangeiro, qual a vossa intenção?
CREONTE: – Naquele homem, não tocarei. Mas ela é minha.
ÉDIPO: – Homens de Atenas!
CORO: – Estrangeiro, tua ação não é justa!
CREONTE: – Sou chefe desta família; tomo o que é meu.
ÉDIPO: – Atenas!
CORO: – Solta a menina ou nossa força esmagará a tua!
CREONTE: – Afastem-se!
CORO: – Solta a menina!
CREONTE: – Não dêem ordem a quem lhes é superior.
CORO: – Solta a menina, já!
CREONTE: – Aqui, quem ordena sou eu: sai!
CORO: – Homens de Atenas, estamos sendo atacados! Aqui, aqui, venham em nossa socorro!
ANTÍGONA: – Eles me arrastam! (T) Amigos, amigos!
ÉDIPO: – Minha filha, onde estás?
ANTÍGONA: – Sou levada à força.
ÉDIPO: – Tuas mãos, minha filha, me dê tuas mãos!
ANTÍGONA: – Não consigo.
CREONTE: – (a seus guardas) Vão!
ÉDIPO: – Perdi! Perdi! Estou perdido!
Guardas saem com ANTÍGONA.
CREONTE: – Tuas muletas não guiarão teus passos. Aprende: no passado, a ira foi tua ruína. Aprende: não é bom ser dominado pela ira.
CREONTE finge sair.
CORO: – Estrangeiro, para!
CREONTE: – Não toquem em mim!
CORO: – Devolve as meninas.
CREONTE: – Sendo assim, vou capturar mais do que aquelas meninas.
CORO: – O quê!?
CREONTE: – Esse velho será meu cativo.
CORO: – Uma ameaça!?
CREONTE: – Que será ação.
CORO: – Nosso rei vai impedir! Nosso rei! Nosso rei!
ÉDIPO: – Tu me tocarás?
CREONTE: – Silêncio! Quieto, calado, quedo, mudo!
ÉDIPO: – Meus olhos vêem apenas o negro e tu tiras de mim minha filha, minha visão! Que os poderes deste lugar me emprestem força para proferir mais esta maldição: Apolo, dê a este amaldiçoado uma velhice igual à minha!
CREONTE: – Vêem isto, povo da terra?
ÉDIPO: – Eles vêem a mim e a ti. Eles vêem que tuas ações me trouxeram sofrimento e que minha defesa está apenas nas palavras.
CREONTE: – Não, não vou dominar minha ira. Embora eu esteja velho, só e lerdo, levarei este homem à força.
CREONTE se aproxima de ÉDIPO.
ÉDIPO: – Ahh!
CORO: – Trouxeste espírito ousado, se pensas conseguir isto.
CREONTE: – Eu consigo.
CORO: – Assim, Atenas deixa de ser uma cidade.
CREONTE: – Quando a causa é justa, o fraco vence o forte.
ÉDIPO: – Ouvistes estas palavras?
CORO: – Palavras que ele não vai transformar em ação. Zeus sabe!
CREONTE: – Zeus talvez saiba, tu não.
CORO: – Insolência!
CREONTE: – Insolência que tu vais engolir.
CORO: – Atenas! Vem! Cidadãos de Atenas! Venham! Venham já! Detenham esses homens! Esses homens profanaram limites! Atenas!
Entram TESEU e séquito.
TESEU: – Por que gritam? O que acontece? Que temor os levou a interromper meu sacrifício a Poseidon?
ÉDIPO: – Ah, amigo, conheço vossa voz. Esse homem nos trouxe o horror.
TESEU: – Que horror? Fala!
ÉDIPO: – Creonte, ali, sequestrou minhas filhas.
TESEU: – O que me dizes!?
ÉDIPO: – O que vós ouvistes.
TESEU: – (a seu séquito) Rápido, um de vós, tu! Vai aos altares, diz ao povo para interromper o sacrifício e correr, já, a cavalo ou a pé, até onde as duas estradas se encontram. As donzelas não podem passar dali. Esse estrangeiro crê zombar de mim. Vai, rápido! (a Creonte) Quanto a ti, se minha ira fosse até onde ela quer ir, tu não sairias de minhas mãos sem sangrar. Mas serás justiçado pela mesma justiça que trouxeste: tu não deixarás esta terra até que eu veja as donzelas diante de mim. Tua ação traz vergonha para tua raça e para tua terra. Invadiste uma cidade que respeita a justiça e a fizeste cativa a teu intento, na crença de que era cidade vazia de homens, ou habitada por escravos, ou que eu era coisa qualquer. Não foi o espírito tebano que te fez vil. Tebas não cria vilões. Nem ela te louvaria, se soubesse que tu estás saqueando os deuses, quando sequestras à força teus desafortunados suplicantes. Tu envergonhas uma cidade que não merece vergonha. Meus lábios dizem, mais uma vez: as donzelas devem ser trazidas para cá! E o que meus lábios dizem brota da minha alma.
CORO: – Vês, estrangeiro? Tu és considerado de raça justa, mas tuas ações são injustas.
CREONTE: – Filho de Egeu, não vejo esta cidade vazia de força, nem agi sem pensar. Agi porque julguei que vosso povo não poderia estar envolvido com meus parentes, a ponto de acolhê-los contra minha vontade. Eu acreditava que vosso povo não acolheria um parricida, um homem poluído, que gerou filhos no ventre que o gerou; eu acreditava que tal saber não permitiria que andarilhos assim perambulassem por vossas terras. Nesta crença, sustentei minhas ações. Antes de eu agir, ele lançou maldições sobre mim e sobre minha raça. Injustiçado, julguei ser bem agir assim. Vós agirás como julgar bem.
ÉDIPO: – Alma sem pudor, em quem pensas que cai tua provocação? Em mim ou em ti? Sangue derramado, incesto, sofrimento, tudo o que teus lábios lançaram contra mim, eu suportei – e com que dor! Nada foi escolha minha. Tudo foi escolha dos deuses, talvez irados com a nossa raça, desde tempos idos. Prenda-me e tu não encontrarás nenhum pecado para me repreender, diante do que fui levado a pecar contra mim mesmo e contra meus familiares. Havia um destino divino sobre meu pai, que dizia que ele deveria morrer pelas mãos de um filho que ainda não havia nascido. Nascido e crescido, encontrei meu pai num confronto e o matei, ignorante do que estava fazendo e a quem. Como podes me culpar?
E minha mãe? É tua vontade insultar a ela e a mim? Não te envergonha me forçar a falar das núpcias da tua irmã? Então eu falo, falo tudo. Sim, ela era minha mãe. O horror! Eu não sabia, nem ela. E, para vergonha de todos, ela teve filhos do filho que ela deu à luz.
Se aqui, agora, alguém tentasse te matar, homem horrendo, tu perguntarias se o matador era teu pai? Pois foi em tal evento que os deuses me atiraram e, pudesse meu pai voltar à vida, ele não iria me contradizer.
No entanto, tu me achincalhas e adulas Rei Teseu, exaltando Atenas como cidade bem ordenada. Ao proclamar tantos elogios, tu te esqueces de que, se alguma terra sabe como adorar os deuses, Atenas se destaca. Daqui de onde sequestraste minhas filhas e planejaste me sequestrar, eu, agora, suplico às deusas para que me ajudem e lutem por minha causa. E tu, alma sem pudor, conhecerás os homens que guardam este reino.
CORO: – Rei Teseu, o estrangeiro é homem bom. Seu destino foi desgraçado, mas ele é digno do nosso amparo.
TESEU: – Cessem as palavras. Os sequestradores fogem, enquanto falamos.
CREONTE: – O que ordenais que este homem indefeso faça?
TESEU: – Mostre a meus homens o caminho até as donzelas. O destino caçou o caçador. Teus ganhos ilícitos se perderam. Tu me entendes? Ou estas palavras te parecem vazias?
CREONTE: – Dizei o que quiser, enquanto eu estiver aqui. Em casa, saberei como agir.
TESEU: – Ameace, mas vá! Édipo, tu ficas aqui, em paz. Prometo que agirei até colocar tuas filhas ao teu lado.
ÉDIPO: – Que os céus vos recompensem, Rei Teseu!
Saem TESEU e seu séquito, com CREONTE.
CORO: – Ah, como eu queria, como eu queria estar lá! Lá, no alarido da batalha! O inimigo, o inimigo encurralado! Na adorada praia de Apolo! Ou na praia iluminada por tochas! Na praia onde as Grandes Deusas celebram seus ritos! Seus ritos terríveis! Mortais! Mortais para os mortais! Cujos lábios os sacerdotes de Elêusis selaram, silenciaram, susss, silêncio… (T) Imagino, entrevejo, vejo Rei Teseu e as donzelas. Eles vêm. Estão dentro de nossas fronteiras. Aqui. Saudados por gritos. Vitória! Creonte foi derrotado! Pelos guerreiros de Colonus. Pelos aguerridos guerreiros de Colonus. O aço de cada rédea. As rédeas frouxas de toda a cavalaria.
A batalha, ela acontece agora, ou ainda está por vir? A espera. A esperança de que estaremos com as donzelas. As sofridas donzelas. Cujo sofrimento chega ao fim. Cessa. Hoje. Agora. Por Zeus, sinto vitória. Ah, ser uma pomba veloz. E voar pelo ar. E olhar. E ver. Lá de cima. A luta! Zeus e sua filha, Pallas Athena! Concedam vitória aos guardas desta terra! Apolo e sua irmã, Artemis! Concedam força a esta terra. E ao povo dela. (T) Ali. Pronto. Findam os nossos presságios. Finda a tua vigília, amigo errante. Vossas donzelas aí vêm. Escoltadas. Libertas.
ÉDIPO: – O que dizeis? Como? Onde?
Entram ANTÍGONA e ISMÊNIA, com TESEU e seu séquito.
ANTÍGONA: – Pai, meu pai, se algum deus permitisse que vossos olhos vissem este nobre homem que nos trouxe para vós…/
ÉDIPO: – Minha filha! Tu estás aqui?
ANTÍGONA: – Sim, Rei Teseu e seus guardas nos salvaram.
ÉDIPO: – Minhas filhas, venham até mim! Deixe-me abraçá-las!
ISMÊNIA: – Vosso desejo é o mesmo que o nosso.
ÉDIPO: – Onde? Onde estão?
ANTÍGONA: – Aqui, juntas.
ÉDIPO: – Minhas amadas!
ISMÊNIA: – Meu amoroso pai.
ÉDIPO: – Companheiras em toda a minha vida!
ANTÍGONA: – E companheiras na vossa tristeza.
ÉDIPO: – Também acompanho minhas filhas queridas. Se eu morresse agora, não estaria triste: vós viestes a mim. Venham, crianças, abracem vosso pai e descansem. Esta é a última peregrinação. Relatem o que aconteceu. Um relato breve é bastante.
ANTÍGONA: – Aqui está o nosso libertador. É dele que deveis ouvir a história.
ÉDIPO: – Senhor, perdoe se as palavras para minhas filhas se alongaram e não vos dei a devida atenção. Encontrá-las novamente estava além da minha esperança. Sei que esta alegria veio de vós e somente de vós. Rogo aos deuses que concedam tudo o que desejo a vós e a esta terra. Foi aqui que encontrei honra aos deuses, espírito de justiça e lábios que não mentem. Com estas palavras, retribuo o que tenho, pelo que tenho por vós e por nenhum outro homem. Estendei vossa mão direita, ó rei, para que eu possa tocá-la e, se for lícito, beijar vossa face. (T) O que estou dizendo? Como posso desejar que vós tocásseis alguém em quem o pecado fez sua morada? Não. Somente elas podem partilhar este fardo. Receba minha saudação onde estais.
TESEU: – Recebo tua saudação sem estranheza. A alegria em ter tuas filhas gerou em ti longa fala. E minha promessa a ti não careceu de nada. Aqui estou e aqui estão as donzelas, vivas e imunes a ameaças. Como a luta foi vencida, que necessidade tenho de me vangloriar? Mas, quando vim para cá, algo aconteceu. Aconselha-me, pois foi motivo de espanto e homem nenhum deve desdenhar o que esteja sob seu cuidado.
ÉDIPO: – O que é, filho de Egeu? Diga-me.
TESEU: – Um homem – dizem, não ser teu compatriota, mas teu parente – lançou-se suplicante, em nosso altar a Poseidon, quando eu prestava sacrifício.
ÉDIPO: – De que terra ele é? O que ele deseja pela súplica?
TESEU: – Sei apenas o que dizem. Que ele pede um breve contato contigo.
ÉDIPO: – Sobre o quê? Uma súplica a Poseidon não é matéria banal.
TESEU: – Dizem que ele pede apenas conversar contigo e voltar ileso de sua jornada até aqui.
ÉDIPO: – Quem pode ser?
TESEU: – Tens parente em Argos que careça de tua dádiva?
ÉDIPO: – Ah, meu bom amigo, não dizei mais nada!
TESEU: – O que te aflige?
ÉDIPO: – Não perguntai.
TESEU: – Não perguntar o quê?
ÉDIPO: – Eu sei quem é o suplicante.
TESEU: – Quem é? O que ele traz de erro?
ÉDIPO: – É meu filho, meu odiado filho, cujas palavras fariam doer meus ouvidos como as de nenhum outro homem.
TESEU: – O quê? Não podes ouvi-lo sem fazer o que não queres? Por que doeria ouvi-lo?
ÉDIPO: – Rei Teseu, aquela voz se tornou odiosa para mim. Não me constranja.
TESEU: – Pense: ele suplicar a Poseidon não te constrange? Pense: tens um dever a Poseidon?
ANTÍGONA: – Pai, sei que sou jovem para dar conselhos, mas permita que o rei satisfaça seu próprio coração e satisfaça Poseidon. E, pelo bem de tua filha, permita que nosso irmão venha. Ele não conseguirá mudar vossa decisão com palavras. Ouvi-lo falar, que mal pode haver nisso? Mesmo que ele vos ofendesse com o mais hediondo dos erros, não é lícito devolver um erro com outro. Permita que ele venha. Pensai no passado, não no presente. Pensai em tudo o que suportastes por vosso pai e vossa mãe. Pensai nestas questões e percebereis que um mal convida outro mal.
ÉDIPO: – Minha filha, é doloroso, mas tu me vences com tua súplica. Que seja como queres. Mas, bom rei, não permita que esse homem sequestre nenhum de nós!
TESEU: – Tais palavras não são necessárias, bom velho. Tenha a certeza de que tuas vidas estão a salvo, enquanto houver um deus que salve a minha.
Sai TESEU.
CORO: – Quem? – Quem? – Quem deseja vida longa? – Não te contentas com vida breve? – Eu vejo. – Eu percebo. – Eu sei. – Eu afirmo. – Com fala clara. – Quem deseja vida longa contempla trevas.
Vida longa contém tristezas, mais do que alegrias. E as alegrias, tu não as reconhecerás. Tua vida se prolonga além do apropriado? O Condutor Supremo vem, justo quando a sentença de Hades é revelada. Sem música de casamento nem toque de lira nem movimento de dança. Apenas morte.
Bom é morrer logo depois de ter nascido. – Melhor é nunca nascer. – Ou a juventude vem e vai. – Se esvai. – E vem dor. – Sofrimento. – Inveja. – Ira. – Fúria. – Revolta. – Vem a velhice. (T) – A velhice se apropria de ti. – Te faz enfermo. – Te torna desprezível. – Te põe sem amigos. – Te transforma num transtorno. – Num estorvo. – Um infortúnio. – Uma inutilidade. – Nulidade. – Nada.
Um tempo.
ANTÍGONA: – (quebra o silêncio) Ali! Um estrangeiro! Vejo o estrangeiro! Ele vem para cá! Ele vem só. Lágrimas correm de seus olhos.
ÉDIPO: – Quem é?
ANTÍGONA: – O mesmo que estava em nossos pensamentos: Polinices.
Entra POLINICES.
POLINICES: – Sim, Polinices sou eu. O que devo fazer, minhas irmãs? Devo prantear minhas dores ou as de meu pai? Meu velho pai, que encontro neste desterro, vestido em andrajos, imundo, esquálido, os olhos cegos, o cabelo emaranhado a voar ao léu.
E eu, infeliz, só agora – é tarde demais… -, só agora, eu soube disto. Sei, eu sei que sou o mais vil dos homens por não cuidar do senhor. Dos meus próprios lábios, ouça: sou o mais vil dos homens. Mas, como Zeus compartilha seu trono com a Misericórdia, permita que ela se sente ao vosso lado. Meus erros podem ser sanados, meu pai; meus erros não devem ser agravados.
Um tempo.
POLINICES: – Pai? Pai! Meu pai! Por que estais em silêncio? Não respondeis? Quereis me afastar? Meu pai, não vos afasteis de mim! Permanecereis mudo? Estais irado? Direis por quê? Recusareis dizer por quê?
E vós, minhas irmãs, tentem, ao menos tentem demover o silêncio de nosso pai. Não permitam que ele me afaste, desonrado. Sou um suplicante do deus de Colonus e, mesmo assim, nosso pai me afasta sem dizer palavra!
ANTÍGONA: – Meu desafortunado irmão, diz, tu mesmo, o que vieste buscar. O fluxo das tuas palavras talvez suscitem ternura ou ira e, assim, talvez deem voz à mudez de nosso pai.
POLINICES: – Bom conselho, minha irmã. Falarei francamente. Primeiro, rogo a ajuda de Poseidon, em cujo altar o rei desta terra me incitou a vir aqui, para falar, ouvir e seguir ileso meu caminho. Rogo a vós, estrangeiros, que estas promessas sejam honradas. Agora, meu pai, vou dizer por que vim.
Fui expulso da minha terra, porque, sendo primogênito, reivindiquei o trono. Meu irmão Etéocles, mesmo sendo mais jovem, me expulsou. Ele não me venceu com argumentos nem com armas; ele persuadiu a cidade. A causa disto é a maldição de nossa casa – também sei ouvir os oráculos. Fui para Argos, tomei a filha de Adrastus como esposa, reuni os famosos guerreiros do Peloponeso e, com eles, formei um exército de lanceiros. Vou morrer por causa justa ou expulsar de Tebas os que erraram. Por que estou aqui, meu pai? Para suplicar por vosso apoio ao exército de Argos contra Tebas. Se oráculos são dignos de crédito, eles vaticinaram que a vitória vai estar com quem o senhor apoie. Meu irmão me expulsou de terra que é minha. Suplico, meu pai, que recolhais vossa ira contra mim, enquanto puno meu irmão.
Vós e eu somos iguais. Somos exilados e pedintes. Enquanto ele, rei da nossa casa, zomba de vós e de mim. Junte vossa vontade à minha. Se o senhor me apoiar, espalharei vossa força aos ventos. Sem vós, tombarei morto.
CORO: – Honre aquele que enviou teu filho até aqui. Fala, Édipo. Fala o que te parece bem.
ÉDIPO: – Meus amigos, guardiões desta terra, não fosse Rei Teseu quem enviou este homem aqui, ele jamais ouviria minha voz. Ele será agraciado com isso, mas minhas palavras jamais agraciarão sua vida.
Polinices, tu és homem sórdido. Quando tinhas o cetro e o trono, que agora teu irmão tem, tu arrastaste teu próprio pai ao desterro e me tornou um ser sem cidade, um errante andrajoso. Agora que chegaste à mesma miséria que eu, tu choras ao ver o fardo que carrego. A hora do choro já se foi. Agora, vejo em ti um sórdido. Foste tu que me expulsaste, foste tu quem me pôs a vagar no desterro, a mendigar pão em desespero, foste tu que trouxeste tormento aos meus dias. Se estas filhas não tivessem nascido, eu estaria morto. Tu e teu irmão não são filhos meus.
Os olhos do destino olham para ti. Tu jamais conseguirás conquistar Tebas. Ali, tu cairás, banhado em sangue, teu e de teu irmão. Tais são as maldições que lanço aos dois. Que sejam punidos por desprezar um pai que, cego de alma, gerou filhos sórdidos. Sim, devolvo com maldições tua súplica ao “teu” trono.
Agora, vai, sai, some daqui. Amaldiçoado e sem pai. Vai e leva contigo as maldições que invoco: que o Deus Destruidor inocule ódio em ti e em teu irmão; que as trevas de Tártaro te conduzam a outro lar. Sai, vai, some da vida!
CORO: – Polinices, o teu passado não nos traz alegria. Siga, já, a tua jornada.
POLINICES: – Minha jornada… Minha esperança… Meus… Que fim terá o exército saído de Argos? Que fim… Não posso fazê-los voltar. Devo seguir, em silêncio, ao encontro do meu destino.
Minhas irmãs, ouvistes as duras palavras de nosso pai. Se as maldições deste pai forem cumpridas, não me desonrem: concedam-me sepulcro digno e os devidos ritos.
ANTÍGONA: – Polinices, ouça-me!
POLINICES: – O que, minha querida irmã Antígona?
ANTÍGONA: – Não destruas a ti e a Tebas. Conduze teu exército de volta para Argos.
POLINICES: – Não é possível. Como posso seguir liderando um exército, se me mostro pálido?
ANTÍGONA: – Por que seguir com essa ira? Que vitória existe em destruir tua cidade natal?
POLINICES: – Por vergonha de ser um exilado que, sendo primogênito, é apequenado por irmão mais moço.
ANTÍGONA: – Não vês? Assim, invocas o cumprimento das maldições de nosso pai! Meus dois irmãos vão morrer!
POLINICES: – É o que ele deseja. Mas não vou recuar.
ANTÍGONA: – Infeliz! Quem, sabedor das maldições de nosso pai, ousará acompanhar-te?
POLINICES: – Eles não vão saber; eu não vou relatar. Um bom líder relata as boas notícias; as más, não.
ANTÍGONA: – Tua decisão está tomada, meu irmão?
POLINICES: – Está. E não me detenhas. Vou seguir meu caminho, debaixo das maldições de meu pai e de suas Fúrias. Minhas irmãs, que Zeus torne brilhantes vossos caminhos, se cumprirem meus desejos, quando eu estiver morto. Adeus. Nunca mais me vereis vivo.
ANTÍGONA: – Ahhh!
POLINICES: – Não, não chora por mim.
ANTÍGONA: – E quem não choraria por ti, um irmão que mergulha na morte anunciada?
POLINICES: – Se assim quer o destino, assim será.
ANTÍGONA: – Não, não! Ouça minha súplica!
POLINICES: – Não supliques em vão.
ANTÍGONA: – O que será de mim se te perder!?
POLINICES: – Os deuses traçam nossos caminhos. E eu rogo aos deuses que jamais tracem o caminho do sofrimento para minhas irmãs.
POLINICES sai.
CORO: – Ouça. Perceba. Entenda. Novos males vêm vindo para cá! O estrangeiro cego traz pesada condenação. A menos que, talvez, quiçá, por acaso, o destino encontre outro caminho. Não, não é nosso o dizer. Decreto do destino não é vão, não. O tempo, sim. Vigilante dos decretos é o tempo. Que derruba este destino. Ou aqueloutro. E, no dia seguinte, ergue este. Ou o outro.
Um tempo e um trovão é ouvido.
CORO: – Ouço. Ouça. Ouçamos o som do céu. Shhh… Deus, Zeus, sede nosso protetor!
ÉDIPO: – Minhas filhas! Se houver alguém para ir, que vá e traga o soberano Teseu!
ANTÍGONA: – Qual o objetivo de vossa convocação, meu pai?
ÉDIPO: – Este trovão de Zeus, ele me chama para o Hades. Vá, envie alguém, já.
Ouve-se um segundo trovão.
CORO: – Ouvis? Ouvistes? Foi estrondo mais alto! Indizível! Inefável! Inenarrável! Arremessado por Zeus! Meus cabelos se eriçam! De medo! De pavor! De pânico! Minha alma dói. Minh’alma pesa. Cai.
Um relâmpago seguido de trovão e blackout.
CORO: – Ah… De novo. O trovão. O relâmpago. O céu escuro. O que anuncia? Medo. Pavor. Pânico. Nunca. Jamais. Em vão. Ele vem. Céu! Terrível céu! Deus! Zeus!
Fim do blackout.
ÉDIPO: – Filhas, não posso mais fugir do destino. O fim de vosso pai chegou.
ANTÍGONA: – Como sabeis? Que sinal vos disse tal coisa?
ÉDIPO: – Eu sei. Que vá alguém, já. Que traga para cá o soberano desta cidade.
CORO: – Sabemos. Ouvimos o sinal. Percebemos o chamamento. A voz do trovão. Estamos envoltos, todos nós, na mesma voz! Na voz do trovão! Deus! Zeus! Sede misericordioso! Se trazeis tristeza a esta terra…/ Trazei misericórdia! Se demos ternura a homem amaldiçoado, não nos amaldiçoe por isto! Zeus! Zeus! Por vós clamamos nós!
ÉDIPO: – Rei Teseu está perto? Ele vai me ver ainda vivo? Ainda lúcido?
ANTÍGONA: – Que promessa tendes em mente?
ÉDIPO: – Seus benefícios, eu os retribuirei com os que prometi.
CORO: – Vinde, Rei Teseu, vinde! Se estais nos confins da clareira, a honrar Poseidon, vinde! Se estais santificando seu altar, vinde! Vinde daí! Digno sois vós aos olhos do estrangeiro. Digna é vossa cidade. Digno é vosso povo. Recebei justa retribuição pelos vossos benefícios. Depressa, rei, vinde. Vinde depressa! Rei!
Entra TESEU.
TESEU: – Por que retumba por toda a terra o clamor do meu povo e do nosso hóspede? Foram os trovões de Zeus, a causa? Todos os presságios ganham vida, quando Zeus arremete tempestade assim.
ÉDIPO: – Bem-vindo, Rei Teseu. Algum deus criou a boa sina desta vossa vinda.
TESEU: – O que aconteceu, filho de Laïo?
ÉDIPO: – Minha vida está no fim e quero cumprir as promessas que fiz a vós e a vossa cidade.
TESEU: – Com que sinais o destino anuncia teu fim?
ÉDIPO: – Os deuses e seus arautos lançaram sobre mim repetidos trovões e relâmpagos.
TESEU: – Tuas profecias se revelaram verdadeiras. Tua credibilidade é alta. O que deve ser feito?
ÉDIPO: – Filho de Egeu, agora, revelarei um tesouro para Atenas que nem o tempo conseguirá corroer. Agora, sem ajuda nem guia, mostrarei o lugar onde devo morrer. Mas jamais revelai onde estou sepultado, para que eu, melhor do que mil escudos, possa servir de defesa para vós, para vossa cidade, para sempre.
Seguindo os mistérios que minha fala não pode profanar, vós marcareis este lugar. Sozinho. Quando o fim da vossa vida chegar, revelai apenas a vosso sucessor, para que ele revele a seu sucessor e, assim, sucessivamente. Assim, esta cidade jamais será destruída pelos filhos do dragão, os tebanos. A convocação divina me compele.
Vamos. Minhas filhas, venham comigo. Não, não me toquem. Agora, sou eu quem vos guia. Sou eu quem vai encontrar o sepulcro sagrado. Por aqui! Por aqui me conduzem Hermes e Perséfone, a deusa dos mortos!
Luz! Luz! Outrora tu foste minha! Agora, meu corpo te sente pela última vez! Vou guardar o fim da minha vida junto a Hades, o mais verdadeiro dos amigos. Abençoados sejam vós e esta terra. Quando vossos dias forem abençoados, lembrem-se de mim.
ÉDIPO sai, com suas filhas, TESEU e assistentes.
CORO: – Ó, Hades, ó, Perséfone, ó Senhor da Noite, ó, Deusa Invisível, a vós oramos. A vós, rogamos. Muitas dores se abateram sobre o estrangeiro. Agora, rogamos que ele passe, sem dor, sofrimento ou lamento, ao país dos mortos.
Ó, Cérbero, terrível cão, indomável vigilante dos mortos, abra caminho ao estrangeiro! A vós, provedores do sono eterno, assim clamamos nós. Que Édipo passe, daqui para aí, sem dor, sofrimento ou lamento. Agora.
[Nota do tradutor. Como se vê, aqui ocorre uma disparidade entre o tempo da história e o tempo da narrativa: os eventos narrados pelo Mensageiro, a seguir, demandam um tempo maior do que o tempo que o Coro leva para proferir sua fala, acima. Optei por rubricar blackout.]
Um tempo em blackout.
Entra o MENSAGEIRO.
MENSAGEIRO: – Homens de Colonus! Édipo se foi. (Fim do blackout.) O acontecido, ali, não foi pouco nem pequeno. Não pode ser narrado em poucas palavras.
CORO: – O estrangeiro se foi?
MENSAGEIRO: – Sim. Édipo saiu da vida.
CORO: – Como saiu? Foi desgraça lançada por um deus? Foi passagem sem dor?
MENSAGEIRO: – Neste momento, entramos no terreno do maravilhoso. Vós vistes o cego sair daqui sem que pessoa alguma lhe mostrasse o caminho. Mais do que isto, Édipo mostrou o caminho às pessoas. Quando chegou ao limiar do terreno, ele parou frente à encruzilhada, na qual está a lápide do pacto de amizade entre Rei Teseu e Pirítoo. Édipo parou entre uma bacia e a lápide, tirou suas roupas imundas, chamou suas filhas e pediu que trouxessem água, para se lavar e fazer libação. Elas assim procederam: lavaram e vestiram o pai.
Édipo terminou de fazer a libação e logo desabou o trovão de Zeus. As donzelas se agarraram aos joelhos do pai e choraram. Quando Édipo ouviu aquele choro amargo, ele as abraçou e disse: – Minhas filhas, hoje, a vida de vosso pai acaba. Agora, não mais carregareis o pesado fardo de cuidar de mim. Mas uma palavra torna nada este fardo todo: amor. Até hoje, ninguém nesta terra as amou mais do que eu. De hoje em diante, não estarei mais convosco.
Abraçados, pai e filhas soluçaram e choraram. Quando soluço e choro cessaram, houve silêncio. Um longo silêncio. Súbito, uma voz retumbou, alto: – Édipo, por que tardas tanto?
Quando percebeu que era chamado, Édipo pediu a Rei Teseu que se aproximasse e disse: – Meu amigo, rogo por vosso penhor a minhas filhas e, minhas filhas, rogo pelo mesmo penhor a ele. Rei Teseu, rogo que jamais as abandone e que sempre traga o bem a elas. E Rei Teseu fez que sim.
Rápido, as mãos cegas de Édipo tocaram as donzelas e ele disse: – Minhas filhas, saiam deste lugar. Depressa. Rei Teseu, que apenas vós sejais testemunha do que vai acontecer.
Assim falou Édipo, assim nós ouvimos. Envoltos em lágrimas, seguimos as donzelas. Pouco tempo depois, muito pouco tempo depois, olhamos para trás e Édipo não estava mais ali. Rei Teseu, sozinho, cobria seu rosto com as mãos, como se protegesse de visão terrível. E vimos o rei, numa prece, saudar a terra e o ar dos deuses.
Como Édipo saiu da vida? Apenas Rei Teseu pode narrar. Édipo não foi fulminado por raio algum, não foi tragado por tempestade nenhuma. Talvez ele tenha sido levado por mensageiro dos deuses, talvez o mundo dos mortos tenha se aberto para ele. O que sei: a morte de Édipo foi sem dor, sofrimento ou lamento. A morte de Édipo foi maravilhosa.
CORO: – E as donzelas? E sua escolta? Onde estão?
MENSAGEIRO: – Quase aqui. Ouço sons de choro. Elas estão aqui.
Entram ANTÍGONA, ISMÊNIA e escolta.
ANTÍGONA: – Aqui tendes duas irmãs desventuradas, a prantear a maldição do sangue do nosso pai…
ISMÊNIA: – … que corre em nossas veias.
ANTÍGONA: – Enquanto nosso pai viveu, suportamos dor…
ISMÊNIA: – … longa, incessante.
ANTÍGONA: – Agora, tudo cessado, aparição e desaparição turvam nosso pensamento.
CORO: – Como é pensamento turvado?
ANTÍGONA: – É pensamento tornado dúvida.
CORO: – Ele se foi?
ANTÍGONA: – Sim, ele se foi.
ISMÊNIA: – E da maneira como todos gostaríamos de ir.
ANTÍGONA: – A morte o levou. Não foi tombado em guerra, nem foi tragado pelo mar.
ISMÊNIA: – Foi engolido pelos campos invisíveis.
ANTÍGONA: – Ah, minha irmã, a noite da morte cobre nossos olhos. Que mares devemos atravessar? Que terras devemos percorrer? Que lugar irá nos acolher?
ISMÊNIA: – Não sei, Antígona. Não sei se consigo viver.
CORO: – Não! Não queimem com mais dor as dores que o céu atira sobre vós!
ANTÍGONA: – Existe dor na perda de dor. Existia dor, quando eu levava meu pai em meus braços. Agora, eu…/ Agora, nós sofremos a dor de termos perdido a dor de ter nosso pai.
CORO: – Ele se foi…/
ANTÍGONA: – Ele se foi como queria ir.
CORO: – Como assim?
ANTÍGONA: – Ele se foi em solo de sua escolha. Na sombra do seu sepulcro, ele tem seu leito eterno. Atrás de si, ele levou o rio das nossas lágrimas. Meu pai, nós…/ Ah, não sei, não sei…
CORO: – Parem, parem com este choro! Vosso pai encontrou um fim abençoado.
ISMÊNIA: – Que novo destino nos espera, minha irmã?
ANTÍGONA: – Não sei, não sei…
CORO: – Meninas, afastem-se do medo.
ANTÍGONA: – Para onde devo me afastar?
CORO: – Para onde nenhum dano irá tocá-las.
ANTÍGONA: – Não sei onde é.
CORO: – Aqui. Fiquem aqui.
ANTÍGONA: – Aqui, nos afogamos em sofrimento.
CORO: – Sim, vasto é o mar dos vossos sofrimentos.
ANTÍGONA: – Zeus! Diga onde, diga para onde o destino nos impele?
Entra TESEU.
TESEU: – Parem de chorar, donzelas. Não cabe haver choro quando o poder das trevas acolheu vosso pai, sem dor, sofrimento ou lamento. Parem de chorar ou a ira divina descerá sobre vós.
ANTÍGONA: – Filho de Egeu, nós suplicamos para ver, com nossos próprios olhos, o túmulo de nosso pai.
TESEU: – Não. Não é lícito.
ANTÍGONA: – Por que, senhor rei de Atenas?
TESEU: – Porque vosso pai me fez prometer que ninguém se aproximaria do lugar em que ele dorme. E minha promessa foi ouvida por Zeus.
ANTÍGONA: – Sim… Sei… Se é do agrado dos mortos, devemos nos conformar.
ISMÊNIA – Sendo assim, envie-nos a Tebas. A ver se conseguimos impedir que nossos irmãos se dilacerem um ao outro.
TESEU: – Assim farei.
CORO: – Cessemos os lamentos. Sequemos as lágrimas. Tudo está certo.
Atrás de TESEU, saem todos.
FIM
OH, DEUS! – de Woody Allen.
Oh, Deus!
comédia em um ato
de Woody Allen.
Tradução e Adaptação
de Flávio de Campos.
@ by Woody Allen.
Ed.: Samuel French, Inc.
45 West 25th. Street – New York 10.010.
Personagens (mais de um por ator):
– Ator.
– Escritor.
– Garota.
– Francilene Mesquita.
– Empregada.
– Triquiníases.
– O Ponto.
– Bursite.
– Homem (na platéia).
– Bárbaro Heliodoro.
– Mulher Esfaqueada.
– Blanche DuBois.
– Diabete.
– Fidípides (Escravo representado por Diabete).
– Outro Escravo Grego.
– Mestre / Senhor de Escravos (?).
– Bob.
– Wendy.
– Guarda.
– Mulher (no palco).
– Rei.
– Médico.
– Carteiro.
– Stanley / Cristiano (?).
– Outro Homem (na platéia).
– Outra Mulher (na platéia).
– Coro Grego.
– Deus (papel sem fala).
– Groucho Marx (papel sem fala).
– Empregada do Woody Allen (Voz ao telefone).
– Woody Allen (Voz ao telefone).
– Amigo.
– Patrão.
(SÓ A S.B.A.T. AUTORIZA MONTAGENS.)
CENA: ATENAS. APROXIMADAMENTE 500 AC. PÔR DO SOL. NO CENTRO DE UM ENORME ANFITEATRO VAZIO, DOIS GREGOS MUITO AGITADOS. UM É O ATOR; O OUTRO, O ESCRITOR. ESTÃO DISTRAÍDOS, PENSANDO. DEVEM SER INTERPRETADOS POR DOIS BONS ATORES CÔMICOS DE TEATRO DE REVISTA.
Ator: Nada… absolutamente nada…
Escritor: O quê?
Ator: Sem sentido. Vazia.
Escritor: É o fim da picada.
Ator: É claro. Que que a gente está discutindo? A gente está discutindo o fim.
Escritor: Estamos sempre discutindo o fim.
Ator: É porque não dá pé.
Escritor: Reconheço que esteja pouco satisfatório.
Ator: Pouco satisfatório? Está um cocô! O truque é começar a peça pelo fim. Imagina um final bem forte e depois escreve de trás pra frente.
Escritor: Já tentei isso… Acabei com uma peça sem começo.
Ator: É um absurdo!
Escritor: Absurdo? O que que é absurdo?…
Ator: Toda peça tem que ter começo, meio e fim!
Escritor: Por quê?
Ator: (CONFIDENCIA) Porque, como manda o Aristóteles, na natureza tudo tem começo, meio e fim.
Escritor: E o círculo?
Ator: (PENSA, ANDA EM CÍRCULO) Tá legal. O círculo não tem nem começo, nem meio, nem fim – mas qual é a graça?
Escritor: Ô, Diabete… pensa num fim… Estreamos daqui a três dias.
Ator: Eu não. Eu não vou entrar nessa roubada. Tenho um nome a zelar. Meus fãs não iam gostar de me ver numa peça que não estivesse à minha altura.
Escritor: Por ventura serei forçado a lembrá–lo de que você é um ator duro, desempregado, a quem eu generosamente consenti que trabalhasse na minha peça para tentar retomar uma carreira?
Ator: “Ator duro”, por enquanto. “Desempregado”, por enquanto. “Retomar carreira”, por enquanto. Mas bêbado, não!
Escritor: Eu não disse que você era bêbado.
Ator: Pois é, mas eu sou… Também…
Escritor: (NUM SÚBITO ATAQUE DE INSPIRAÇÃO) E se o personagem tirasse uma adaga do cinto e, do alto do seu sofrimento, esfaqueasse os próprios olhos até se cegar?
Ator: É, grande idéia! (PAUSA) Cê tá legal?
Escritor: Gostou da idéia?
Ator: Uma babaquice. A platéia vai olhar e…
Escritor: Eu sei: vai emitir aqueles sons…
Ator: Uuuhhh… Chama “vaia”.
Escritor: Ah… mas eu queria… eu queria muito que a minha peça tirasse o 1o. prêmio… Antes que a minha vida se acabe… Nem é tanto pelo dinheiro, sabe? É pela gloria.
Ator: (SUBITAMENTE INSPIRADO) E se o rei, de repente, mudasse de idéia?
Escritor: Ele nunca ia fazer isso.
Ator: (INSISTE) E se a rainha convencesse ele?…
Escritor: Nem pensar. Ela é uma filha da puta.
Ator: E se o exército troiano se rendesse?…
Escritor: Vão lutar até a morte.
Ator: E se o Agamenon quebrasse o juramento?…
Escritor: Não faz o gênero dele.
Ator: Mas eu podia pegar a espada dele e botar pra quebrar!
Escritor: Vai contra o seu personagem. Ele é um covarde, um escravo insignificante, com inteligência de minhoca. Escolhi você a dedo.
Ator: Acabei de dar seis, seis sugestões pro final!
Escritor: Cada uma mais idiota do que a outra.
Ator: A peça é que é idiota!
Escritor: As pessoas não são assim. A natureza delas não é assim.
Ator: O que que natureza tem a ver com isso? Nós, nós é que não temos um final.
Escritor: Se o homem é um animal racional, eu, como dramaturgo, não posso obrigar um personagem a fazer no palco o que ele não faria na vida real.
Ator: Você esquece que nós não existimos na vida real?
Escritor: O que que você quer dizer com isso?
Ator: O dramaturgo aí ainda não sacou que é personagem de uma peça que está sendo encenada neste momento no Rio de Janeiro? (T) Não, não fica brabo comigo. Não fui eu que escrevi.
Escritor: Somos personagens de uma peça e muito em breve estaremos vendo a minha peça… que é uma peça dentro de uma peça. E eles estão nos assistindo.
Ator: Metafísico a pampa, né não?
Escritor: Metafísico e bobo…
Ator: (INDICA A PLATÉIA) Você queria estar lá?
Escritor: (OLHANDO PARA A PLATÉIA) De jeito nenhum! Olha só para eles!
Ator: Então vamos continuar.
Escritor: (RESMUNGA) Eles pagaram para ver…
Ator: Ô Hepatite, tô falando com você!
Escritor: Já sei. O problema é o final.
Ator: É sempre o final.
Escritor: (DE REPENTE, PARA A PLATÉIA) Vocês tem alguma sugestão, aí?
Ator: Pára de conversar com a platéia! Ai, por que que eu fui falar neles?
Escritor: Gozado, não é? Nós somos dois velhos gregos em Atenas e vamos montar uma peça que eu escrevi e na qual você trabalha, e essa gente toda aí veio do Méier ou sei lá de onde para nos ver atuando na peça de alguém. E se eles também forem personagens numa outra peça? E se também estiverem sendo vistos por alguém? E se nada disso existir? Se a gente for só o sonho de alguém? Ou – pior ainda – e se só existir aquele gordo ali da terceira fila?
Ator: É isso que eu estou querendo dizer. E se o universo não for racional e as pessoas não tiverem nem origem nem rumo nem destino nem nada? A gente podia mudar o final e mandar as regras pras picas. Morou?
Escritor: Não. (PARA A PLATÉIA) Vocês estão entendendo o meu drama? Ele é ator… Vive a beber pelos bares…
Ator: Personagem não precisava ter perfil, cada um podia ser como quisesse. E eu não precisava ser o escravo só porque você escreveu que eu era. Eu podia ser o herói, numa boa.
Escritor: Mas aí não tem peça.
Ator: Não tem peça? Legal, vou beber pelos bares!
Escritor: Diabete, o que você está propondo é o caos!
Ator: Liberdade é caos?
Escritor: Se liberdade é caos? Humm… Essa é difÍcil. (PARA A PLATÉIA) A liberdade é o caos? Alguém aí fez Filosofia?
Franci: (DA PLATÉIA) Eu!
Escritor: “Eu” quem?
Franci: Bom, o que eu fiz mesmo foi Comunicação. Mas eu me amarro em Filosofia.
Escritor: Você pode vir até aqui?
Ator: Que que cê tá fazendo, cara?
Franci: Tem problema? Foi pela Gama Filho…
Escritor: Gama Filho? Não, “a gente transa tudo numa boa”.
ELA SOBE AO PALCO.
Ator: Era só o que faltava!
Escritor: Que que você tem?
Ator: A gente tá no meio de uma peça, cara! Quem é ela?
Escritor: Daqui a cinco minutos começa o Festival de Teatro de Atenas e eu ainda não tenho um final para a minha peça!
Ator: E daí?
Escritor: E daí que foram levantadas algumas das mais sérias questões filosóficas. Nós existimos? (INDICA A PLATÉIA) Eles existem? Qual é a essência da natureza humana?
Franci: Bom, o meu nome é Francilene Mesquita.
Escritor: Eu sou o Hepatite e esse aqui é o Diabete. Somos da Grécia Antiga.
Franci: E eu sou de Vaz Lobo.
Ator: Chuta ela desse palco!
Escritor: (OLHANDO–A DE ALTO A BAIXO) Gostosa pra caralho!
Ator: E daí?
Franci: A questão filosófica fundamental é a seguinte: se uma árvore desaba no meio da floresta e não tem ninguém por perto pra… para ouvi–la desabar, de que maneira podemos nos asseverar de que ela fez barulho?
OS TRÊS SE OLHAM, TENTAM ACHAR RESPOSTA NO AR. UM TEMPO E:
Ator: Que que o cu tem a ver com as calças, minha filha? Isso aqui é teatro… teatro comercial!
Escritor: (PARA FRANCILENE) Cê tá a fim de trepar comigo?
Ator: Ô, cara! Deixa a garota em paz!
Franci: (PARA O ATOR) Por que que você não fica na tua, hem?
Escritor: Isso mesmo! (FALA PARA OS BASTIDORES) Os senhores poderiam baixar a cortina, por gentileza? Eu não levo nem cinco minutos! (PARA A PLATÉIA) Os senhores esperem aí, combinado? Eu vou só dar um picirico rapidinho.
Ator: Isso é uma indecência! É o fim da picada…
Escritor: Isso é o começo da picada!
Ator: (MEDITA) Cê não tem uma amiga, não?
Franci: Tenho. (PARA ALGUÉM NA PLATÉIA) Waldilene, ô Waldilene. Cê não quer dar um pulinho aqui, não? Descolei uns gregos… (NINGUÉM RESPONDE) Ela é tímida…
Ator: O negócio é o seguinte: a gente tem uma peça pra representar. Vou ter que denunciar isso ao Autor.
Escritor: EU sou o autor!
Ator: Estou falando do autor original.
Escritor: (BAIXO) Diabete, eu vou afogar o meu ganso…
Ator: Como “afogar o ganso”? Você quer dizer “relações sexuais”? Com essa gente toda olhando?
Escritor: Mandei baixar a cortina. Além disso, eles também fazem essas coisas. Quer dizer, alguns…
Ator: Mané, babaca, otário: você é um personagem de ficção e ela é metodista e veio do subúrbio! Já imaginou os filhos que vão sair desse… picirico?
Escritor: Não empata. Sai um metodista de ficção, tudo bem. Quem sabe a gente arrasta a amiga dela para cá. (ATOR VAI À ESQUERDA DO PALCO USAR O TELEFONE) Waldilene? Esta é a sua oportunidade de transar com o (… O NOME DO ATOR). Ele é um astro… já trabalhou na Globo…
Ator: (AO TELEFONE) Me dá uma linha pra fora.
Franci: Não quero criar nenhum problema…
Escritor: Problema nenhum. É que nós tinhamos perdido o contato com a realidade.
Franci: E quem sabe realmente o que é a realidade?
Escritor: Você tem toda razão, Francilene…
Franci: (FILOSOFICAMENTE) Quantas e quantas vezes as pessoas se iludem com o que imaginam ser a realidade – e tudo não passa de mera quimera…
Escritor: Sei… Mas eu estou cheio de tesão por você e isso é real.
Franci: Sexo é real?
Escritor: Mesmo que não seja, é uma das “quimeras” mais gostosas da vida. (ELE A AGARRA, MAS ELA SE DESVENCILHA)
Franci: Não! Aqui não!
Escritor: Por que não?
Franci: Não sei. Sei lá… Era a minha fala…
Escritor: Você já transou com personagem de ficção?
Franci: Não. Mas já transei com argentino, o que é quase.
Ator: (FALA AO TELEFONE. OUVIMOS A VOZ DO OUTRO LADO DA LINHA, ATRAVÉS DE UM FILTRO) Alô?
Empregada: (OFF) Residência do Doutor Woody Allen.
Ator: Posso falar com ele?
Empreg.: (OFF) Quem deseja?…
Ator: Aqui é um personagem dele.
Empreg.: (OfF) Momentinho. Doutor Woody, tem um tal de personagem aqui no telefone.
Ator: (PARA OS OUTROS) Agora é que eu quero ver, rapeize!
Woody: (OFF) Alô.
Ator: É o Woody Allen?
Woody: (OFF) Sim.
Ator: Aqui quem fala é o Diabete.
Woody: (OFF) Quem?
Ator: Diabete. Um personagem seu.
Woody: (OFF) Ah, sei… Estou me lembrando… Você é um personagem muito mal realizado… muito unidimen-sional…
Ator: Obrigado.
Woody: (OFF) Ei! Você não devia estar em cena, neste momento?
Ator: É por isso que eu estou telefonando. Tem uma garota esquisita aqui no palco…
Woody: Tira ela daí!
Ator: Ela não quer sair…
Woody: E o Hepatite?
Ator: O Hepatite está parado na dela.
Woody: (OFF) Sei… E ela, que tal?
Ator: Bonita, mas não tem nada a ver.
Woody: (OFF) Loura?
Ator: Morena… cabelo comprido…
Woody: (OFF) Pernas bonitas?
Ator: São…
Woody: (OFF) Peitos bonitos?
Ator: São…
Woody: (OFF) Não deixa ela ir embora: eu tou indo praí.
Ator: Ela estuda Filosofia. Mas não sabe nada… cultura de botequim…
Woody: (OFF) Gozado, eu usei essa mesma fala em “Sonhos de um Sedutor”, pra descrever uma garota…
Ator: Aqui a platéia não riu…
Woody: (OFF) Põe ela na linha.
Ator: A garota? No telefone?
Woody: (OFF) É! É!
Ator: (PARA FRANCILENE) Pra você…
Franci: (SUSSURRA) Já vi ele no cinema. Ele é muito feio. Não tou a fim não…
Ator: Ele é o autor da peça!
Franci: É um pretensioso!
Ator: (AO TELEFONE) Ela não quer falar com você, não. Disse que a sua peça é pretensiosa.
Woody: (OFF) Ai meu saco! Paciência. Me liga depois e me conta como é que a peça terminou.
Ator: Está bem.
DESLIGA E DEPOIS SE DÁ CONTA DO QUE ACABOU DE ESCUTAR.
Ator: “… como é que terminou”?…
Franci: Posso trabalhar nessa peça?
Ator: Você…? Eu não estou entendendo. Você é uma atriz ou uma garota representando uma atriz?
Franci: Eu sempre quis ser atriz. Mamãe queria que eu fosse normalista. Papai queria que eu desse o golpe do baú.
Ator: E você acabou como?
Franci: Numa butique ali no Barrashopping, vendendo imitação legítima de tênis Reebok, perfume Calvin Klein, essas coisas…
ENTRA TRIQUINÍASES, UM GREGO CABOTINO, E SEU ESCRAVO BURSITE, TODO ESMOLAMBADO.
Triq.: Diabete, Hepatite! Sou eu, Triquiníases. (IMPROVISAM CUMPRIMENTOS) Venho de ter uma altercação com Socrates, na Acrópole. Provou–me ele que não existo eu. Quase faleço. (T) Corre à sorrelfa que lhe falta um final para a peça. Creio possuir o de que você carece.
Escritor: É mesmo?
Triq.: Quem é ela?
Escritor: Francilene Mesquita.
Triq.: Uma que veio de Vaz Lobo?
Franci: Em carne e osso…
Triq.: Você conhece o professor Sepúlveda, da Biblioteca Pública?
Franci: Sepúlveda Gasparroto?
Triq.: (FAZ QUE SIM) Trabalhamos juntos no estabelecimen-to da obra de Píndaro. Ah, que poeta! Ah, que metáforas audazes! que estilo majestático! Ah, que pujança narrativa!…
Franci: Ah, como esse mundo é pequeno, não é mesmo?…
Triq.: (SUSSURRA) Cê teve um caso com ele, não foi?
Franci: Bem que tentei, mas não deu…
Escritor: E o final da minha peça?
Triq.: (IGNORA O OUTRO) Sua beleza fulgura, aqui, muito mais estonteante do que lá, nos esforços da minha imaginação!
Franci: Acha mesmo, é?
Triq.: Aprazer–me–ia enlevá–la numa súbita cópula, agora e já!
Franci: Cê tá a fim de…
Triq.: (ARREBATANDO-A) … copular!…
Ator: Mais um…
Franci: Gente, eu tou com a bola cheia, hoje! (T) Por favor, solte-me, eu sou virgem. (T) A minha fala não é essa?
COM O TEXTO ABERTO NA MÃO, O PONTO SURGE NOS BASTIDORES; ELE USA SUÉTER E SUA MUITO.
Ponto: “Por favor, solte-me, eu sou virgem.” Isso mesmo. (SOME)
Escritor: E o final que você ia me arranjar?
Triq.: Hem? Ah, sim. (CHAMANDO) Rapazes, podem entrar!
ALGUNS GREGOS EMPURRAM UMA GERINGONCA ESQUISITA, SEMELHANTE A UM GUINDASTE.
Escritor: Que merda é essa?
Triq.: O final da sua peça.
Ator: Não saquei…
Triq.: Este objeto, fruto de baita labuta por longos seis meses na oficina de meu irmão, fa–lo–á… “sacar”.
Escritor: Como?
Triq.: Na cena derradeira, quando o escuro tudo recobre e Diabete, o humilde escravo, aproxima–se da perdição total…
Ator: Sim?
Triq.: Zeus, o Deus dos Deuses, Zeus descende, Zeus desce dramaticamente dos píncaros. E, brandindo os seus raios, Zeus traz a salvação para o grupo de mortais indefesos.
Franci: “Deus ex-machina”.
Triq.: Ouçam! “Deus ex-machina”. Excelente nome para este engenho! “Deus ex-machina”. Muito apropriado…
Franci: A Waldilene me ensinou. Ela estuda teatro na Uni-Rio.
Escritor: (PARA TRIQUINÍASES) Continuo sem entender.
Triq.: Espere, espere até ver a coisa funcionar. Ela fará Zeus voar pelos ares. (T) Vou faturar uma nota com essa invenção. (T) O Sófocles já encomendou uma – deu o sinal e tudo – e o Eurípides quer sete.
Escritor: Mas vai mudar todo o significado da peça!
Triq.: Espere, espere até ver a coisa funcionar. Bursite, aos arreios!
Bursite: Eu!?
Triq.: Aos a–rrei–os! (AO ESCRITOR) O senhor não crerá no que verá!
Bursite: Tou com medo!
Triq.: Ele não fala sério. (T) Anda, seu merda! A gente tá na boca de vender mais uma!
Bursite: Tenho pavor de altura!
Triq.: Bota a porra dos arreios! E depressa! Enfia… (T) recubra–se com esta roupagem de Zeus! Execute demonstração cabal!
ELE SAI COM BURSITE, QUE PROTESTA.
Bursite: Socorro!
UM TEMPO E O ESCRITOR RECUPERA A ATENÇÃO.
Escritor: Ele disse que… Deus aparece no fim e salva todo mundo…
Ator: Chocante! A platéia vai viajar!
Franci: Também acho. Vai parecer novela que fala do além.
Escritor: (MEIO “TEATRAL”) Mas, se Deus salva todo mundo, o homem deixa de ser responsável por seus atos!
Ator: E você ainda não sacou porque que não te convidam pras festas…
Franci: Mas, sem Deus, o universo não tem sentido! A vida não tem sentido! Nenhum de nós tem sentido! (LONGA PAUSA) Ai, que eu tou doida pra trepar!
Escritor: Agora eu é que não estou com vontade…
Franci: Ah, é? Então tá… (PARA A PLATÉIA) Hei, tem alguém aí na platéia a fim de me comer?
Ator: Pára com isso! (PARA A PLATÉIA) Ela está fazendo teatro, pessoal…
Escritor: Estou deprimido.
Ator: Ah… Que que cê tem?
Escritor: Não sei se acredito em Deus!
Franci: (PARA A PLATÉIA) Eu não tou fazendo teatro, não!
Ator: Se Deus não existe, quem criou o universo?
Escritor: E eu sei lá!
Ator: Como “eu sei lá”? E quando é que você vai saber?
Franci: Tem alguém aí a fim de me comer?
Homem: (LEVANTA–SE DA PLATÉIA) Eu aceito comer a moça, caso ninguém mais se habilite.
Franci: Ju–ura!
ATOR FAZ QUE DESISTE E SAI SORRATEIRAMENTE.
Homem: O que está ocorrendo com as pessoas de hoje em dia? Uma moça bonita, uma moça atraente como esta! Não há mais homens, não há homens na platéia! Cambada de intelectuais! Ecologistas! Brochas!
BÁRBARO HELIODORO SAI DOS BASTIDORES, VESTIDO COM ROUPAS DE HOJE.
Bárbaro: Senta! Sentado! Sentadinho!
Homem: Está bem, está bem…
Escritor: Quem é você?
Bárbaro: Bárbaro Heliodoro, crítico de teatro. Eu criei essa platéia.
Escritor: Como assim?
Bárbaro: Fui para o jornal e escrevi: “Centenas de pessoas assistiram à peça “DEUS!”, no teatro (NOME DO TEATRO)”… Olha elas aí!
Franci: (APONTANDO PARA A PLATÉIA) Quer dizer que… eles também não existem?… (BÁRBARO FAZ QUE NÃO) Eles não têm livre arbítrio?
Bárbaro: Pensam que tem…
MULHER, COM RAIVA, SE LEVANTA NA PLATÉIA.
Mulher: Eu existo!
Bárbaro: Me perdoe, madame, mas a senhora não existe…
Mulher: Eu existo!
Bárbaro: Não existe…
Mulher: Existo!
Bárbaro: Não existe…
Homem: (COM MUITA RAIVA) Eu vou te mostrar se existo ou não! Eu vou sair agora mesmo deste teatro, vou até a bilheteria e vou arrancar na marra o meu dinheiro de volta. Nunca assisti a peça tão cretina em toda a minha vida! Quando eu venho a um teatro, é para ver uma estória que me divirta, que me faça esquecer os problemas do dia a dia – uma peça com começo, meio e fim – e não essa merda! Boa noite! (SAI PISANDO FIRME)
Bárbaro: (PARA A PLATÉIA) Não é um personagem sensacional? Fi–lo furioso. Mais tarde, ele se sentirá culpado e meterá uma bala na cabeça. (OUVE–SE O SOM DE UM TIRO) Eu disse “mais tarde”!
Homem: (VOLTA COM UMA PISTOLA FUMEGANTE) Desculpe. Me suicidei antes da hora…
Bárbaro: Some daqui!
Homem: Tou lá em casa te esperando… (SAI)
Bárbaro: Ele pensa que me encabula… (PARA ALGUÉM NA PLATÉIA) Ah, você tá aí, é?…
BÁRBARO VAI ATÉ A PLATÉIA E SE DIRIGE A ESPECTADORES DE VERDADE.
Bárbaro: Como é que você se chama mesmo? Ah… sei… (IMPROVISA DE ACORDO COM A REAÇÃO DA PLATÉIA) O senhor é de onde? Ele não é uma graça? Grande personagem, a senhora. Preciso variar um pouco a roupa de vocês. Mês que vem, a senhora vai largar o seu marido pra viver com aquele cara ali. Eu sei, é dificil de acreditar, mas a vida tem dessas coisas… Ha! Você por aqui!? …
Escritor: Eu detesto ser personagem de ficção. Eu fico tão limitado…
Bárbaro: Só pelos limites do dramaturgo. Infelizmente vocês foram criados pelo Woody Allen. Se ainda fosse Shakespeare…
Escritor: Isso eu não tolero! Eu sou um homem livre e não preciso que Deus apareça voando para salvar a minha peça. Eu sou um bom escritor!
Franci: Você quer ganhar o Festival de Atenas, não quer?
Escritor: (SUBITAMENTE TEATRAL) Sim, quero! Quero tornar–me imortal – e, depois, morrer… Não quero morrer assim, sem quê nem porquê, e ser esquecido. Quero que a minha obra sobreviva muito depois de eu deixar este mundo. Quero que as futuras gerações saibam da minha existência! Por favor, não permitam que eu seja apenas um pingo no universo por toda e toda a eternidade! Minhas senhoras e meus senhores, ao receber este prêmio, eu gostaria de agradecer a papai e mamãe pelo estímulo que sempre…
Franci: Eu tou ca–gan–do pro que ele diz. Eu, pelo menos, existo.
Bárbaro: Nem tanto.
Franci: Ou melhor: eu penso, logo existo… Ou melhor ainda: eu SINTO. Eu tenho até orgasmo!
Bárbaro: Tem?
Franci: O tempo todo.
Bárbaro: No duro?
Franci: Principalmente.
Bárbaro: Não brinca!
Franci: Na maioria das vezes, pelo menos…
Bárbaro: É?
Franci: É! Com alguns homens…
Bárbaro: Difícil de acreditar…
Franci: Na metade das vezes, pelo menos…
Bárbaro: Essa não!
Franci: Bem… Nem sempre pelos canais competentes…
Bárbaro: Sei, sei…
Franci: É verdade que eu finjo, de vez em quando… A gente não deve magoar as pessoas, não é mesmo?
Bárbaro: Você já teve algum orgasmo de verdade?
Franci: De verdade, de verdade, nunca, eu não.
Bárbaro: É porque nenhum de nós aqui existe, de verdade.
Escritor: Mas se não existimos, também não morremos.
Bárbaro: De fato, de fato… A menos que o dramaturgo resolva nos matar.
Escritor: Mas por que ele ia fazer uma coisa dessa?
DOS BASTIDORES, ENTRA BLANCHE DUBOIS.
Blanche: Simplesmente, doçura, para satisfazer – como se chama, mesmo? – a sua sensibilidade estética.
TODOS SE VOLTAM PARA ELA.
Escritor: Quem é você?
Blanche: Eu sou Blanche, Blanche DuBois. Significa “a branca do bosque”. (ELA AVANÇA E NINGUÉM SE CURVA) Não, absolutamente, não se curvem, eu lhes imploro. Eu estou só de passagem…
Franci: Que que cê tá fazendo aqui?
Blanche: Procurando proteção. Sim – neste velho teatro… Ouvi – não era esta a minha intenção – mas ouvi o que estavam falando. (TOM) Cês tem aí uma coca incrementada com qualquer coisa?
ATOR RETORNA. NÃO TÍNHAMOS NOTADO QUE ELE SAÍRA.
Ator: Coca não tem. Serve um fuminho?
Escritor: Onde é que você foi?
Ator: Ao banheiro.
Escritor: No meio da peça?
Ator: Que peça, cara? (PARA BLANCHE) Explica pra ele como nós somos limitados.
Blanche: Temo que ele tenha razão, queridos. Desafortunada… mente. Foi por isso que mandei minha peça às favas e fugi. Fugi! Oh, não, o Tennessee Williams é um grande escritor, “Um Bonde Chamado Desejo” é uma peça genial. Mas ele me jogou no meio de um pesadelo. A última coisa que eu lembro é estar sendo levada por dois sujeitos, um deles com uma camisa de força. Quando me vi fora da casa do Kowalski, sai correndo, fugi. Agora preciso arranjar outra peça qualquer, de preferência uma que tenha Deus… algum lugar onde eu possa finalmente descansar… É por isso que vocês têm que me convidar para essa peça e deixar Zeus, o belo e jovem Zeus, triunfar com o seu raio!
Escritor: Cê também foi ao banheiro?
Triq.: (ENTRA) Prontos para a grande demonstração?
Blanche: Uma demonstração! Que beleza!
Triq.: (PARA OS BASTIDORES) Tudo pronto aí? Muito bem. (VOLTA–SE) É o final da peça. O escravo está liquidado… perdido e desesperado, fodido e mal pago. Aí ele vai e reza. Vai, reza aí, cara!
Ator: Oh, Zeus! Grande deus! Somos mortais. Perdidos e desesperados. Fodidos e mal pagos. Clamamos por vossa clemência, rogamos por nossa existência. (NADA ACONTECE) Grande Ze–us… O–O–O–O…. O Ze–uus…
Triq.: Anda logo, porra!
Ator: Zeus, grande deus…
SÚBITO, ESTOURA UM TROVÃO E UM FANTÁSTICO RELÂMPAGO. O EFEITO É ESPETACULAR: ZEUS DESCE À TERRA, DERRAMANDO RAIOS, MAJESTOSO.
Bursite: (NO PAPEL DE ZEUS) Eu sou Zeus, o deus dos deuses! O senhor dos milagres! Criador do universo! Trago salvação para todos!
Franci: Pu–uxa! Espera só até o Joaozinho Trinta ver isso!
Triq.: Então, Hepatite, que tal?
Escritor: Genial! Melhor do que eu esperava! É dramático, é do outro mundo! Já ganhei o festival! E é tão religioso! Olha só, eu fiquei todo arrepiado! Francilene… (AGARRA–A)
Franci: Segura a onda, cara…
A LUZ MUDA; MUDA O CENÁRIO.
Escritor: Preciso só reescrever algumas cenas.
Triq.: Posso te alugar a minha máquina de deus por quinhentinho a hora…
Escritor: (PARA BÁRBARO) Você pode fazer a apresentação da peça?
Bárbaro: Evidentemente.
TODOS SAEM. BÁRBARO FICA E CONTEMPLA A PLATÉIA. ENQUANTO FALA, UM CORO GREGO ENTRA E SENTA–SE NOS FUNDOS DO ANFITEATRO. TODOS DE BATA BRANCA, NATURALMENTE.
Bárbaro: Minhas senhoras, meus senhores, boa noite. Benvindos ao Festival de Teatro de Atenas. (SOM: APLAUSOS) Hoje, temos um belo espetáculo para vocês. Trata–se de uma nova peça de Hepatite de Rodes, chamada “O Escravo”. (SOM: APLAUSOS) Estrelando Diabete, no papel do Escravo; Bursite, no papel de Zeus; Blanche DuBois no papel de Blanche DuBois, Francilene Mesquita direto de Vaz Lobo, e grande elenco. (APLAUSOS) Este espetáculo tem o patrocínio exclusivo da Pizzaria Odisséia, logo ali, em frente ao Partenon. Não se faça de Medusa, com minhocas na cabeça: seja noite, seja dia, Pizzaria é Odisséia – ao som da Melopéia. Qualquer outra idéia é presente de grego. Homero era freguês da Pizzaria Odisséia – e olha que ele era cego! Então não esqueça, nem esmoreça: com Ulisses, sem Ulisses, Odisséia na cabeça.
ELE SAI. DIABETE FAZ O ESCRAVO FIDÍPIDES: ELE PERAMBULA PELA CENA COM OUTRO ESCRAVO GREGO, ENQUANTO O CORO DÁ O RECADO.
Coro: Acercai–vos, ó gregos, e ouvi a historia de Fidípides: homem sábio, homem hábil, embebido nas glórias da Grécia.
Diabete: Eu queria saber só uma coisa: que que a gente vai fazer com um cavalo tão grande?
Amigo: Mas eles nos querem dar o bicho de graça!
Diabete: E daí? O cavalo é todo de madeira, não serve pra nada. E é grande demais… Não serve nem pra bibelô. Vai por mim, Cratino. Se eu mandasse aqui, eu jamais confiaria num troiano. Você viu só? Eles não respeitam nem feriado!
Amigo: Você já soube o que aconteceu com Cíclope? Pegou catarata.
Voz Off: Fidípides! Mas onde se meteu esse escravo?
Diabete: Já estou indo, patrão.
Patrão: (ENTRA) Francamente, Fidípides! Tem uma porção de coisas para fazer! Tem uva para colher, tem a minha carruagem para consertar, tem água no poço para apanhar – e você aí de bobeira!
Diabete: Eu não estava de bobeira, patrão. Eu estava discutindo política.
Patrão: Escravo discutindo política! Ha! Ha! Essa foi boa!
Coro: Ha! Ha! Essa foi boa!
Diabete: Desculpe, patrão.
Patrão: Vá lá ajudar a nova escrava a arrumar a casa. Vou receber visitas logo mais. Depois, vá fazer as outras coisas.
Diabete: Que escrava?
Patrão: A Francilene Mesquita.
Franci: Chamou, meu senhor?
Patrão: Deixa de embromação e vá arrumar a casa! Anda!
Coro: Pobre Fidípides. Um mísero escravo. E, como todos os pobres e míseros escravos, ele só anseia por uma coisa na vida…
Diabete: Ser mais alto.
Coro: Ser livre!
Diabete: Que que é isso!? Não! Pára com isso! Eu não quero ser livre, não!
Coro: Na–ão!
Diabete: Deus me livre de ser livre!… Conheço muito bem a vida de escravo. Cuidam de mim, não tenho que tomar decisão. Nasci escravo e vou morrer escravo. Numa boa e sem grilo.
Coro: (VAIA) Uuuhhh… Uuuhhh…
Diabete: Vai tomar no cuuu… no cuuu…!
ELE BEIJA FRANCILENE, MAS ELA SE DESVENCILHA.
Franci: Pára com isso!
Diabete: Por quê? Francilene! Ó o meu coração, põe só a mão: ele rebenta de paixão.
Franci: Não vai dar certo.
Diabete: Por quê?
Franci: Porque você gosta de ser escravo e eu detesto. Quero a minha liberdade. Quero viajar, correr mundo, escrever livro, morar em Paris – quem sabe até ser editora de revista feminina.
Diabete: Pra que esse rebuceteio todo por causa de liberdade? É perigoso, isso… Cada um tem que conhecer o seu lugar. Você não está vendo, Francilene? É governo mudando todo dia, é político matando político, é cidade sendo saqueada, gente sendo torturada. Quando tem guerra, quem é que você pensa que vai pra luta? As-pe-sso-as-que-são-li–vres… A gente, não. A gente está fora dessa. Porque, seja o governo que for, vai ter sempre alguém precisando da gente pra lavar latrina… (AGARRA–A)
Franci: Pára com isso! Enquanto eu for escrava, nunca vou poder gostar de sexo.
Diabete: Não dá nem pra fingir que gosta?
Franci: Não.
Coro: E então, certo dia, os Fados vêm e intervêm na história.
ENTRAM OS FADOS: UM CASAL VESTIDO COMO TURISTAS AMERICANOS TÍPICOS, DE BERMUDAS E CAMISAS HAVAIANAS. BOB TRAZ UMA MÁQUINA FOTOGRÁFICA AO PESCOÇO.
Bob: Olá rapazes, olá pequenas! Nós somos os Fados. Eu sou Bob Fado e esta é minha esposa Wendy Fado. Necessitamos de alguém urgente para levar mensagem ao rei.
Diabete: Ao rei?
Bob: Estaria prestando um grande serviço para a humanidade.
Diabete: E–eu!!!
Wendy: Sim, você. Mas é uma perigosa missão. E, embora seja somente um escravo, você tem o direito de dizer não.
Diabete: Então, não! Tô fora!
Bob: Mas também te dará oportunidade ver o palácio por dentro, em toda sua esplendor e glória.
Wendy: E o prêmio é a sua liberdade em pessoa.
Diabete: Minha liberdade!? Olha, não leva a mal, eu adoraria, eu teria o maior prazer em ajudar os senhores, em ajudar a causa da liberdade, mas o caso é que eu tou com uma galinha lá dentro, no forno, e os senhores não vão me levar a mal…
Franci: Eu levo a mensagem!
Bob: É demais perigoso para mulher.
Diabete: Ela corre a pampa!
Franci: Fidípides, como pode recusar?
Diabete: Cagaço tem as suas vantagens.
Wendy: Nós imploramos você – por favor…
Bob: O destino da raça humana está em jogo!
Wendy: Nós aumentamos a recompensa: liberdade para você e para uma pessoa de sua escolha qualquer.
Bob: E mais um faqueiro de prata!
Franci: Fidípides, é a nossa oportunidade de ouro!
Coro: Aceita, ô babaca!
Diabete: Uma missão chamada “Perigo” e a liberdade no fim? Ai, que eu me borro todo!
Wendy: (PASSA–LHE UM ENVELOPE) Leve esta mensagem ao rei.
Diabete: E por que que vocês não levam?
Bob: Partimos para New York em poucas horas daqui.
Franci: Fidípides, você diz que me ama…
Diabete: E amo, mesmo!
Coro: Vai nessa, o Fidípides. Essa peça não dura a noite toda!
Diabete: Cês tão vendo? Já tão me obrigando a tomar decisão. (O TELEFONE TOCA E ELE ATENDE) Alô!
Woody: (OFF) Você quer fazer a fineza de levar essa porra dessa mensagem pro rei! Todo mundo aqui tem mais o que fazer!
Diabete: (DESLIGA) Está bem, eu levo… Mas só porque o Woody Allen mandou.
Coro: “Não formules desejos… Não é licito aos mortais evitar as desgraças que o destino lhes reserva!”
Diabete: Seus babaqueras! Vocês tão na peça errada! Isso aqui não é a “Antígona”!
Franci: Boa sorte, Fidípides!
Bob: E ele vai precisar, isso é com certeza…
Diabete: Como e que é?
Wendy: Não é nada… O Bob estava só gracejando…
Franci: E então, finalmente, quando formos livres, aí a gente vai e trepa. Quem sabe um dia eu ainda gozo… Ah… (PAUSA) Vai logo, anda!
Diabete: Já vou!
Coro: E assim Fidípides pôs–se a caminho, levando importante mensagem para o Rei Édipo.
Diabete: Édipo?
Coro: É.
Diabete: Não é aquele cara que come a própria mãe?
EFEITOS: VENTO E RELÂMPAGOS ENQUANTO ESCRAVO CAMINHA COM ESFORÇO.
Coro: … levando importante mensagem para o Rei Édipo, galgando profundas montanhas e atravessando altos vales.
Diabete: “Altas montanhas e profundos vales”, seus babaqueras! Onde é que foram arrumar esse Coro?
Corifeu: Chega de papo! Vai à luta!
Diabete: (ORGULHOSO) Vocês estão vendo como são as coisas? Até há pouco tempo, eu era um escravo que nunca tinha saído da casa do patrão. E – vejam só vocês e vejam bem e meditem direito – agora eu estou levando uma mensagem pro rei. Pensam que é pouca merda? É pro rei! Logo, eu serei um homem livre! Logo, logo, todas as possibilidades humanas se abrirão à minha frente… e… (T) lá vem essa vontade de cagar que não me larga… (VENTO)
Coro: Os dias fazem–se semanas, as semanas fazem–se meses. E Fidípides continua, pé ante pé, a seguir o seu caminho…
Diabete: Não dá pra desligar esses efeitos especiais, não?
Coro: Pobre Fidípides, um mísero mortal.
Diabete: Eu estou cansado, desarranjado e de saco cheio. Não dá pra continuar. Olha só: a minha mão está tremendo.
O CORO ENTOA “MORTE E VIDA SEVERINA”: “Esta cova em que estás…
Diabete: Morrer deve ser como não haver nascido e a morte talvez seja melhor do que a vida de dor e mágoas, pois não sofre quem não tem a sensação dos sofrimentos. (TOM) “Quero chorar, não tenho lágrimas que me rolem nas faces, pra me socorrer. Se eu chorasse, talvez desabafasse o que sinto no peito e não posso dizer. Só porque não sei chorar eu vivo triste a sofrer”… (VÊ HEPATITE OLHANDO PARA ELE) Desculpe… foi mal, eu me empolguei.
HEPATITE AGARRA–O PELO PESCOÇO E ARRASTA-O.
Hepatite: “Qual-é-a-sua”, meu jovem?
Diabete: O palácio! Cadê o palácio? Tou rodando há dias! Pergunta só pra eles. Mas que peça é essa? E esse palácio, onde é que fica? Na casa do/…
Hepatite: Se parar de esculhambar a minha peça, logo logo você chega ao palácio! Guarda! (T) Vamos lá, Diabete: peito pra fora, barriga pra dentro.
ENTRA UM GUARDA MUITO FORTE.
Guarda: Quem é você?
Diabete: Eu sou o Fidípides.
Guarda: O que o trouxe a este Palácio?
Diabete: Que palácio? Já cheguei!?
Guarda: Aqui é o palácio real. A mais bela estrutura arquitetônica de toda a Grécia: é tudo mármore, acrílico e fórmica…
Diabete: Podes crer… (T) Trago mensagem para o rei.
Guarda: Ah, sim. Ele está à sua espera.
Diabete: E a minha garganta está seca. E a minha barriga está vazia.
Guarda: Vou interceder por você junto ao rei.
Diabete: Pede um cachorro quente.
Guarda: Com mostarda ou prefere que eu te chupe?
Diabete: (RÁPIDO) Mostarda!
Guarda: (TIRA UM BLOQUINHO E ANOTA) Cachorro na mostarda…
Diabete: O que mais os senhores têm pra oferecer?
Guarda: Deixa eu ver… Que tal uma cenoura bem roliça?
DIABETE FAZ QUE NÃO.
Guarda: Um pepino redondinho?
Diabete: Não…
Guarda: Um jiló de amargar?
Diabete: Não, obrigado…
Guarda: Um nabo roxinho e bem picante?
Diabete: Não… agradecido…
Guarda: Salada de batata?…
Diabete: (RÁPIDO) Salada de batata!
Guarda: Sa-la-da-de-ba-ta-ta. Para beber?
Diabete: Uma coca média, sem gelo. E uma porção de “coquille Saint-Jacques”.
Guarda: É pra já!
Diabete: E traz o rei, é claro.
Guarda: (ENQUANTO SAI) Salta um cachorro batata, uma coca Saint-Jacques e o rei pra acompanhar.
OS FADOS ENTRAM, BATENDO FOTOS.
Bob: O que pensa do palácio?
Diabete: A-adorei!
Bob: (ENTREGANDO A CÂMARA PARA A MULHER) Tira uma de nós dois juntos.
BOB E DIABETE POSAM, WENDY BATE.
Diabete: Pensei que vocês fossem pra “New York”.
Wendy: Pois é, nós também pensamos. Mas você sabe como são os Fados…
Bob: Imprevisíveis… Mas a vida é assim mesmo, se assim lhe parece…
DIABETE SE INCLINA PARA CHEIRAR A FLOR NA LAPELA DE BOB.
Diabete: Linda flor!
Bob: Parece flor, é?
DIABETE LEVA UM ESGUICHO NA CARA E OS FADOS RIEM.
Bob: Ha! Ha!… Desculpe, mas não pude resistir.
ESTENDE–LHE A MÃO. DIABETE APERTA. LEVA UM CHOQUE DAQUELES ANÉIS ELÉTRICOS.
Diabete: Aiiii!!!
OS FADOS SAEM, RINDO.
Wendy: Ah, Bob! Você não toma jeito!
Diabete: (PARA O CORO) Vocês sabiam que ele ia fazer isso!
Coro: Ele é bobo a pampa.
Diabete: Por que que vocês não me avisaram?
Coro: A gente não está aqui para se meter.
Diabete: Não estão aqui pra se meter!? Vocês são iguais àquelas 16 pessoas que ficaram olhando uma mulher morrer esfaqueada no centro da cidade, em plena luz do meio-dia – e não fizeram nada!
Coro: A gente leu isso no jornal. E não foram 16 pessoas; foram só 15.
Diabete: E daí!? Bastava que uma pessoa tivesse feito alguma coisa e ela podia estar aqui, conosco, agora!
Coro: Já!
E ENTRA MULHER COM UMA FACA CRAVADA NO PEITO.
Mulher: Aqui estou eu.
Diabete: Só pra queimar a minha língua…
Mulher: Ia fazer vinte e cinco anos que eu trabalhava ali no Ministério. Nenhuma anotação no meu cartão de ponto, nenhuma. E estava eu lendo o meu santo jornal de todo dia, ali na fila de todo dia do ônibus para Todos os Santos, quando, de repente, seis inclementes brutamontes endoidivados pela ação do tóchico nos seus tecidos cerebrais me agarram, me atiram no solo, me humilham e me vilestupreiam, os tarados!… E o meu santo jornal saiu–se a voar pelo ar…
Corifeu: Corta rápido pros homens!
Coro: Eram três e não seis…
Mulher: Três, seis, tanto faz. Todos portavam facas em suas mãos. Era um assalto a mão armada; queriam o meu santo dinheiro.
Diabete: A senhora deveria tê–lo dado a eles.
Mulher: “Tê–lo dado” que eu dei… Mas, debalde, continuaram a me esfaquear, sem dó nem piedade.
Coro: Cidade grande, hoje em dia, é fogo!
Diabete: Hoje em dia? Que nada! Há pouco tempo atrás, eu estava andando com o Sócrates lá em Atenas e dois pivetes desses de Esparta saíram detrás da Acrópo-le e…
Mulher: E?
Diabete: … exigiram todo o nosso dinheiro!
Mulher: E aí?
Diabete: Aí o Sócrates provou pra eles, usando só a lógica, que o mal era mera ignorância da verdade… uma quimera…
Mulher: E aí?
Diabete: Aí eles foram e meteram–lhe a porrada.
Mulher: Por falar nisso, eu só espero que esta sua mensagem traga boas notícias para o rei.
Diabete: Que seja pro bem dele.
Mulher: Não, pro seu bem.
Diabete: Pois é… (T) Como é que é!?
Coro: (DEBOCHANDO) Ha! Ha! Ha! – Ha! Ha! Ha! – Ha! Ha!
A ILUMINAÇÃO TORNA–SE SINISTRA.
Diabete: Ué, a luz mudou! Que que isso quer dizer? Que que acontece se as notícias forem ruins?
Mulher: Antigamente, mensageiro que trouxesse notícia boa recebia um prêmio do rei.
Diabete: Prêmio?
Coro: Um Carne do Baú da Felicidade.
Mulher: Mas, agora, se as notícias forem ruins…
Diabete: Nem me conta!
Mulher: O rei manda pendurar o Mensageiro pelos testículos.
Diabete: Agora é agora ou é antigamente?
Mulher: O senhor não lê os jornais?
Diabete: Ah, Hepatite! Só agora entendo o sentido e o peso do que você me dizia!
Mulher: Mas quando o rei está de bom humor, aí o mensageiro é só degolado e mais nada.
Diabete: Bom humor, degolado. Mau humor…
Coro: Mas se as notícias forem mais que ruins, mas se as notícias forem péssimas…
Mulher: Aí o Mensageiro é assado vivo mesmo.
Coro: Em fogo brando, na pimenta do reino, com batata na boca. Batata esquenta a pampa.
Diabete: Isso é tudo por causa da Francilene Mesquita! Ah se eu pego aquela metodista de subúrbio!
Mulher: Ela não lhe será de valia alguma: está a quilômetros daqui.
Diabete: Francilene! Franci, cadê vocêzinha?
Franci: (NA PLATÉIA) Que que cê quer?
Diabete: Que que você está fazendo aí?
Franci: A peça me deu no saco.
Diabete: Como “deu no saco”? Já, já pra cá. Eu tou aqui fodido e mal pago – e tudo por tua causa!
Franci: (LEVANTANDO–SE) Não leva a mal, Fidípides. Não tenho obrigação de saber História Antiga. O meu lance é Filosofia, você sabe.
Diabete: O Francilene, se as notícias aqui forem ruins, eu tou frito – ou tou assado…
Franci: Tou sabendo.
Diabete: E cadê a tal da liberdade?
Franci: Às vezes a gente se dá bem, às vezes a gente se dá mal…
Diabete: “Se dá bem, se dá mal”! Foi isso que você aprendeu lá na Gama Filho?
Franci: Aí, ô cara, larga do meu pé!
Diabete: Largar o quê! Se as notícias forem ruins, eu tou morto… (P) Hei! Pera aí! A mensagem! Tou com ela aqui!
DIABETE REVIRA OS BOLSOS, TIRA A MENSAGEM DO ENVELOPE, LÊ.
Diabete: E para O Melhor Ator Coadjuvante, o vencedor é… (USA O NOME DO ATOR QUE INTERPRETA HEPATITE)
Hepatite: (ENTRA) Minhas senhoras, meus senhores, ao receber este prêmio, eu gostaria de agradecer ao papai e a mamãe pelo estímulo que sempre me…
Ator: Cai, cai fora! Eu peguei a mensagem errada!
ELE TIRA DO BOLSO A VERDADEIRA MENSAGEM.
Mulher: Rápido, avia–te, que o rei se aproxima!
Diabete: Vê se ele está trazendo o meu cachorro quente.
Franci: Anda, Fidípides!
Diabete: (LÊ) Gente!… Só tem só uma palavra!
Franci: Sim?
Diabete: Como é que você sabe?
Franci: Sabe o quê?
Diabete: Que a mensagem só diz… que aqui só diz “sim”?
Coro: “Sim”!?… Ah, “sim”… Pois que seja assim… que seja sim, então… Pois não… E “sim”, assim, será bom ou ruim?…
Diabete: Não sei, não… “Sim” é afirmativo? É, pois, “sim”, sim? Ou é “pois sim”, portanto, “não”?…
Franci: E se a pergunta tiver sido: “O Mensageiro morre ou não morre?”…
Diabete: “Sim”… (T) Meu cacete!
Coro: Larga o “cacete” e se apruma, cacete!… (ANUNCIA) Sua Majestade, o rei!
FANFARRA E POMPA PARA A ENTRADA DO REI.
Diabete: Ô, “seu” rei, foi bom o senhor aparecer por aqui agora. Queria saber, assim, do senhor, com toda a sua sinceridade… Afinal, sim é sim ou não?…
Rei: Quem pediu esse cachorro quente?
Diabete: Foi este seu fiel servidor, sim senhor, pois não… (T) Mas isso aí é cenoura! Eu pedi salada de batata!
Rei: Batata tá acabando. A gente está guardando pros assados.
Diabete: Então pode levar de volta. Vou comer aqui na cantina do teatro, mesmo. Tchauzinho.
Coro: A mensagem!
DIABETE FAZ GESTOS PARA O CORO SE CALAR, PSIUS, ETC.
Coro: A mensagem! Ele é o Mensageiro e Mensageiro traz mensagem… A mensagem! A mensagem! Ele é o Mensageiro e Mensageiro/…
Rei: (COMO ATOR CABOTINO) Escravo meu, humilde escravo meu! Traz–me uma mensagem a mim?
Diabete: Rei meu, humilde rei meu! Eu, seu humilde escravo, escravo de vossa majestosa realeza, realmente, como de fato estava escrito nessas mal traçadas…
Rei: Pois não?
Diabete: Será que não dava pro senhor me adiantar aí qual que era a pergunta que a mensagem respondia?
Rei: Primeiro a mensagem.
Diabete: Não, absolutamente, é muita generosidade de Vossa Majestade, mas é que primeiro vem a pergunta, depois é que vem a resposta… Portanto, queira ter a bondade, primeiro Vossa Majestade…
Rei: Primeiro você!
Diabete: Não, você!
Rei: Não, você!
Coro: Faz o Fidípides falar primeiro.
Rei: Ele?
Coro: Claro, porra!
Rei: Mas como?
Coro: Você é o rei, ô babaca!
Rei: Ah! A mensagem! Guarda!
O GUARDA PUXA DA ESPADA.
Diabete: A mensagem é: ssss – nnnnnnn – (ESTUDA AS REAÇÕES DO REI ANTES DE LÊ–LA) nnnnãosss – sssseeee – iiii sseee – mmmnnnnaaaonnnn – hemmm-quemmm-ssssaaabeee – heeemmmmmmm???…
UMA PAUSA.
Coro: Majestade, ele está de sacanagem.
Rei: A mensagem, escravo!
GUARDA ENCOSTA A ESPADA NO PESCOÇO DE DIABETE.
Diabete: É só uma palavrinha só, Majestade!
Rei: Uma só palavra!
Diabete: Esquisito, né não? Eu também achei, mas as coisas são o que são, né não?… Ou não?
Rei: Uma única palavra para responder à pergunta das perguntas!
Diabete: Agora diz aí… qual é a pergunta?…
Rei: Ora, a pergunta é… é…
Diabete: Diz!
Rei: “Deus existe?”
Diabete: Ah… A pergunta foi essa aí, é?
Rei: Ué, é! Esta é a única pergunta!
Diabete: (OLHA PARA FRANCILENE, ALIVIADO) Assim sendo, tomado de orgulho, júbilo e emoção, comunico–lhe a resposta. E a resposta é….: SIM!
Rei: Sim?
Diabete: Sim.
Coro: Sim.
Franci: Sim.
Diabete: Tá na tua vez.
Mulher: (CICIANDO) Sssssiimm.
DIABETE OLHA PARA ELA DE ESGUELHA.
Franci: Não é o m’or barato?
Diabete: Sim, sim, eu – iluminado por estas luzes divinas que me iluminam – percebo que Vossa Majestade está pensando numa recompensa à altura, para este seu fiel e humilde escravo. Mas nossa liberdade é mais do que suficiente. Por outro lado, em contra-partida, como percebo – iluminado por estas, etc – que Vossa Magnífica Majestade insiste em demonstrar, exibir, patentear e proclamar a Vossa gratidão, estamos longe de recusar o Carnê do Baú e eu/…
COM UM GESTO DE MÃO, ELE IMPÕE SILÊNCIO.
Rei: (COM VOZ GRAVE) Se Deus existe, o homem não é responsável por seus atos – e eu, com toda certeza, serei julgado pelos meus pecados.
Diabete: Como é que é?
Rei: Julgado por meus pecados, por meus crimes, meus hediondos crimes! Eu estou condenado! (T) Tu! A tua mensagem condena–me à eternidade!
Diabete: E eu lá disse “sim”? Mas quem disse que eu disse “sim”? Eu não disse “sim”, não. Eu disse “não”, não lembra, não?
GUARDA AGARRA O ENVELOPE, LUTA UM POUCO COM DIABETES E LÊ A MENSAGEM.
Guarda: Majestade, a mensagem diz “sim”.
Rei: Argh! Esta é a pior notícia que eu podia ter recebido na vida!
Diabete: (CAINDO DE JOELHOS) Majestade, a culpa não é minha! Eu sou apenas um humilde Mensageiro. Muita vez, em caminho, hesitante, parei, a fim de refletir, e me voltei, disposto a desistir. Meu espírito a mim mesmo dizia: “Por que vais, desgraçado, aonde serás castigado assim que chegares?” – Ou então: “Infeliz! Tu ficas aí? E se Creonte souber disso por um outro, como serás punido? Assim pensando, retardei–me num percurso que me pareceu longo… Resolvi, por último, vir de qualquer forma. E, posto que pouco tivesse a dizer, disse, mas não fi–lo, nem qui-lo. Assim sendo, sendo “sim”, anima–me a esperança de que nada me acontecerá que não seja a vontade divina!
Rei: Você vai ser pendurado pelos culhões…
Franci: Mas pelos cul… Não, ele é só um Mensageiro!
Diabete: Obrigad/…
Franci: Assa ele na pimenta!
Rei: O bofe é seco demais.
Diabete: Ma–Majestade – sejamos sensatos – quando o Serviço de Meteorologia prevê tempo ruim, a Vossa Majestade manda matar o meteorologista?
Rei: Mando!
Diabete: Meu cacete, esse cara é doidão!
Rei: Guardas, prendam-no!
GUARDA AGARRA DIABETE.
Diabete: Espera, Majestade. Uma palavrinha só…
Rei: Pois não?
Diabete: Isso aqui é só uma pecinha de teatro… Diversão, passa tempo…
Rei: (INDICA A PLATÉIA) Isso é o que eles pensam… Guarda, dê–me a tua espada! (CANASTRÃO) Quero dar–me a mim o prazer de exterminar este canastrão! O mundo é pequeno para nós dois…
Franci: Oh, não; não, oh! Por que que eu fui me meter nessa?
Coro: Não se torture, não se amargure. Você ainda é moça: logo, logo arranja outro.
Franci: (PENSA) É verdade…
Rei: (LEVANTA A ESPADA) Morra, patife!
Diabete: Oh, Zeus – Deus dos Deuses – salve–me com o seu raio salvador!
TODOS OLHAM PARA CIMA, MAS NADA ACONTECE: UMA SITUAÇÃO DELICADA.
Diabete: Zeus, oh, Zeus!…
Rei: E agora, morra, patife!
Diabete: Oh, Zeus… Ô (NOME DO CONTRA–REGRA), cadê a porra do Zeus!?
Hepatite: (ENTRA E OLHA PARA CIMA) Pelo amor do Cristo, o Zeus, anda logo com essa máquina. Desce, vai!
Triq.: (ENTRA PELO OUTRO LADO) A roldana, ela emperrou…
Diabete: (DANDO A DEIXA) Zeus…
Coro: O fim é igual para todos…
Diabete: Oh, Zeus…
Coro: Babáu!…
Diabete: Zeus…
Coro: Babáu!…
Diabete: Ze-us…
Mulher: Eu é que não vou permanecer imóvel, aqui, e vê–lo ser esfaqueado… como eu o fui, no meio da via pública… debalde… sem dó nem piedade!
MULHER FAZ QUE VAI FUGIR.
Rei: Agarra ela.
O GUARDA AGARRA A MULHER E O REI A ATRAVESSA COM A ESPADA.
Mulher: É a segunda vez na semana! Brutamonte endoidivado!
Diabete: Oh, grande Zeus! Meu Deus, soco–oorro!
EFEITOS. RELÂMPAGOS. ZEUS É DESCIDO DESAJEITADAMENTE. ELE ESTREBUCHA: O ARAME O ESTRANGULOU. TODOS OLHAM ESPANTADOS.
Triq.: Alguma coisa saiu errado; problema na “deus ex machina”…
Coro: Até que enfim vemos Deus! Até que enfim temos Deus! Deus, Deus, é Deus em pessoa! Aleluia! Aleluia! Salve, Deus! Salve, Deus!
MAS DEUS JÁ ESTÁ MORTINHO DA SILVA.
Diabete: (PARA O CORO) Não tem salvação… (T) Deus… De–us… U–uu… Ô, Deus… Cê tá legal? Tem um médico aí na platéia?
Medico: (NA PLATÉIA) Eu sou médico.
Triq.: A máquina pifou…
Hepatite: Cala a boca! Ce tá atrapalhando a peça!
Diabete: Deus morreu!
Medico: Tinha seguro Bradesco?
Hepatite: Improvisa…
Diabete: Improvisa o quê?
Hepatite: Improvisa o final!
Triq.: Foi alguém que puxou a alavanca errada!
Franci: Fratura de pescoço.
Rei: (TENTANDO CONTINUAR A PEÇA) Ah, Mensageiro, estás vendo o que fizeste? Canalha! Biltre!
O REI BRANDE A ESPADA. DIABETE A AGARRA. ELES LUTAM.
Diabete: Me dá isso!
Rei: Que que cê tá fazendo?
Diabete: Me matar, né? Ô Francilene, vem me ajudar, aqui!
Rei: Fidípides, que que você está fazendo?
Guarda: Ô Hepatite, corre, que ele está acabando com o final da tua peça!
Coro: Ficou maluco, o Fidípides? É o Rei que tem que matar você!
Diabete: E quem foi que disse isso? Onde é que isso está escrito? Negativo: prefiro matar o Rei!
ELE ENFIA A ESPADA NO REI, MAS A ESPADA É DE MENTIRA.
Rei: Pára, pára com isso! Esse cara é louco! Pára, que isso faz cócegas! Ha, ha, ha!
Medico: (TOMANDO O PULSO DE DEUS) Ele está clinicamente morto. É melhor removê–lo daqui.
Coro: (ENTOA, MELODIA DE “TOURADAS DE MADRID”) Nóóóós… não temos nada a ver com isss… – pararatimbum, bum, bum; pararatimbum, bum, bum…
O CORO SAI, CARREGANDO O CORPO DE DEUS E ENTOANDO, COM A MELODIA DA MÚSICA TOURADAS DE MADRI:
Coro: Nóóóósss não temos nada a ver com na-ada… nem com Peri-i-i, nem com Ceci… pararatimbum, bum, bum… pararatimbum, bum, bum…
Hepatite: Minha peça!… a minha peça!… (PARA O CORO) Onde é que vocês pensam que vão?
Rei: Eles, eu não sei. Mas eu vou telefonar pro meu advogado… (SAI)
Diabete: Tan-ta-rann!… E o escravo, de plena posse do seu livre arbítrio, decide tornar–se herói!
Franci: Livre!… Enfim!…
DIABETE ATACA O GUARDA, MAS A ESPADA AINDA É A DE MENTIRA.
Guarda: Que que cê tá fazendo? Cara maluco…
Franci: Fidípides!…
Diabete: … Francilene!…
Franci: … Eu te amo!…
Diabete: … Mais do que ontem!…
Franci: … E menos do que amanhã!…
ELES SE BEIJAM CINEMATOGRAFICAMENTE.
Diabete: E agora, Francilene, a gente vai e trepa!…
Franci: Agora não… não estou a fim.
Hepatite: Esta peça é séria! Tem até mensagem! Se a gente fracassar, a platéia nunca vai entender a mensagem!
Mulher: Teatro é diversão, ô mentecapto! Quem gosta de mensagem é carteiro.
Carteiro: (ENTRA DE BICICLETA) Carteiro! Carteiro! Mensagem para a platéia! É a mensagem do autor!
Diabete: Quem é esse cara?
O CARTEIRO DESCE DA BICICLETA E LÊ O TELEGRAMA.
Carteiro: “Deus morreu. PT. Cada um por si. PT.” Assinado: Funerária Valparaiso.
Diabete: Pronto, tudo é possível. Agora o herói sou eu e está acabado!
Franci: Virgem, que eu acho que vou gozar! Aaaa-go–o-ora!
Carteiro: (CONTINUA LENDO) “Destarte, Francilene Mesquita está autorizada a ter o seu respectivo orgasmo. PT. Mas só se ela assim livremente arbitrar. PT”.
O CARTEIRO AGARRA A FRANCILENE.
Franci: Pára! Pára!… PT! PT!
O CARTEIRO SOLTA-A. ENTRA UM GALÃ.
Cristi: Simone! Simone! Sou eu, o Cristiano, da novela “Selva de Pedra”.
Hepatite: Era uma vez a realidade…
GRANDE OTELO CORRE ATRÁS DE BLANCHE DUBOIS. NA PLATÉIA, UM HOMEM SE LEVANTA.
Homem: Já que agora tudo pode, eu vou é mandar meu emprego pras picas! Estou de saco cheio de tirar cuticula de pé de madame. Fechei, fechei a minha bancada!
ELE AGARRA UMA MULHER NA PLATÉIA. RASGA–LHE A BLUSA, E CORRE ATRÁS DELA PELAS COXIAS – PARA ISSO, PODE–SE USAR A LANTERNINHA.
Hepatite: A minha peça…
OS PERSONAGENS ABANDONARAM O PALCO, DEIXANDO APENAS OS DOIS PERSONAGENS DO INÍCIO, O ESCRITOR E O ATOR, HEPATITE E DIABETE. Hepatite:A minha peça…
Diabete: Até que tava boa. Só precisava de um final.
Hepatite: Mas o que que ela queria dizer?
Diabete: Nada… absolutamente nada…
Hepatite: O quê?
Diabete: Besteira. Vazia.
Hepatite: É o fim.
Diabete: Claro. A gente não está discutindo o fim?
Hepatite: Estamos sempre discutindo o fim.
Diabete: É porque não dá pé.
Hepatite: Admito que esteja pouco satisfatório.
Diabete: Pouco satisfatório? Um cocô!
A LUZ COMEÇA A CAIR EM RESISTÊNCIA.
Diabete: O negócio é começar a peça pelo fim. Imagina um final bem forte e depois escreve de trás pra frente.
Hepatite: Já tentei isso… Acabei com uma peça sem começo.
Diabete: É um absurdo!
Hepatite: Absurdo? O que que é absurdo?
BLACKOUT
UMA BREVE INTRODUÇÃO
Flávio de Campos
Wallace Stevens (1879‑1955) se insere nesta tradição de escritores que, eminentemente poetas, incursionaram palco adentro, talvez à procura da concretude que as idéias e imagens ganhavam ali.
Entre nós, Fernando Pessoa executou movimento semelhante com seus belíssimos “Poemas Dramáticos” ‑ “Na Flor esta do Alheamento”, “O Marinheiro” e “Primeiro Fausto”. Na Irlanda, W. B. Yeats (1865‑1939) foi outro que usou o palco ‑ e de maneira bastante mais freqüente ‑ para bordar este mesmo caleidoscópio no qual as coisas vistas apresentam frestas através das quais o olhar do espectador é convidado a penetrar; no qual o aparente não representa a idéia, mas a evoca. Nas obras destes poetas subjaz um fio segundo o qual as “idéias de ordem”, se vistas e evocadas (ou invocadas?) com a clareza com que se manifestam, carregam uma homologia com as forças que ordenam as coisas da vida, i.e., lhes são correspondentes. Esta lista de autores poderia ter seguimento com James Joyce, Mallarmé, e. e. cummings, etc.
Fica evidente que estas peças ‑ que se desenham fundamental-mente como murais de idéias, como a que apresentamos a seguir ‑ não gozam dos melhores favores nesses nossos dias. Hoje, sob o jugo das emoções e produtos humanos, os esforços teatrais (exceção feita aos “absurdistas” e alguns metafísicos) tendem a desconsiderar, a entender como não teatral aquelas suas obras que não privilegiam as regras de conflito e enredo. Se de fato não são drama por ignorarem os trilhos da ação dramática, são teatro, já que apresentam fatias de vida num palco. E, no caso desta “Três viajantes contemplam um amanhecer” de Wallace Stevens, excelente teatro.
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TRÊS VIAJANTES CONTEMPLAM UM AMANHECER
de
Wallace Stevens
Tradução
de
Flávio de Campos
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Personagens: três chineses, dois pretos e uma moça.
Cenário: uma floresta de árvores densas no alto de uma montanha; leste da Pensilvânia, USA. À direita, uma estrada obscurecida pelas folhagens.
São mais ou menos quatro horas de uma manhã de agosto; a época é a presente. Quando a cortina se abre, o palco está escuro. O galho de uma árvore range. Um Preto passa pela estrada, carregando uma lanterna.
O som se repete. O Preto atravessa o mato, levanta a laterna e olha para as árvores. Percebendo um objeto escuro entre os galhos, ele recua, atravessa o palco e sai pelo bosque à esquerda.
Um segundo Preto entra pelo mato, à direita. Ele carrega duas cestas grandes, que coloca no chão, entre os arbustos.
Entram três chineses. O Primeiro Chinês é de meia idade, baixo, gordo e excêntrico. O Segundo, de estatura média, magro, os cabelos tornando‑se grisalhos; um homem sagaz e simpático. O Terceiro é jovem, preocupado e desligado. Eles vestem roupas ocidentais. Um deles carrega uma lanterna. Eles param na estrada.
Segundo Chinês: Para encontrar poesia,
É só procurar
com uma lanterna. (Ele ri.)
Terceiro Chinês: Eu achava sem,
Se, numa noite de agosto,
Eu visse só
O orvalho nos celeiros.
O Segundo Preto emite um som para chamar‑lhes a atenção. Os três chineses atravessam o mato e entram.
Segundo Chinês: (olhando para as cestas)
Orvalho é água de ver,
Não é água de beber:
A gente esqueceu a água de beber.
Mas eu estou contente
Só de ver o sol nascer de novo.
É coisa que eu não vejo
Desde o dia em que a gente saiu de Pequim.
Lá ele cobria toda a minha porta,
Que nem mulher gemendo.
Primeiro Chinês: Eu nunca vi nada disso…
Se a gente não tem água,
Procura aí nas cestas
Um melão para mim.
O Segundo Preto abre uma cesta e entrega‑lhe um melão.
Primeiro Chinês: Não tem uma fonte por aqui?
O Preto tira de uma das cestas uma garrafa dágua de porcelana vermelha e coloca‑a perto do Terceiro Chinês.
Segundo Chinês: (para o Terceiro Chinês) Sua garrafa dágua de porcelana.
Uma das cestas contém roupas de seda, vermelhas, azuis e verdes. Durante as falas seguintes, os chineses vestem estas roupas, com a ajuda do Preto. Em seguida, eles se sentam no chão.
Terceiro Chinês: Essa aqui pega a sua própria água.
(Ele pega a garrafa e coloca‑a no centro do palco.)
Dela eu bebo, mesmo vazia assim,
(para o Segundo Chinês)
Como você, das máximas,
(para o Primeiro Chinês)
Ou você, dos melões.
Primeiro Chinês: Que nem eu, dos melões, não.
Disso você pode ter certeza.
Segundo Chinês: Bem, está certo quanto as máximas.
(Ele tira um livro do bolso e lê.)
“A corte tinha conhecido pobreza e desgraca;
a humanidade invadira‑lhe a reclusão com seu
sofrimento e piedade.”
(Um galho de árvore range.)
É, você está certo quanto a máximas,
Como quanto a poetas,
Ou sábios, ou nobres,
Ou jade.
Primeiro Chinês: Beber dos sábios? De jade?
Não tem uma fonte por aqui, não?
(Voltando‑se para o Preto, que retirou um jarro de uma das cestas.)
Enche e devolve.
O Preto tira uma vela grande de uma das cestas e entrega‑a para o Primeiro Chinês. Em seguida ele pega o jarro e a lanterna e sai pelas árvores, à esquerda. O Primeiro Chinês acende a vela e colo‑ ca‑a no chão, perto da garrafa dágua.
Terceiro Chinês: Existe uma reclusão de porcelana
Que a humanidade jamais invade.
Primeiro Chinês: (com sarcasmo) Porcelana!
Terceiro Chinês: É como a reclusão do amanhecer,
Antes de brilhar numa casa.
Primeiro Chinês: Baaa!
Segundo Chinês: Esta vela é o sol;
Esta garrafa é terra:
Isto é uma ilustração
Usada por gerações de eremitas.
A diferença da realidade
Está nisto:
Que, nesta ilustração,
A terra é sempre de uma cor só:
Ela é sempre vermelha,
Ela é sempre o que é.
Mas quando o sol brilha sobre a terra
Ele não brilha realmente
Sobre uma coisa que continua sendo
O que tinha sido ontem.
O sol brilha
Sobre o que quer que a terra seja.
Terceiro Chinês: E existem momentos indefinidos
Antes que ele brilhe,
Como este,
(Faz um gesto para trás.)
Antes que alguém perceba
De que a garrafa vai ser ‑
Porcelana, vidro de Veneza,
Do Egito…
Bem, existem momentos
Em que a vela, a se queimar,
Se encontra em reclusão.
(Ele ergue a vela no ar.)
E brilha, talvez só pela beleza de brilhar.
Esta é a reclusão do amanhecer,
Antes que ele brilhe numa casa.
(Ele coloca a vela no lugar.)
Primeiro Chinês: (sacudindo a cabeca)
Abstrato que nem porcelana…
Segundo Chinês: Esta reclusão conhece a beleza
Como a corte conhecia.
A corte despertou
Em seus aposentos sem vento,
E contemplou manhãs escolhidas,
Como contemplava
Porcelanas escolhidas.
O que a corte via era sempre da mesma cor,
E bem moldado,
É visto sob luz clara.
(Ele aponta para a vela.)
Ela nunca acordou para ver,
Ela nunca soube
Dos jarros mal moldados,
Das cores opacas,
Do vidro torto.
Nunca soube
Da luz fraca.
(Ele abre o seu livro com gestos largos.)
Quando a corte sabia só da beleza,
Na sua reclusão,
Ela não tinha nem amor nem sabedoria ‑
Estes vieram com a pobreza
E a desgraça,
Com o sofrimento
E a piedade. (Pausa.)
É a invasão da humanidade
O que importa.
Um galho de árvore range. O Primeiro Chinês se volta por um instante na direção do som.
Primeiro Chinês: (pensativo) A luz da mais tranqüila das velas
Ia tremilicar numa porcaria duma bandeja.
Segundo Chinês: (com um gesto de desdém) É a invasão
O que importa.
Se imaginarmos que somos três figuras
Pintadas em porcelana ‑
Assim como estamos aqui, sentados ‑
Que estamos pintados nesta garrafa,
O eremita deste lugar,
A nos iluminar com esta vela,
Ia dar de pensar…
Mas se imaginarmos
Que estamos pintados como guerreiros,
A vela ia dar de tremer nas mãos dele.
Ou se imaginarmos, por exemplo,
Que estamos pintados como três homens mortos;
A dor não lhe permitiria ver a luz.
Isto seria verdade
Mesmo se fosse o imperador
Quem segurasse a vela.
Ele não veria a porcelana,
Por causa das figuras pintadas nela.
Terceiro Chinês: (dando de ombros)
Deixa a vela brilhar só pela beleza de
brilhar.
Não gosto da invasão;
Quero os aposentos sem vento.
Mas pode até ser verdade
Que nada é belo
A não ser em relação a nós mesmos;
Nem feio,
(Ele aponta para o céu.)
Nem alto,
(Ele aponta para a vela.)
Nem baixo.
Nada, nem o amanhecer.
(para o Primeiro Chinês, zombeteiramente)
Dá para fazer música disto
(Ele se levanta.)
Para nós?
Primeiro Chinês: (hesitante) Eu sei uma música ‑
Chama “Patroa e Empregada”.
Não tem interesse nenhum para eremitas,
Nem para imperadores,
Mas tem lá o seu valor.
Porque se a gente afeta o amanhecer,
A gente afeta todas as coisas.
Terceiro Chinês: Pena que seja de mulheres…
Vai, canta aí…
Ele tira um instrumento de uma das cestas e entrega‑o ao Primeiro Chinês, que canta a canção abaixo, acompanhando‑se um tanto desafinadamente no instrumento. O Terceiro Chinês tira vários objetos da cesta, a preparar o chá; ele arruma as frutas. O Primeiro Chinês olha para ele enquanto toca. O Segundo Chinês fita o chão. O céu exibe os primeiros sinais da manhã.
Primeiro Chinês: A patroa fala, com voz rouca:
“Em terra distante,
Ele a pensar, errante,
Nas pedras brancas
Perto do meu portão.
E eu, aqui, cantante,
Cansei daquele errante.”
Ela, áspera, diz para a empregada:
“Não cante sozinha, não.”
Aí a empregada diz, para si mesma:
“Em terra distante,
Ele a pensar, errante,
Nas pedras brancas
Perto do seu portão.
Mas foi a mim, aqui, cantante,
Na janela, que nem antes,
Que ele tomou pela mão.”
“Em terra distante,
Ele a pensar, errante,
No verde vestido
Que eu vestia.
Para ela, adeus
Era o que ele dizia.”
A empregada baixa os olhos e diz
pra patroa:
“Não canto sozinha, não.”
Terceiro Chinês: Isto afeta
As pedras brancas,
Disto podem ter certeza. (Eles riem.)
Primeiro Chinês: E afeta o vestido verde.
Segundo Chinês: Aí vem o nosso preto.
O Segundo Preto volta um tanto agitado, com a água, mas sem a lanterna. Ele entrega o jarro ao Terceiro Chinês. O Primeiro Chinês tira acordes do instrumento de vez em quando. O Terceiro Chinês olha para a esquerda, por onde o Preto veio.
Terceiro Chinês: Você largou a lanterna lá atrás.
Ela brilha, no meio das árvores,
Como Vênus Vespertina no topo de uma nuvem.
O Segundo Preto sorri, mas não responde. Ele se senta atrás do Chinês à direita.
Primeiro Chinês: Ou que nem morango maduro
No meio das folhas. (Eles riem.)
Hoje à noite eu ouvi dizer
Que eles estão correndo o morro
À procura de um italiano.
Ele sumiu com a filha do vizinho.
Segundo Chinês: (confiante) Você ouviu primeiro
Os pés fugitivos,
E, depois, o som dos pés
A correrem atrás.
Primeiro Chinês: (sorridente) Não foi uma fuga.
O jovem cavalheiro foi visto
A subir o morro,
Suando que nem ator trágico.
Isso acontece de noite.
Ele era “un misérable”.
Segundo Chinês: Fala da moça, anda!
Primeiro Chinês: (Ele tira dois acordes do seu instrumento,
como a preludiar sua narrativa.)
Pode‑se ver essa moça
Através de tantos pontos de vista
(Ele aponta para a garrafa dágua.)
Quantas são as faces de uma garrafa redonda.
Quanto a mim, eu via ela bela,
Bela, muito bela, ela…
Eles riem. O Primeiro Chinês tira um acorde do instrumento e olha para o Terceiro Chinês, que boceja.
Primeiro Chinês: (declamando) Bela, bela
Que nem garrafa de porcelana.
Assim era ela, a bela donzela.
(Ele faz a pontuação com o instrumento.)
Para mim, ela era
Uma jovem donzela.
Então essa canção
Terá do sangue
A coloração.
Ele tira um acorde do instrumento. Um galho de árvore range. O Primeiro Chinês percebe isto e coloca a mão sobre o joelho do Segundo Chinês ‑ sentado entre ele e o Terceiro Chinês ‑ para chamar‑lhe a atenção para o som. Eles não estão de frente para o lugar de onde veio o som. O objeto escuro pendurado num galho de árvore torna‑se uma silhueta. O céu se torna cada vez mais claro. Nenhuma cor deverá ser vista até o final da peça.
Segundo Chinês: (para o Primeiro Chinês) E só uma árvore,
A ranger no vento da noite.
Terceiro Chinês: (dando de ombros) Nada rangeria
Nos aposentos sem vento.
Primeiro Chinês: (retomando) A essa altura,
A donzela dessa balada
Já terá sido estudada,
Com muita filosofia,
Pelo eremita e sua vela.
E é possível que o imperador tenha gritado:
‑ Luz! Mais luz!
Mas assim é que são as baladas:
Quanto mais bonito o seu início,
Pior será o seu final.
Que aqui também foi mostrado
Que a donzela era pobre;
A vela do eremita deve ter desenhado
Sombras assustadoras.
E o imperador deve ter segurado
A porcelana numa das mãos…
Ela abraçava
Aquele suarento ator trágico,
E derramava lágrimas morro acima.
Segundo Chinês: (fazendo uma careta)
Não está com cara de fuga.
Primeiro Chinês: É uma balada triste,
Coisa de bisbilhoteiro.
Terceiro Chinês: A gente vai continuar com isto, é?
Segundo Chinês: Por que não?
Terceiro Chinês: A gente veio à procura de isolamento,
Para descansar ao amanhecer.
Segundo Chinês: (erguendo um pouco o livro)
Mas isto vai ser parte do amanhecer.
Sera que você pode dizer como é que vai
terminar? ‑
Vidro veneziano,
Egípcio,
Vidro torto…
Ele cobre a vela com uma das mãos e se volta para a luz no céu, à direita; ele indica o amanhecer.
Enquanto isto, a vela brilha,
(para o Terceiro Chinês)
Como diz você,
Só por brilhar…
Primeiro Chinês: (com simpatia) Chii! Isso vai terminar mal.
O pai da donzela
Veio estrondando atrás dos dois
Até o sopé do morro.
Veio gritando: (ele imita)
‑ Ana, Ana, Ana!
Sem ela, ele era sozinho.
Que nem o jovem cavalheiro
Era sozinho sem ela:
Três mendigos ‑ cês ‘tão vendo? ‑
Mendigando um pelo outro.
O Primeiro Preto, com duas lanternas, surge cauteloso por entre as árvores. Ao vê‑lo, o Segundo Preto, sentado perto dos chineses, se levanta, rápido. Os chineses se levantam, alarmados. O Segundo Preto passa pelos chineses e vai até o Primeiro Preto. Todos vêem o corpo de um homem pendurado num galho de árvore. Eles se chegam uns aos outros, os olhos fixos no corpo. O Primeiro Preto sai do meio das árvores e coloca as lanternas no chão; ele olha para o grupo e, em seguida, para o corpo.
Primeiro Chinês: (comovido) O jovem cavalheiro da balada…
Terceiro Chinês: (lentamente, aproximando‑se do corpo)
É o final da balada.
Afastem o mato.
Os Pretos começam a afastar o mato.
Segundo Chinês: Morte, o eremita
Não precisa de vela
No seu eremitério.
O Segundo Chinês assopra a vela; o Primeiro Chinês apaga as lanternas. Enquanto o mato vai sendo afastado, a figura de uma moça semi‑estupefata, sentada sob a árvore, se torna visível primeiro para o Segundo Chinês, em seguida para o Terceiro Chinês. Eles recuam. Os Pretos se movem para a esquerda. Quando o Primeiro Chinês vê a Moça, o instrumento escorrega das suas mãos e cai ruidosamente no chão. A Moça desperta.
Segundo Chinês: (para a Moça) É você, Ana?
A Moça estremece. Ela levanta a cabeca, olha vagarosamente em volta, fica de pé e grita.
Segundo Chinês: (suavemente) É você, Ana?
Ela se volta rapidamente para o corpo, fita‑o e vai trôpega para o fundo do palco.
Ana: (amarga) Vai.
Conta pro meu pai:
Ele está morto.
Ela se apoia no Segundo e no Terceiro Chinês. O Primeiro Preto sussurra alguma coisa para o Primeiro Chinês, pega as lanternas e sai pela estrada, em direção ao vale.
Primeiro Chinês: (para o Segundo Preto)
Traz água da fonte
Pra gente.
Já.
O Segundo Preto pega o jarro e sai por entre as árvores, à esquerda. Lentamente a Moça volta a si. Ela olha para os chineses e para o céu. Trêmula, ela dá as costas para o corpo e não olha mais para ele.
Ana: Daqui a pouco terá amanhecido.
Segundo Chinês: Uma vela substitui
A outra.
O Primeiro Chinês anda até o mato, à direita. Ele se põe à beira da estrada, como para atrair a atenção de alguém que passasse por ali.
Ana: (com simplicidade)
Quando ele estava nas terras dele,
Eu trabalhava nas nossas ‑
Usava roxo vistoso.
E quando eu estava no jardim dele,
Usava brincos dourados.
Ontem à noite, encontrei ele na estrada;
Me pediu para ir com ele
Até o topo do morro.
Senti o mal,
Mas ele não queria nada…
Ele se enforcou na minha frente.
Ela olha em torno, à procura de apoio. O Segundo e o Terceiro Chinês levam‑na até a estrada. Na beira da estrada, o Primeiro Chinês toma o lugar do Terceiro. A Moça e os dois chinêses saem pela estrada. Só o Terceiro Chinês permanece no palco. Ele atravessa o palco lentamente, empurrando o instrumento com o pé, para fora de seu caminho; o instrumento ressoa. Ele olha para a garrafa dágua.
Terceiro Chinês: Da cor do sangue…
Reclusão de porcelana…
Reclusão de amanhecer…
(Ele pega a garrafa dágua.)
A vela do sol
Já vai raiar
(Ele indica a garrafa.)
Nesta terra eremita.
Já vai raiar
Sobre as árvores;
(Ele indica o corpo.)
Vai descobrir uma coisa nova
(Ele indica as árvores.)
Pintada nesta porcelana,
(Ele indica a garrafa.)
Mas não nesta.
Ele coloca a garrafa no chão. Uma nuvem pequena, sobre o vale, se torna rubra. Ele se volta para ela. Em seguida, anda para a direita. Ele encontra o livro do Segundo Chinês no chão; pega‑o e vira‑lhe as folhas.
Vermelho não é só
Cor do sangue,
Ou (Ele indica o corpo.)
Dos olhos de um homem
Ou (mordaz)
De uma moça.
É como o vermelho do sol
É uma coisa pra mim
É outra, pra outro,
Assim também acontece
(Ele indica uma árvore.)
Com o verde de uma árvore
(Indica outra.)
E o verde de outra,
Sem o que tudo seria preto.
O sol da manhã é multiplicado,
Como a terra onde ele brilha,
Pelos olhos que se abrem pra ele,
Até mesmo olhos mortos.
E o vermelho é multiplicado
pelas folhas das árvores.
Perto do final desta fala o Segundo Preto entra pela esquerda, sem ser notado. O Terceiro Chinês, de costas para o Preto, sai pela estrada à direita. O Preto observa os objetos no palco. Ele vê o instrumento, senta‑se perto dele e tira vários acordes, saboreando cada um. Um ou dois pássaros cantam. Ouve‑se uma voz à distância, tocando um cavalo; ouve‑se o estalido de um chicote. O Preto fica de pé, anda para a direita e se põe à beira da estrada.
A cortina desce lentamente
DRÁCULA
– a peça do Vampiro.
de
Hamilton Deane
&
John Balderston.
Tradução
de
Flávio de Campos.
Revista em
setembro de 2002.
————–
Personagens, por ordem de entrada em cena:
Srta. Wells, A Criada.
John Harker.
Dr. Seward.
Abraham Van Helsing.
R.M. Renfield.
Butterworth, O Enfermeiro.
Lucy Seward.
O Conde Drácula.
* * * * * * * * * *
ATO I – A biblioteca no andar térreo do Sanatório do Dr. Seward, em Purley, Inglaterra. Noite.
ATO II – O quarto de vestir de Lucy. A noite seguinte.
ATO III – Cena I: A biblioteca. Trinta e duas horas depois, pouco antes do amanhecer.
Cena II: Uma caverna, pouco depois do amanhecer.
* * * * * * * * * *
ATO I
A biblioteca no andar térreo do sanatório do Dr. Seward, em Purley, Inglaterra.
O aposento é medieval, mas a mobília sugere conforto e estilo moderno.
O teto, abobadado, se sustenta sobre duas colunas de pedra.
As paredes são de pedra. Nas paredes, painéis de madeira e tapeçarias.
Na parede da direita, uma lareira medieval. O fogo arde.
À direita do centro, um sofá.
Uma grande poltrona na direita.
Na esquerda, uma mesa. Atrás dela, uma cadeira de braços. Uma cadeira pequena à direita da mesa.
Portas duplas na parede do fundo.
Na esquerda-alta, uma grande janela dupla dá para o jardim. As cortinas da janela estão fechadas.
Na esquerda-baixa, uma porta.
Na parede do fundo, na direita, uma estante com um painel corrediço imperceptível.
Entra a Criada, uma bela jovem, introduzindo John Harker no aposento.
Harker é um jovem bem apessoado de mais ou menos vinte e cinco anos. Um típico inglês de colégio tradicional, não obstante o comportamento impulsivo, incisivo, nervoso.
Harker: (AGITADO) A senhora tem certeza?
Criada: A Senhorita Lucy continua na mesma, senhor.
Pela esquerda-baixa, entra o dr. Seward.
O dr. Seward é um psiquiatra de mais ou menos cinquenta e cinco anos. Típico profissional mergulhado num mundo de livros e pacientes, inteligente, ele não é um homem de ação nem possui temperamento forte.
A Criada sai, fechando as portas.
Seward: John!
Harker e Seward se cumprimentam.
Harker: Doutor Seward, o que está acontecendo? Por que o senhor me chamou?
Seward: Meu caro John, disse-lhe em meu telegrama que não havia nada de novo.
Harker: O senhor disse “nada de novo, não se preocupe”, mas acrescentou “venha logo”.
Seward: E você não perdeu tempo!
Harker: Entrei no carro e vim voando de Londres. Doutor, com certeza nós podemos fazer outra coisa por ela. Eu daria a minha vida, se isto salvasse a Lucy.
Seward: Não duvido, meu jovem. Seu amor por minha filha contém o fervor da juventude. Eu também amo a Lucy. Ela é o que me resta na vida. Foi tentado tudo o que a ciência médica tem a oferecer.
Harker: A ciência médica teve muito pouco a oferecer para a Mina.
Seward: Pobre Mina. Morreu após apresentar os mesmos sintomas misteriosos da Lucy.
Das coxias à esquerda, ouve-se uma gargalhada selvagem, histérica.
Harker: Santo Deus, o que foi isso!?
Seward senta-se à mesa.
Seward: Foi só o Renfield, um dos meus pacientes.
Harker: Mas o senhor nunca manteve pacientes violentos aqui no seu sanatório. A Lucy não pode ser obrigada a ouvir loucos furiosos.
Seward: Tem razão. Farei com que ele seja removido. Até pouco tempo atrás ele ficava sempre sossegado. Ficarei triste em perdê-lo.
Harker: O quê!?
Seward: Trata-se de um caso raro: zoofagia.
Harker: Que é isso?
Seward: Louco por seres vivos.
Harker: Como!?
Seward: Ele acredita que, devorando seres vivos, pode prolongar a própria vida.
Harker: Santo Deus!
Seward: Pega as moscas e come. Às vezes, para variar, ele dá moscas para as aranhas. As aranhas engordam e ele come as aranhas.
Harker: Santo Deus, que horror!
Harker senta-se à mesa.
Harker: Mas me fala da Lucy. Por que o senhor me chamou?
Seward: Ontem telegrafei para a Holanda, para o meu velho amigo Van Helsing. Ele deve estar chegando. O carro acabou de descer atá a estação para pegá-lo. Vou entregar o caso de Lucy para ele.
Harker: Outro especialista em anemia?
Seward: Não, meu jovem. Seja lá o que for, isto não é anemia. E este meu amigo é, entre os vivos, a maior autoridade em doenças misteriosas.
Harker: (LEVANTA-SE) Deus sabe que esta doença é misteriosa, mas os sintomas são muito claros.
Seward: Como eram os da pobre Mina… Cristalinamente claros.
Um cão uiva ao longe.
Outros cães, próximos e distantes, se unem, num coro lúgubre.
Seward se levanta e vai até a lareira.
Seward: Aí estão eles. Sempre a mesma coisa. Todos os cães da redondeza, num raio de um quilômetro…
Harker vai até a janela.
Harker: Parece uivo de pavor.
Seward: Ouvimos este coro todas as noites, desde que Mina ficou doente.
Harker: Quando eu estava na Rússia e os cachorros uivavam assim, as pessoas diziam que os lobos estavam rondando.
Seward pega um cigarro sobre o console da lareira, acende-o.
Seward: Difícil imaginar lobos por aqui, a trinta quilômetros de Londres.
Harker: Mas essa sua casa é completamente isolada.
Harker olha pela janela.
Harker: Não se vê nada. A não ser lá, o Castelo de Carfax, o que foi comprado pelo Conde.
Seward se afasta da lareira.
Seward: Ontem à noite, ele tornou a vir até aqui, o seu amigo, o Conde Drácula.
Harker: O Conde Drácula não é meu amigo.
Seward: Não diga isto. Ele chegou a se oferecer para uma transfusão, caso precisássemos de outro doador.
Seward se senta no sofá.
Harker: Quanta generosidade. Não esperava isso dele.
Seward: Ele parece realmente interessado em Lucy. Se ele fosse jovem, eu iria pensar…/
Harker: O quê!?
Seward: Não… O comportamento dele atesta que não existe nada neste sentido. John, nós precisamos de solidariedade e eu sou grato ao Conde por tudo o que ele tem feito.
Harker: Eu também sou eternamente grato a qualquer pessoa que ajudar a Lucy.
Seward: E creio que ele realmente ajuda Lucy. Ela parece se alegrar sempre que ele vem aqui.
Harker: Isso é bom. Posso ver a Lucy, agora?
Seward: (LEVANTA-SE) Vamos juntos.
A campaínha toca.
Harker vai até a porta à esquerda.
Seward apaga o cigarro no cinzeiro.
Seward: Deve ser Van Helsing. Vá na frente, que eu já vou.
Harker sai.
A Criada introduz Abraham Van Helsing, que entra imediatamente.
Van Helsing é um homem de estatura mediana, pouco mais de cinquenta anos, rosto sagaz bem barbeado, sobrancelhas grossas e grisalhas, uma vasta cabeleira também grisalha, penteada para trás, a exibir uma testa alta. Olhos escuros e penetrantes, comportamento agitado, atento e resoluto. Um homem ativo, de falas incisivas, diretas, rápidas.
Van Helsing traz uma pequena mala preta.
Criada: O Professor Van Helsing.
A Criada sai.
Seward e Van helsing cumprimentam-se efusivamente.
Seward: Meu querido Van Helsing, jamais poderei retribuir-lhe este enorme favor.
Van Helsing: Bobagem. Fosse um dos seus pacientes e não a sua filha, eu teria vindo do mesmo jeito. Eu é que lhe devo um enorme favor.
Seward: Esqueça aquilo. Você teria feito o mesmo por mim. Vou providenciar alguma coisa para você comer.
Seward vai tocar a sineta, mas Van Helsing o interrompe com um gesto.
Van Helsing: Jantei a bordo. Não perco tempo quando tenho trabalho pela frente.
Van Helsing coloca a mala sobre a mesa.
Seward: Ah, Van Helsing, você me encanta como sempre. Não faz um minuto que está aqui e já me conquistou.
Van Helsing: Você me escreveu sobre os sintomas de sua filha. Fale mais da outra moça, a que morreu.
Seward oferece a Van Helsing a cadeira à direita da mesa.
Eles se sentam.
Seward: Pobre Mina Weston. Tinha a idade da Lucy. Eram inseparáveis. Mina estava passando uns dias aqui quando ficou doente. Como disse no telegrama, ela simplesmente foi ficando cada vez mais fraca. Foi definhando, definhando… Mas não apresentava sintomas de anemia. Os exames de sangue não acusavam anormalidade alguma.
Van Helsing: Você falou em transfusão.
Seward: Sim, prescrição de Sir William Briggs.
Sewar exibe o antebraço.
Seward: Está vendo esta marca? Lucy e o seu noivo, John Harker, também doaram sangue.
Van Helsing: Hum… Três transfusoes… E o efeito?
Seward: Ela se reanimava a cada uma, a cor voltava ao rosto, mas, no dia seguinte, amanhecia pálida e fraca novamente. Reclamava de “sonhos assustadores”. Há dez dias, fomos encontrá-la em coma. Não houve nada que a reanimasse. E ela acabou morrendo.
Van Helsing: E os outros sintomas?
Seward: Nada, nenhum. A não ser – eu lhe escrevi a respeito – duas pequenas feridas no pescoço.
Van Helsing: Foi por isso que eu vim tão depressa. Como eram?
Seward: Apenas dois pontinhos brancos, vermelhos no centro.
Van Helsing meneia a cabeça, assustado.
Seward: Concluímos que ela deve ter espetado a pele com um alfinete, durante o seu delirio, ao tentar prender uma echarpe.
Van Helsing: Hum… E na sua filha, os sintomas são os mesmos?
Seward: Exatamente os mesmos. Ela também reclama de “sonhos assustadores”. Van Helsing, você morou no Brasil. Isto não seria alguma coisa estranha à nossa experiência médica aqui na Inglaterra?
Van Helsing: (ASSUSTADO) Pode ser.
Detrás da cortina da janela, ouve-se uma gargalhada.
Van Helsing se levanta.
Seward também se levanta, vai até a janela e abre as cortinas.
Renfield está lá.
Renfield é um jovem repugnante, de rosto deformado, olhos astutos e cabelo desgrenhado.
Seward o traz para dentro.
Seward: Renfield, como foi que você saiu do seu quarto!?
Van Helsing: Quem é ele?
Seward vai até a sineta. Toca-a.
Seward: Um dos meus pacientes. Ele entrar aqui é de uma negligência imperdoável.
Van Helsing: O senhor ouviu nossa conversa?
Renfield: Bla-bla-blá, ble-ble-blé, blu-blu-blu…
Seward: Renfield… Renfield, você sabe que não pode ficar andando por ai, assim. Como foi que você saiu do quarto?
Renfield: (RI) E como é que foi?
Seward: Como vão as moscas? (PARA VAN HELSING) O Senhor Renfield tem um hobby: ele come moscas. Suspeito que você coma aranhas também, de vez em quando, não é, Renfield?
Renfield: A aranha disse pra mosca: – Vamos, entre, a casa é sua, tenha a bondade, fique à vontade. E a mosca: – Com licença, estou só de passagem, não quero incomodar. E a aranha nhéco na mosca.
Seward e Van Helsing fazem que não entenderam.
Renfield: Doutor, o senhor, o seu amigo… Me perdoe, doutor, mas o senhor não me apresentou ao seu amigo.
Seward: (CENSURA) Renfield, Renfield…
Van Helsing: Deixe, Seward.
Entra a Criada.
Seward: Diga ao Enfermeiro que venha imediatamente até aqui.
Criada: Sim, senhor.
A Criada sai.
Seward: Professor Van Helsing, este é o Senhor Renfield, um dos meus pacientes.
Van Helsing vai até ele. Eles apertam as mãos.
Van Helsing esgrega o polegar nos dedos de Renfield.
Renfield puxa sua mão com violência.
Renfield: Ah! Abraham Van Helsing, quem não conhece? O trabalho de pesquisa, as inquirições sobre certas moléstias obscuras, não de todo desvinculadas das energias e poderes que a plebe rude não crê existir. O senhor há de ocupar um lugar na história.
Entra o Enfermeiro, uniformizado.
Ao ver Renfield, ele leva um susto.
Embaraçado, ele olha para Seward.
Seward: (TÃO SEVERO QUANTO SUA NATUREZA GENTIL PERMITE) Butterworth, você permitiu que seu paciente escapasse do quarto mais uma vez!
Enfermeiro: O Doutor não vai acreditar, o Doutor pode até não acreditar, o Doutor tem que acreditar: eu tranquei ele, eu tranquei a porta dele à chave. A chave está aqui, aqui na minha mão, ó. E a porta está lá, fechada, exatamente conforme eu fechei.
Seward: Mas é a segunda vez. Ontem à noite ele escapou e quase invadiu a residência do Conde Drácula.
Enfermeiro: Dessa vez, Doutor, pela porta ele não saiu. E pela janela, é tombo de mais de dez metros.
O Enfermeiro vai até Renfield.
Enfermeiro: Lagartixa do inferno. Vam’bora.
O Enfermeiro segura Renfield pela gola do casaco e pelo braço.
Seward: Renfield, se isto tornar a acontecer, você vai ficar sem acúçar para pegar moscas.
Renfield: Mosca? Para que que eu quero mosca… agora?
O Enfermeiro olha para Van Helsing.
Renfield: Mosca, mosca… Bicho mais besta.
Enquanto fala, Renfield acompanha uma mosca com os olhos.
O Enfermeiro também vê a mosca.
Indulgente, ele solta Renfield.
Com um golpe de mão, Renfield pega a mosca, encosta a mão fechada ao ouvido para escutar-lhe o zumbido, dá alguns passos e leva-a à boca. Ao ver que está sendo observado, Renfield solta a mosca.
Renfield: Mosca é forma primária de vida. Mosca é quase uma coisa, uma coisinha insignificante. Eu estou pouco ligando pra mosca.
Enfermeiro: Está, é? Mais uma das tuas presepadas, eu esmago a tua aranha de estimação e ela vai virar uma pasta branca.
Renfield: Não! Não! Senhor Butterworth! A minha aranha, não. A bichinha está ficando tão bonitinha, tão gordinha. Mais meia duzia de moscas e ela vai estar no ponto. A minha aranhinha, não!
Renfield solta uma risada curta. Esfrega as mãos.
Ele pega uma mosca no ar e come-a.
Van Helsing: Senhor Renfield, por que come moscas?
Renfield: As asas, prezado senhor. As asas das moscas são ícones dos poderes etéreos das faculdades psíquicas.
Van Helsing: Sei…
Seward: (FARTO) Butterworth, leve-o.
Van Helsing: Um momento, meu amigo. (PARA RENFIELD) E as aranhas?
Renfield: (EMOCIONADO) O Professor Van Helsing poder-me-ia explicar a razão pela qual uma aranha gigantesca viveu séculos e séculos na torre de uma velha igreja espanhola, e cresceu, e cresceu, e cresceu? Não, professor, ela jamais comia. Mas, sim, professor, ela bebia, ela bebia… Ela vinha e descia e bebia o óleo de cada uma das lamparinas da igreja.
Seward: (CHAMA) Butterworth.
Renfield: Um minuto só, Doutor Seward. Só mais um minutinho.
Van Helsing retira o acôniro de sua mala.
Renfield: (FIRME) Me manda embora, agora, numa camisa de força! Me acorrenta pra eu não fugir. Isso aqui é sanatório, não é manicômio. Isso aqui não é lugar pra mim. Meus berros vão perturbar a Senhorita Lucy. Ela está doente. Eles vão fazer a sua filha ter “sonhos assustadores”, Doutor Seward. “Sonhos assustadores”…
Seward: (APAZIGUADOR) Trataremos disso amanhã de manhã.
Seward faz sinal para o Enfermeiro, que vai até Renfield.
Van Helsing: Por que o senhor tanto deseja sair daqui?
Renfield vai até Van Helsing, hesita e, por fim, decide falar.
Renfield: Vou contar pro senhor. Não pra esse débil mental do Seward. Ele é cego das idéias. Mas o senhor…/
Um enorme morcego bate contra a vidraça.
Renfield volta-se para a janela, estende os braços.
Renfield: (BALBUCIA) Não, eu não falei nada, eu juro, eu não ia falar nada, eu juro que não ia falar nada.
O Enfermeiro vai para o fundo do palco e observa Renfield.
Seward: O que foi isto?
Renfield: (VOLTA-SE) Um morcego. Foi só um morcego, senhores. Lá nos mares do oriente, em algumas ilhas nos mares do oriente, existem morcegos, os senhores sabem. Eles ficam pendurados nas árvores, balançando, balançando… E a noite cai. Nos portos, o calor é infernal. No convés dos navios, os marinheiros dormem. O dia amanhece e os marinheiros estão brancos, mortos; mortos, brancos. Que nem a Senhorita Mina, naquele dia… (PARA SEWARD) O senhor sabe.
Seward: O que é que você sabe sobre a Senhorita Mina!?
Renfield: Para o senhor, eu não conto.
Seward: (PARA O ENFERMEIRO) Leve Renfield para o quarto!
Van Helsing: (PARA SEWARD) Por favor! (PARA RENFIELD) Por que o senhor tanto deseja sair daqui?
Renfield: Para salvar a alma.
Van Helsing: Como?
Renfield: Não, não adianta. Eu não vou falar mais nada. Eu nem sei… Posso até ficar… A minha alma, pra que que ela serve? Será que não vale a pena perder a alma…/
Renfield se volta para a janela.
Renfield: … em troca do que eu vou receber?
Seward: Por que ele deu para pensar em almas? Será que as almas das moscas e aranhas penetraram-lhe a cabeça?
Renfield tapa os ouvidos com as mãos, fecha os olhos, contorce o rosto.
Renfield: Pára de me atormentar com almas! Eu não quero as almas delas. Eu só quero a vida delas. O sangue, o sangue que é a vida.
Van Helsing: E daí?
Renfield: Está na Bíblia. Eu quero alma pra quê? (PARA VAN HELSING) Alma não dá pra comer, nem pra be…/
Renfield se interrompe bruscamente.
Van Helsing: Nem para beber.
Van Helsing leva o acônito até o nariz de Renfield.
O rosto de Renfield se contrai de raiva e nojo.
Renfield: Ah, acônito!
Renfield salta pata trás.
Renfield: Você, Van Helsing, você sabe muito. Você não pode continuar vivendo!
Renfield se lança contra Van Helsing.
Seward e o Enfermeiro agarram Renfield e arrastam-no até a porta.
Renfield pára de lutar e diz, com clareza:
Renfield: Eu vou bonitinho, vou direitinho. Mas eu avisei: me manda embora. Se o senhor não mandar, Doutor Seward, o senhor vai ter que responder pela minha alma diante de Deus!
Saem Renfield e o Enfermeiro.
Ouve-se uma gargalhada selvagem.
Van Helsing coloca o acônito na mala.
Seward fecha a porta.
Seward: Meu caro amigo, você se machucou?
Van Helsing: Não.
Seward: Eu lhe peço mil desculpas.
Van Helsing dispensa as desculpas com um gesto impaciente.
Seward: Por que ele ficou tão tenso? Que erva é essa?
Van Helsing: Acônito.
Enquanto fala, Van Helsing olha rapidamente pela janela.
Seward: O que é acônito?
Van Helsing: Um medicamento altamente tóxico, preparado com a planta do mesmo nome. Plínio, o pai, faz-lhe menção. Ela só cresce nas selvas da Rússia Central. Pertence à medicina preventiva.
Seward: Nunca ouvi falar.
Van Helsing: Seward, quero que mande vigiar atentamente o Renfield.
Seward: Perfeitamente, Professor Van Helsing. Mas eu queria que cuidasse primeiro de minha Lucy.
Van Helsing: Quero este rapaz sob observação.
Seward: É um louco interessante, não resta a menor dúvida. Mas você vai ver minha filha, não vai?
Van Helsing: Preciso ver a ficha deste rapaz.
Seward: Mas, professor…
Van Helsing: Seward, você acha que eu não sei por que estou aqui?
Eles se dirigem à esquerda.
Seward: É claro que sei. Vamos pegar a ficha dele. Só não consigo ver a razão de seu interesse por Renfield, uma vez que, em sua vasta experiência…
E eles saem.
O aposento fica vazio, por uns instantes.
Lucy entra, apoiada em Harker.
Ela é uma linda jovem de vinte anos, o rosto de uma palidez sobrenatural. Ela veste uma camisola branca muito fina, o pescoço coberto por uma echarpe.
Caminhando com dificuldade, ela vai até a mesa, na qual se apoia.
Harker fecha a porta.
Harker: Pensei que eles estivessem aqui.
Lucy: John, você acha que esse novo especialista é melhor do que os outros?
Harker leva Lucy até o sofá.
Harker: Tenho certeza que sim. Seja como for, Lucy, agora que voltei, vou ficar aqui até você superar isso tudo.
Lucy: Oh, John! Mas você pode? E o seu trabalho?
Harker ajuda Lucy a se sentar.
Em seguida, ele se senta ao lado dela.
Harker: Você é mais importante.
Lucy: Eu… acho que não, John. Não acho que seja melhor você ficar.
Os olhos de Lucy passeiam pelo quarto.
Lucy: Eu, às vezes… prefiro ficar sozinha.
Harker: Meu amor, como pode dizer isso? Você está muito doente.
Harker segura-lhe a mão.
Harker: Você me ama?
Lucy: (CARINHOSA) Amo, John. Muito, demais.
Harker: É só você melhorar, que eu levo você embora. Nós nos casamos mês que vem. Não vamos esperar até maio. Nós prolongamos a nossa lua de mel por três meses e a nossa casa fica pronta em junho.
Lucy: (ALEGRE) Você acha que a gente consegue?
Harker: Claro! Mamãe queria que esperássemos, mas ela vai entender. E eu quero tirar você daqui.
Harker tenta beijar Lucy.
Lucy se afasta.
Harker: Por que você se afastou?
Lucy: Eu…
Harker: Você está tão fria, Lucy. Você está sempre tão fria… agora…
Lucy: Me perdoa, querido.
Lucy pendura-se em Harker.
Harker a abraça.
Lucy recua e deixa-se cair para trás.
Lucy: John, eu estou cansada, tão cansada…
Entram Seward e Van Helsing.
Seward: Lucy, minha querida, este é meu velho amigo, o Professor Van Helsing.
Lucy se apruma e estende a mão para ele.
Van Helsing: Senhorita Lucy…
Van Helsing beija-lhe a mão.
Van Helsing: Com certeza não se lembra do velho Van Helsing. Conheci você deste tamanhinho. Agora é uma moça. E que encanto, que beleza. Um pouco pálida, é verdade, mas nós vamos trazer de volta o rosado de seu rosto.
Lucy: Foi muita bondade ter vindo, Professor.
Van Helsing: E este com certeza é o felizardo com quem você vai se casar.
Seward: Sim. John Harker.
Harker: Professor, eu não quero ser inconveniente. Mas, se o Doutor Seward concordar, (PARA SEWARD) eu queria ficar hospedado aqui até a Lucy se recuperar.
Seward: Sua presença é extremamente bem-vinda, meu jovem.
Van Helsing: Sem dúvida alguma. Eu ia pedir que ficasse. Posso precisar de sua ajuda.
Van Helsing leva a cadeira da mesa até a esquerda do sofá.
Volta-se para Lucy.
Van Helsing: Agora recline-se, Lucy. Vamos… Assim…
Van Helsing examina cuidadosamente as pálpebras de Lucy.
Van Helsing: Quando foi que esta fraqueza apareceu?
Van Helsing se senta.
Ele examina a boca e as pontas das unhas das mãos de Lucy.
Ele tira o relógio do bolso e toma-lhe o pulso.
Lucy: Duas noites depois do enterro da Mina eu tive… um sonho assustador.
Van Helsing: (SOLTA-LHE O PULSO) Sonho assustador? Como foi?
Lucy: Antes de pegar no sono, ouvi cachorros uivando. O ar estava abafado. Deixei acesa a luz da mesinha de cabeceira, mas quando o sonho começou, parecia que uma névoa tinha entrado no quarto.
Van Helsing: A janela estava aberta?
Lucy: Estava. Eu sempre durmo de janela aberta.
Van Helsing: Ah, é claro, você é inglesa. (RI) Em meu pais, não somos tão preocupados com ar puro. Sim, prossiga.
Lucy: A névoa era tanta que só dava para ver a luz da cabeceira, uma luz fraquinha. E aí… (PROGRESSIVAMENTE HISTÉRICA) aqueles dois olhos vermelhos, olhando dentro dos meus olhos, aquela cara branca brilhando no meio da névoa, olhando dentro de mim. Um horror, um horror, tudo um horror!
Lucy cobre o rosto com as mãos.
Harker faz que vai até ela.
Van Helsing o detém com um gesto.
Van Helsing: (PARA LUCY) Pronto, pronto…
Apaziguador, Van Helsing tira-lhe as mãos do rosto.
Lucy tem um pequeno sobressalto quando Van Helsing toca suas mãos.
Van Helsing: Por favor, prossiga, Senhorita.
Lucy olha para Van Helsing e relaxa.
Lucy: De manhã, foi difícil a Criada me acordar. Eu estava fraca, abatida. Parecia que uma parte da minha vida tinha sido sugada de mim.
Van Helsing: Houve mais destes sonhos?
Lucy faz que sim.
Lucy: Quase toda noite, a mesma névoa, os mesmos olhos vermelhos, a mesma cara horrenda.
Lucy torna a cobrir o rosto com as mãos.
Van Helsing acalma-a.
Van Helsing: Pronto, agora acabou…
Seward: Demos duas transfusões. Nas duas, ela recuperou as forças, em seguida.
Lucy: Em seguida, vinha outro sonho. Agora, a noite me apavora. Eu sei, parece absurdo. Mas, por favor, não ria de mim, Professor.
Van Helsing: Não sou muito de rir.
Delicadamente, sem dizer nada, Van Helsing tira a echarpe do pescoço de Lucy.
Lucy tenta resistir.
Quando o pescoço fica nu, ela olha para Harker.
Van Helsing tem um sobressalto.
Ele retira uma lupa de sua mala e examina as suas feridas no pescoço de Lucy.
Lucy permanece de olhos fechados.
Controlando-se com dificuldade, Van Helsing coloca a lupa na mala, fecha-a e coloca a cadeira ao lado da mesa.
Van Helsing: Quando apareceram estas feridas?
Seward e Harker têm um violento sobresslato e vão até o sofá.
Eles se olham, horrorizados.
Lucy: Naquela manhã.
Harker: Lucy, por que você não nos contou?
Seward: Essa echarpe no pescoço… Lucy, você queria… esconder de nós…!
Lucy agarra o pescoço, convulsivamente.
Van Helsing: Não pressionem. (PARA LUCY) O que mais?
Lucy: (PARA SEWARD E HARKER) Não queria que vocês ficassem preocupados. Eu sabia que… a Mina também…/
Van Helsing: (AFETANDO OTIMISMO) Fez muito bem, Senhorita Lucy, fez muito bem. Não foi nada, não é nada… E este velho aqui não vai permitir que os seus sonhos sejam…/
A Criada surge à porta.
Criada: O Conde Drácula.
Drácula entra.
Um homem de mais ou menos cinquenta anos, alto, misterioso, polido e de personalidade marcante, um europeu continental na aparência e nos modos.
A presença de Drácula provoca em Lucy um misto de atração e repulsa.
Seward: Boa noite, Conde.
Drácula: Cavalheiros…
Drácula faz uma mesura aos homens.
Em seguida, vai até o sofá e faz uma mesura à maneira da corte.
Drácula: Senhorita Lucy, como se sente? Parece melhor esta noite.
Lucy: Sim, eu me sinto bem melhor, Conde, agora que este velho amigo de papai chegou para me ajudar.
Drácula volta-se para Van Helsing.
Lucy olha para Drácula, retrai-se e volta-se para Harker.
Seward: Conde Drácula, o Professor Van Helsing.
Os dois homens fazem mesuras.
Drácula: O Professor Van Helsing… Um cientista dos mais ilustres. Sua reputação se espalha até os confins da Transilvânia. (PARA SEWARD) Mas creio estar interrompendo uma consulta…
Seward: Absolutamente, Conde. Foi muito generoso ter vindo. Ficamos penhorados pelas razões que o trouxeram aqui.
Harker: O Doutor Seward falou do seu oferecimento e eu nem sei como lhe agradecer.
Drácula: Não há do quê. Eu é que devo agradecer aos senhores por me permitirem trazer algum conforto a Senhorita Lucy, seja de que forma for.
Lucy: E o senhor traz, Conde. Aguardo suas visitas com ansiedade: elas me fazem bem.
Van Helsing: Parece que tenho um rival.
Drácula: Senhorita Lucy, suas palavras são estímulos aos meus desejos de tornar mais frequentes as minhas visitas.
Lucy: (FIRME) Suas visitas me fazem bem.
Van Helsing vai até a Criada e fala com ela em voz baixa.
Drácula: Mas a Senhorita não está mais sozinha. Meus esforços para distraí-la com velhas estórias não serão mais necessários, com o Professor Van Helsing a assisti-la e, principalmente, com o Senhor Harker a hospedar-se aqui.
Harker: Como o senhor sabe que vou me hospedar aqui, Conde?
Drácula: (COM UM PEQUENO SOBRESSALTO) Como pode o galante enamorado perguntar tal coisa? Por dedução, meu caro.
Harker: É, acertou… Enquanto Lucy não ficar boa, eu não arredo o pé daqui de jeito nenhum.
Lucy: Por favor, Conde, continue a vir, está bem?
Drácula faz uma mesura e beija a mão de Lucy.
Lucy se curva em direção a ele – e se recompõe.
Van Helsing percebe isso.
Van Helsing: (À CRIADA) … Nem atenda a campaínha. Ela não deve ficar sozinha por nada deste mundo.
Criada: Sim, senhor.
Van Helsing: (PARA LUCY) Muito bem. A Criada vai levá-la para o quarto. Tente descansar um pouco, enquanto converso com seu pai.
A Criada vai até o sofá, pega Lucy.
Lucy olha para Drácula.
Seward: Senhorita Wells, não se esqueça, a Senhorita Lucy não deve ficar sozinha.
Criada: Sim, senhor.
Lucy troca um longo olhar com Drácula, e sai com a Criada.
Drácula: Professor Van Helsing, então o senhor veio da terra dos moinhos e das tulipas para sanar a doença nervosa dessa doce mocinha. Gostaria de desejar-lhe o mais absoluto sucesso.
Van Helsing: Muito obrigado, Conde.
Drácula: Estou sendo inoportuno, Doutor Seward? Sou pessoa solitária. Os senhores são meus únicos vizinhos, quando estou aqui em Carfax. E este caso me sensibiliza muitíssimo.
Seward: Conde, não consigo expressar minha gratidão por sua generosidade.
Van Helsing: O senhor também é um estrangeiro aqui na Inglaterra, Conde?
Drácula: Sim, mas amo a Inglaterra e a gigantesca Londres. Tudo tão diverso da minha Transilvânia, onde são tão poucas as pessoas e tão escassas as oportunidades.
Van Helsing: Oportunidades para quê?
Drácula: Para as minhas pesquisas, Professor.
Seward: Espero que não tenha se arrependido de ter comprado aquela velha ruína.
Drácula: Carfax não é uma ruína. A poeria estava um tanto espessa, é fato, mas nós estamos acostumados a poeira, lá na Transilvânia.
Harker: Pretende ficar na Inglaterra, Conde?
Drácula: Creio que sim, meu jovem. As paredes de meu castelo na Transilvânia estão rachadas, as trevas cobrem quase tudo, e sou o último da minha estirpe.
Harker: Lugarzinho solitário esse que o senhor arrumou, Carfax.
Drácula: De fato. E quando ouço os cães a uivarem por toda parte, penso em voltar para o meu Castelo Drácula com suas torres em ruínas.
Harker: Ah, cachorro uiva por lá quando tem lobo por perto, não é?
Drácula: De fato, meu jovem. E uivam por aqui também, apesar de não existirem lobos. Mas percebo que deseja ter uma conversa reservada com o pai ansioso e o grande especialista. Os senhores permitiriam que eu lesse um livro na sala?
Seward: Absolutamente, Conde.
Drácula faz uma mesura e sai.
Seward acompanha Drácula com o olhar.
Cães uivam lá fora.
Seward: Drácula e sua generosidade tão inoportuna… Mas, diga, e a minha filha?
Harker: Sim, Professor, o que há com a Lucy?
Van Helsing vai até a janela, olha para fora.
Longa pausa, antes de começar a falar.
Van Helsing: Aquele seu paciente, o fascinante Renfield, ele não tolera cheiro de acônito.
Seward: Deus meu! O que tem isto a ver com Lucy?
Van Helsing: Talvez nada.
Harker: Pelo amor de Deus, Professor, será que existe alguma coisa de sobrenatural nisso tudo?
Seward: Sobrenatural? Van Helsing!
Van Helsing: Permita-me lembrar-lhe, Seward, que as superstições de hoje são as conclusões científicas de amanhã. Hoje a ciência é capaz de transmudar em energia o eléctron, a partícula fundamental da matéria. E o que é isto senão a desmaterialização da matéria? Mas há séculos que a desmaterialização é conhecida e praticada na India. Eu mesmo vi muitas coisas em Java que…/
Seward: Não vá me dizer que você andou entulhando esse seu velho e brilhante cérebro com fantasmagoria oriental.
Van Helsing: Fantasmagoria?
Seward: Seja lá o que for. Não importa. E a minha filha?
Van Helsing: Ah, Seward! Se você não é capaz de acreditar em coisas mais inacreditáveis do que toda a fantasmagoria oriental, se você vai permanecer agarrado aos seus compêndios científicos…/ Seward, livre-se dos seus preconceitos. Esta sua cabeça dura pode custar a vida de sua filha.
Harker: Continue, Professor, continue.
Seward: Sou todo ouvidos.
Van Helsing: Devo pedir que me ouçam com serenidade. Sentem-se, por favor.
Van Helsing vai até a janela e fecha as cortinas.
Seward e Harker trocam olhares.
Em seguida, os dois se sentam e fixam o olhar em Van Helsing.
Van Helsing: Por acaso já ouviram falar das lendas da Europa Central sobre o Lobisomem, sobre os Vampiros?
Seward: Você quer dizer os fantasmas que sugam o sangue dos vivos?
Van Helsing: Se prefere chamá-los de fantasmas… Eu diria “mortos-vivos”.
Harker: O senhor está dizendo que a Mina e agora a Lucy…/
Seward: (INTERROMPENDO) Sim, eu já ouvi falar de vampiros. Li a respeito destas lendas horripilantes da Idade Média. Só que conheço você muito bem para supor…/
Van Helsing: (INTERROMPENDO) … que eu acredite nisto? Pois bem: eu acredito, sim.
Seward: (INCRÉDULO) Você está insinuando que vampiros existem e que… atacaram Mina e Lucy, aqui!?
Van Helsing: Todos os médicos da Inglaterra cairiam na gargalhada face a esta teoria. A polícia e a opinião pública deste país cairiam na gargalhada também. (ENFÁTICO) E os vampiros se aproveitam do fato de as pessoas não acreditarem neles e caem na gargalhada.
Seward: É esta a ajuda que você tem a nos oferecer?
Van Helsing: E ela não é pequena.
Harker: (PARA SEWARD) Doutor, os nossos especialistas ficaram todos zonzos com este caso. (PARA VAN HELSING) Continue, Professor.
Van Helsing: Vampiros são raros. São execrados pela natureza, as forças do bem se juntam para destrui-los, mas alguns destes monstros sobreviveram aos séculos.
Harker: (EXCITADO) Afinal, o que é um vampiro?
Van Helsing: Um vampiro, meu caro Harker, é um homem, ou uma mulher, que morreu… e não morreu. Massa de carne que vive após a morte porque suga o sangue dos vivos. Ele tem de sugar sangue, senão morre. Seu poder só dura do pôr do sol ao nascer do sol. Durante o dia, precisa repousar dentro da terra em que foi sepultado. Mas, cai a noite, e ele adquire o poder de atacar os vivos.
Seward faz gesto de descrédito.
Van Helsing: O meu amigo acha que deveria me colocar junto aos seus pacientes?
Seward: Não sei, Van Helsing. Só sei que estou perplexo.
Harker: Por que o senhor supõe que a Lucy foi atacada por esse dêmonio?
Daqui em diante, Van Helsing vai dominando os dois.
Van Helsing: Minhas suspeitas foram imediatamente despertadas pelos sintomas descritos por Doutor Seward. Anemia? O sangue de três pessoas foi injetado nas veias da Senhorita Mina, e ela morreu por falta de sangue. Para onde teria ido o sangue? O seu especialista tinha alguma explicação? Vampiros atacam pescoços. Eles deixam duas pequenas feridas brancas e vermelhas no centro.
Harker levanta-se lentamente.
Van Helsing: Seward, no telegrama, você me falou dessas duas feridas no pescoço de Mina. Um acidente com um alfinete, foi a sua explicação. Concordei, achei que sim, não sabia ao certo. Mas vim voando e o que encontro? As mesmas duas feridas no pescoço de Lucy. Teria sido outro alfinete, Doutor Seward?
Seward: Quer dizer que você construiu todo este pesadelo a partir de um alfinete?
Harker: O senhor tem outra explicação?
Seward: Eu? Não. Eu não consigo explicar por que Lucy nos escondeu as feridas no pescoço.
Van Helsing: Eu consigo.
Seward: Como? (PAUSA) Não, não, o problema de Lucy não pode ser este. Eu não acredito nisto.
Harker: Eu acredito. Essa teoria explica tudo o que ninguém conseguiu explicar. Vamos levar a Lucy para um lugar onde esse demônio não possa chegar.
Van Helsing: Ela não vai querer.
Seward: O quê!?
Van Helsing: Se forçarem, o choque pode ser fatal.
Harker: Mas por que ela não ia querer? É só nós explicarmos que a vida dela depende disso.
Van Helsing: Porque a vítima do vampiro se torna presa a ele, tanto em vida, quanto depois da morte.
Seward se levanta, incrédulo e chocado.
Harker: Quer dizer que a peste se apossou da Lucy? Quer dizer que agora a Lucy é um demônio!?
Seward: Professor, isto passa dos limites!
Van Helsing: Sim, Harker. Lucy é um demônio. Agora você vai me ajudar?
Harker: Vou… com certeza… vou… No que o senhor quiser… O que devo fazer?
Seward: Meu Deus…
Van Helsing: O trabalho é perigoso. Nossas vidas estão em jogo. Mas a vida da Senhorita Lucy também está; a alma da Senhorita Lucy também está. Precisamos esmagar este monstro!
Harker: Como?
Van Helsing: Durante o dia, esta massa morta-viva se deita, indefesa, dentro da terra em que foi sepultada.
Seward: Um cadáver?
Van Helsing: Cadáver? Talvez, mas um cadáver vivo, massa morta que vive, porque dentro dela corre o sangue dos vivos. Se conseguirmos encontrar sua cova, se conseguirmos cravar uma estaca no seu coração, isto será a destruição do vampiro. E nós é que temos de fazer isto. Em casos como este, a polícia ou qualquer outro órgão do governo são tão inúteis quanto os médicos. Que grades ou correntes podem deter uma criatura capaz de se transformar num morcego ou num lobo?
Harker: Lobo! Doutor Seward, os cachorros, aqui, eles uivavam! Lá na Rússia, quando tinha lobo por perto, eles uivavam assim mesmo. Eu contei para o senhor. E morcego, Renfield falou em morcego.
Seward: E daí?
Van Helsing: O seu amigo Renfield não gosta do cheiro de acônito.
Seward: E daí?
Van Helsing: Vampiro não gosta do cheiro de acônito.
Harker: O senhor suspeita daquele doido?
Van Helsing: Não suspeito de ninguém e suspeito de todo mundo. Este Conde Drácula, quem é?
Seward: Drácula? Para falar a verdade, sabemos muito pouco sobre ele.
Harker: Quando estive na Transilvânia, ouvi falar do Castelo Drácula. Muitos séculos atrás, foi residência do famoso Voivode Drácula, que lutou contra os turcos.
Van Helsing: Vou mandar uns telegramas, investigando. Não, este demônio tem de ser inglês. Ou, pelo menos, tem de ter morrido aqui. Sua caverna tem de estar perto daqui, para que ele possa voltar para lá antes do sol nascer. (PARA SEWARD) Ah, meu caro amigo, eu só possuo umas tantas crendices antigas para enfrentar este monstro cuja força é a de vinte homens, talvez acrescida da sabedoria e da astúcia acumuladas durante séculos.
Harker: Isso tudo é um pesadelo. Mas pode contar comigo, Professor.
Van Helsing: E o senhor, Doutor Seward?
Seward: Para mim, isso tudo é um disparate. Mas, como todos os outros fracassaram, pode contar comigo. Por enquanto…
Van Helsing: (SEVERO) Preciso de aliados, não de céticos.
Seward: Está bem. Faça o que achar melhor.
Van Helsing: Agora sim. Traga a sua filha para cá.
Seward: Para quê?
Van Helsing: Para armar uma cilada. A Senhorita Lucy será a isca.
Harker: Santo Deus! Não, isso não!
Van Helsing: Não existe outra saída. Suspeito que este demônio já saiba que pretendo proteger a Senhorita Lucy e isto o coloca na defensiva. Mas, no momento em que ela estiver sozinha, com certeza ele virá até aqui, à procura de mais sangue.
Harker: Não, não, eu proibo o senhor de fazer isso.
Seward: A filha é minha e eu consinto. Provaremos ao Professor que ele está enganado.
Harker: O senhor só consente porque não acredita. Mas eu acredito. Pelo amor de Deus, Doutor! Primeiro foi a gargalhada daquele doido, o comedor de inseto. Agora o senhor vai e põe a Lucy de isca!
Van Helsing: (DURO) Ou os senhores acatam as minhas decisões, ou eu não posso fazer nada! Preciso saber a forma sob a qual este demônio aparece; preciso saber como destrui-lo. Doutor Seward, traga a sua filha para cá.
Seward de depara com o olhar de Harker. Ele fita Harker.
Curta pausa.
Com hesitação, Harker sai.
Seward segue-o.
Van Helsing permanece pensativo por alguns instantes.
Em seguida, olha pela sala, observando a posição das portas, dos móveis, etc.
Van Helsing apaga as luzes.
O aposento é iluminado apenas pelo fogo da lareira.
Van Helisng vai até a luz do fogo, olha para o sofá, anda até a porta e volta-se.
Em seguida, ele olha para o sofá, satisfeito com o fato de a luz do fogo ser bastante para se ver tudo o que possa acontecer ali.
Van Helisng abre as cortinas.
De repente, a porta dupla se abre com violência.
Van Helsing tem um grande sobressalto.
Entra o Enfermeiro.
Enfermeiro: O Doutor Seward, cadê ele?
Van Helsing: O que o senhor deseja com o Doutor Seward?
Enfermeiro: O papamosca fugiu de novo.
Van Helsing: Como?
Enfermeiro: Por tudo que tem de mais sagrado: foi pela janela. A porta inda está fechada e eu estava no corredor o tempo todo. Pular da janela é tombo de mais de dez metros, até a laje de pedra. Quer saber? Esse zureta não é homem humano, não. Esse zureta é uma lagartixa do inferno, isso sim!
Van Helsing: (ORDENA) Por enquanto, não diga nada ao Doutor Seward. Nada, entendeu?
O Enfermeiro faz que sim.
Van Helsing: Muito bem. Pode ir.
O Enfermeiro sai.
Van Helsing torna a ligar as luzes.
Entra Lucy, apoiada em Harker e Seward.
Lucy: Ah…!
Seward: Não precisa ter medo, Lucy.
Eles levam Lucy até o sofá.
Van Helsing: Deite-se aqui, minha querida.
Lucy: Mas, Doutor…/
Van Helsing: Você confia em mim, não confia?
Ela faz que sim.
Eles colocam Lucy no sofá.
Van Helsing: Quero que você fique deitada aqui só por uns minutos.
Lucy: Eu estou com muito medo.
Van Helsing: Relaxe, relaxe… Não pense em nada… Durma…
Lucy: Dormir me dá medo. Quando eu durmo…/
Harker segura-lhe a mão.
Van Helsing acomoda Lucy no sofá.
Van Helsing: Eu sei, eu sei, minha querida. Eu vou curar você, com a ajuda de Deus.
Lucy: Mas… papai…
Seward: Faça o que o Professor mandar. Vamos, Harker.
Van Helsing leva Seward até a porta.
Seward sai.
Harker deixa-se ficar.
Van Helsing: Harker, vamos.
Ao sair com Harker, Van Helsing apaga as luzes.
Tudo quieto.
Lucy fecha os olhos.
Ouve-se o uivo de um lobo, à distância, seguido de latidos de cães.
O fogo da lareira diminui.
A mão de Drácula surge por detrás do sofá. Em seguida, o seu rosto.
Lucy grita e desmaia.
Ouvem-se vozes nas coxias.
Van Helsing entra, seguido de Seward e Harker.
Van Helsing acende as luzes e um morcego voa janela afora.
Harker: Lucy! Lucy!
Seward: Professor, o que houve?
Van Helsing: Os senhores viram?
Seward: Deus meu, o que foi isto?
Harker: Lucy! Lucy! Fala comigo!
Van Helsing: Harker, leve-a para o quarto, depressa.
Harker carrega Lucy até a porta.
Drácula entra. Seu olhar percorre a sala, fixando-se em cada uma das pessoas.
Drácula: (CORTÊS) Nossa paciente está melhor, eu quero crer.
Das coxias, à direita, Renfield solta uma gargalhada selvagem.
Van Helsing, Seward e Harker se voltam.
Renfield solta outra gargalhada.
CAI O PANO
ATO II
O quarto de vestir de Lucy.
A noite seguinte.
Ao fundo, à direita, uma janela fechada.
As cortinas estão abertas.
Perto da janela, algumas cadeiras, em torno de uma mesinha com objetos de toalete.
Ao fundo, à esquerda, um sofá encostado à parede.
Um espelho pendurado na parede.
Uma mesinha com vaso de flores, perto do sofá.
Duas portas. A da direita dá para o quarto de dormir, a da esquerda, para o corredor.
Um arco na parede da esquerda.
Cães uivam.
A cortina se abre e a Criada entra, vinda do quarto de dormir.
Ela olha para a janela, por cima de seu ombro esquerdo.
Ela dá uns passos à frente e olha para trás, por cima do ombro direito.
Ela vai até o sofá e pega o jornal.
Ela se senta no sofá e lê o jornal.
Quando a Criada vira uma página, o Enfermeiro bate na porta do corredor.
A Criada leva um susto.
Criada: Quem está aí!?
O Enfermeiro entra e sorri para ela.
Enfermeiro: Desculpa, moça. Será que a senhora viu, por acaso, o zureta de estimação, o xodó do diretor? Ele fugiu de novo.
A Criada não larga o jornal.
Criada: Que que ele estaria fazendo aqui?
O Enfermeiro faz que não sabe.
Criada: Olha, ou você consegue controlar o Renfield, ou você vai é perder o emprego. Virgem Maria, ele foge toda santa noite!
A Criada vai até a porta do quarto de dormir.
Enfermeiro: Ei, moça…/
Criada: A Senhorita Lucy pediu o jornal.
Enfermeiro: Não vai embora, não.
A Criada se volta, sorri para o Enfermeiro.
Criada: Eu volto já, já.
A Criada sai.
O Enfermeiro procura fora da janela.
Em seguida, procura debaixo do sofá.
A Criada surge à porta.
Criada: Achou o zureta?
Enfermeiro: (LEVANTA-SE, ASSUSTADO) Não.
A Criada entra.
Enfermeiro: Vou te contar uma coisa, moça. Esse emprego está deixando é eu zureta.
Criada: Deixando você zureta? E eu? E eu com esses cachorros uivando nos meus ouvidos toda santa noite, e mais condes estrangeiros brotando pelo chão afora, mais a Senhorita Lucy se desmilinguindo desse jeito, mais todo mundo esvaziando as veias para dar sangue para ela, mais esse Sherlock Holmes das Holandas furando tudo quanto é coisa e gente com aqueles olhos de raio xis, e ainda por cima você a me deixar o Renfield solto por aí? E eu!?
Enfermeiro: Eu não deixei ele solto, não. Foi logo ainda agora, agorinha mesmo. Escutei um barulho que nem uivo de lobo. Eu vou e abro a porta dele com essa minha chave aqui e o que que eu vejo? Eu vejo as pernas dele saindo janela a fora que nem que ele fosse descer muro abaixo. Ele não é homem humano, não. Não é, não.
Criada: Descer muro abaixo?
Enfermeiro: Sei que ninguém vai acreditar, mas sei que vi com esses olhos aqui, e sei que ‘garrei o pé dele com essa mão aqui, ‘garrei mesmo.
Criada: Descer muro abaixo, cabeça pendurada, que nem morcego?
Enfermeiro: Gozado a senhora falar ‘morcego’. Que na hora que eu ‘garrei ele, um morcego grande que nem o demônio entrou voando janela adentro e bateu na minha cara.
Criada: Eu sei de onde veio esse morcego.
Enfermeiro: (ASSUSTADO) A senhora sabe? E de onde é que foi que ele veio?
Criada: Da tua cachola.
A Criada vai até a cabeceira do sofá e arruma as almofadas.
Em seguida, ela vai até a penteadeira.
Enfermeiro: Não, moça, isso é a mais verdadeira das verdades, estou te falando. E lá se foi o morcego e lá se foi o zureta. E aí eu ouvi ele dar uma gargalhada. E que gargalhada! Cruz credo, o diretor vai soltar os cachorros em cima de mim por causa disso.
Criada: Você conta para o diretor e ele vai é te trancar junto com o zureta.
Enfermeiro: Meu Deus!
Criada: Vai mesmo.
Enfermeiro: A senhora, moça, a senhora é moça esperta, eu sempre achei. E eu não tenho coragem de contar para ele o que eu vi nem o que eu ouvi. Mas esse cara, o zureta, ele não faz mal a ninguém, não.
Criada: Não faz mal nem a uma mosca, não é?
Enfermeiro: Mosca? Não, não, ele não. Ele só come elas. Ele prefere comer mosca do que bife de filé. Agora, o que ele faz com aranha é um crime!
Criada: Estou achando que daqui a pouquinho alguém vai aparecer aqui atrás de você. De você e das tuas aranhas.
Enfermeiro: Estou falando, moça: esse lugar aqui é todo cheio de mistério.
O Enfermeiro olha para fora da janela.
Enfermeiro: É um tombo e tanto até lá embaixo.
O Enfermeiro se volta para dentro.
Enfermeiro: Medo de ladrão, a gente não precisa ter, não é não? Não tem jeito nem maneira de ladrão chegar até aqui. A não ser voando.
O Enfermeiro examina em volta.
Enfermeiro: A senhora não fica meio, assim, solitária, nas suas noites de folga?
Criada: Ultimamente tenho ficado, sim.
A Criada olha pela janela.
Criada: Nunca tinha reparado nas sombras daquelas árvores.
Enfermeiro: Bom, se a senhora precisar de um acompanhante pra passear pelo…/
Criada: E eu vou lá andar por aí com você metido nesse uniforme! As pessoas vão achar que eu sou uma das tuas malucas.
Enfermeiro: Então eu vou a paisana, pode deixar.
O Enfermeiro abraça a Criada.
Enfermeiro: Amanhã de noite…/
A Criada se livra dele.
Criada: Virgem, você é apressadinho, hem?
Enfermeiro: Faz tempo que eu estou de olho em você.
Criada: Melhor ficar de olho no zureta, ou então pode começar a olhar outro emprego.
Enfermeiro: Você…
O Enfermeiro tenta beijá-la.
Eles lutam.
Criada: Ai! Me larga! Jesus!
A Criada dá-lhe um tapa.
O Enfermeiro recua.
Criada: Atrevido! Abusado! (INDICA A PORTA) Sai! Passa fora! Desinfeta daqui! Vá agarrar o teu zureta!
Enfermeiro: Está bem. Mas eu tenho um negocinho que vai chamar ele para cá.
Criada: Hum…
O Enfermeiro vasculha o bolso, enquanto vai até a Criada.
O Enfermeiro tira do bolso, segurando pelo rabo, um rato branco.
Enfermeiro: Aqui, ó.
A Criada grita, sobe na cadeira, ergue a saia.
Criada: Tira isso daqui! Socorro! Tira isso já daqui! Doutor diretor! Doutor diretor!
Enfermeiro: (PARA O RATO) Não te falei, Sêneca? Tem lugar que a gente não é bem tratado.
Se fazendo de ofendido, o Enfermeiro vai saindo.
Enfermeiro: E tem gente que não tem nenhum senso de humor.
O Enfermeiro sai pela esquerda.
Seward entra, apressado.
Seward: O que foi?
A Criada baixa a saia.
Criada: Doutor! Desculpe. Mas foi ele, o Enfermeiro. Ele me assustou com, com aquele bicho.
Seward: Que bicho!?
Criada: Um rato, um rato branco.
Seward: (ALIVIADO) Você não deve gritar, aqui, agora.
Criada: O senhor me desculpe, mas aquele bicho nojento…/
Seward: Assim você assusta a Senhorita Lucy. Ela já está muito perturbada com uma notícia que saiu no jornal.
Criada: Ah, o senhor está falando da Fera de Hampstead, a moça, toda de branco, que distribui chocolate para as criancinhas?
Seward: (IMPACIENTE) Seja lá o que for, eu não quero que a Senhorita Lucy seja perturbada.
Seward volta para o quarto de dormir.
Cães uivam.
As luzes se apagam.
A Criada grita.
Foco de luz verde sobre Drácula, de pé, no meio do aposento.
A Criada quer gritar e não consegue.
Drácula: (APAZIGUADOR) Peço-lhe as minhas mais sinceras desculpas. Meus passos, não os tenho pesados. E estes tapetes são macios.
Criada: Pois não. Sim, senhor. Como foi que o senhor entrou?
Drácula: A porta deste aposento estava só encostada. Por esta razão, não bati.
Criada: Pois não.
Drácula: Como está a Senhorita Lucy em sua prostração nervosa?
Criada: Creio que está melhor, sim, senhor.
Drácula: Ah, apraz-me sabê-lo. Percebo que a tensão da doença da Senhorita Lucy está esgotando inclusive a senhora.
Criada: Como é que o senhor sabe?
Drácula está senhor da situação.
Criada: Não, não. É só uma dorzinha de cabeça.
Drácula: (SEDUTOR) Posso sanar esta dorzinha.
Criada: Não estou entendendo, senhor.
Drácula: Esta dor cessa através de simples sugestão.
A Criada ergue o braço para se proteger.
Criada: Desculpe, mas se o senhor está falando de hipnose, eu prefiro ficar com dor de cabeça.
Drácula: Sua concepção de hipnose parece ser a de um disforme sacudir dos braços e infindáveis passes de mãos. Possuo artifício diverso.
Enquanto fala, Drácula faz pequenos gestos com a mão esquerda.
A Criada olha para ele, fascinada.
Colocando o polegar esquerdo sobre a testa da moça, Drácula fita-a dentro dos olhos.
A Criada faz um pequeno esforço para remover-lhe a mão. Em seguida, cede.
Drácula passa a falar de maneira imperativa.
Drácula: O que entra, pode ser retirado. A dor entrou, a dor é retirada, a dor se foi. A sua vontade também se foi, a minha vontade entrou. Você ouve a minha voz?
Criada: (MURMURA) Eu ouço a sua voz.
Drácula: Ao despertar, você se esquecerá das coisas que eu disse. Hoje você recebeu ordens do Doutor Seward, que você dormisse com a Senhorita todas as noites, no mesmo aposento, que ela sofre de sonhos assustadores. Isto aconteceu?
Criada: (MURMURA) Aconteceu.
Drácula: O horror e a morte ameaçam a Senhorita Lucy. Mas eu vou salvá-la. Introduziu-se nesta casa uma pessoa cujos desígnios se chocam com os meus. Vou destroçá-la. Você receberá as minhas ordens. A minha voz, você ouve?
Criada: A sua voz, eu ouço.
Drácula: Ouça e obedeça. Agora e para sempre soarão em seus tímpanos os meus sussurros sem som. Você se submeterá a quaisquer transmissões que sairem de meu cérebro, assim, sem hesitação. Se eu desejo, você faz. O meu sinal, muito cedo você irá recebê-lo. Ouça e obedeça.
O foco verde se apaga lentamente.
Drácula sai pela janela.
As luzes se acendem.
Os cães uivam lá fora.
A Criada olha para a janela.
Van Helsing entra pela esquerda.
A Criada tem um sobressalto quando a porta se fecha.
Van Helsing parece abatido e fraco. Ele carrega um embrulho amarrado com barbante.
Van Helsing: Você deixou a sua patroa sozinha?
Criada: Sim, senhor… Não, senhor! O Doutor Seward está com ela.
O corpo da Criada oscila ligeiramente.
Van Helsing: O que há com você, minha filha?
Criada: Nada, não, senhor.
Van Helsing: Você acaba de sofrer um choque.
Criada: Não, não foi nada… Foi tudo muito de repente… Não foi nada…
A Criada olha para a janela.
Criada: Eu não lembro de nada… Foi isso.
Van Helsing: O Senhor Harker acaba de chegar. Peça ao Doutor Seward para vir até aqui e fique com a Senhorita Lucy.
Criada: Sim, senhor. Ela está muito preocupada.
Van Helsing: Com o quê?
Criada: Com o que saiu no jornal. Aquela coisa horrível, o Caso Hampstead.
Van Helsing: Meu Deus, ela viu!
Criada: Licença…
A Criada vai para o quarto de dormir.
Harker entra pela esquerda.
Harker: (PREOCUPADO) Alguma novidade?
Van Helsing faz que não.
Harker fecha a porta.
Harker: Quando fico longe daqui, mesmo por umas poucas horas, eu tenho medo do que me espera, quando voltar.
Van Helsing: E você tem razões de sobra para isto.
Harker: Sem o senhor, eu nem sei… Sem o senhor, Professor, eu já teria perdido a esperança.
Van Helsing coloca o embrulho na mesa sob o espelho.
Harker: Hoje de manhã, quando o senhor abriu as suas veias para trazer a Lucy de volta para a vida…/
Van Helsing: Era o mínimo que eu podia fazer. Por minha falta de previsão, fui o responsável por este ataque.
Harker: Não diga isso.
Van Helsing: A Criada passou a noite com ela. E, ainda assim, o acônito caiu da cama.
Harker: Ela estava tão fraca, tão palida, as duas feridas abertas de novo.
Van Helsing: (INDICA O EMBRULHO) Consegui um antídoto mais forte. Mas nossa missão não é defender: temos de atacar. O que descobriu em Londres?
Harker: Muitas coisas. Mas só Deus sabe o que elas significam, ou para o que servem.
Harker se senta.
Van Helsing: Eu também recebi umas informações das quais não consigo tirar nenhuma conclusão.
Seward entra.
Seward: Ah, John, você está de volta.
Van Helsing: Precisamos reunir os dados que recolhemos hoje.
Van Helsing tira do bolso um telegrama de várias páginas.
Van Helsing: Um colega meu de Bucareste me telegrafou, dizendo que a familia Drácula… (LÊ) “A familia Drácula foi extinta há cinco séculos.”
Seward: Ele é um falso conde?
Van Helsing: (LÊ) “O castelo da família Drácula, na Transilvânia, não passa de uma ruína abandonada.” Como você disse, Harker, ele foi construído pelo terrível Voivode Drácula, que teria feito um pacto com as forças do mal. Ele foi o último de sua estirpe. Mas os camponeses sempre acreditaram, durante todos estes séculos, que o Castelo Drácula era habitado por um vampiro.
Harker: Então ele deve ser…/
Van Helsing balança a cabeça e coloca o telegrama no bolso.
Van Helsing: Meus amigos, eu estou totalmente desnorteado.
Seward: Mas isto confirma as suas suspeitas. Eu tinha as minhas dúvidas, até que vi aquele monstro pairando sobre Lucy.
Van Helsing: Um vampiro da Transilvânia não pode estar na Inglaterra.
Seward: Por quê?
Van Helsing: Porque, como já disse, um vampiro vive dentro de um cadáver e, durante o dia, este cadáver precisa repousar dentro da terra na qual foi sepultado.
Harker: (LEVANTA-SE) Dentro da terra?
Van Helsing: Um vampiro precisa voltar para sua sepultura antes do sol nascer.
Harker: (EXCITADO) Dia seis de março – descobri isso hoje – um avião de três motores chegou ao Aeroporto de Croydon. Drácula veio nele.
Seward: Seis de março? Três dias antes da doença atacar Mina.
Harker: Fez um vôo sem escalas desde Sekely, na Transilvânia. Decolou logo depois do sol se pôr; aterrissou aqui duas horas antes do sol nascer. Trazia apenas o Conde Drácula. E seis caixões.
Van Helsing: Você descobriu o que havia nesses caixões?
Harker: Ele disse para o pessoal da alfândega que queria ver se umas plantas da Transilvânia cresciam noutro clima.
Van Helsing: E o que havia dentro dos caixões?
Harker: Terra, Professor, só havia terra!
Van Helsing: Oh, Deus, claro! O Rei, senhores, o Rei dos Vampiros está entre nós!
Van Helsing anda, exaltado, entre Seward e Harker.
Van Helsing: O terrível Voivode Drácula! A encarnação do terrível Voivode Drácula! Satã, com toda a sua arrogância e desprezo, ele usa o próprio nome! Quem haveria de suspeitar? Foram quinhentos anos, entocado em seu castelo, escondido na cova dentro da qual tinha de dormir durante o dia. Cinco séculos se passaram, o avião foi inventado, sua hora chegou. Agora ele pode atravessar a Europa numa mesma noite. Enche seis caixões com a terra na qual tinha de dormir, decola do castelo logo depois do sol se pôr e, antes do nascer do sol, ele está na Inglaterra. Correu um enorme risco, sem dúvida. Mas ele conseguiu! Londres, com suas milhões de vítimas, seu “grande momento”, como ele mesmo disse.
Seward: Deus meu, proteja a minha Lucy!
Harker: (PARA VAN HELSING) Estive com o corretor que vendeu Carfax, aqui, e descobri o endereço de quatro casas que ele alugou em quatro pontos diferentes de Londres.
Van Helsing: Um caixão em cada casa… Se conseguirmos encontrar os seis, poderemos destrui-lo.
Seward: Como?
Van Helsing: Com água benta. Se a terra de cada caixão for santificada com água benta, ela rejeitará aquele espírito do mal.
Harker: Precisamos encontrar esses caixões, abrir um por um. E aí, Professor, em nome de Deus, eu exijo que seja minha a mão que vai cravar a estaca naquele coração demoníaco, que seja eu quem vai mandar aquela alma hedionda para o inferno!
Seward gesticula para que falem mais baixo.
Seward: Lucy pode ouvir!
Van Helsing: Seu plano é perigoso demais, Harker.
Seward: Por quê? Lucy continua sendo atacada. Vamos cruzar os braços enquanto minha filha abandona a vida?
Harker: Nunca! Nem por um segundo!
Van Helsing: Calma. Tenham calma, meus amigos. Este homem é mais do que um simples mortal. Sua astúcia foi destilada pelos séculos. E se nós conseguirmos encontrar cinco caixões, se conseguirmos purificá-los, mas não conseguirmos encontrar o sexto?
Seward: Qual é o problema?
Van Helsing: Ele irá enterrar-se neste seu último refúgio, onde não poderá ser encontrado jamais. E ele dormirá até que estejamos todos mortos.
Harker: Aí a Lucy vai estar salva.
Van Helsing: Enquanto viver, sim. Mas ela recebeu o beijo de Drácula, ela é uma possuída de Drácula. Quando morrer, ela ficará como ele: um espírito podre da noite. O vampiro não tem pressa, meus caros amigos. Só existe uma única maneira de salvar Lucy: é acabar com Drácula!
Seward: Você tem razão, Van Helsing. Como sempre.
Van Helsing: Temos um trunfo: durante o dia ele é um cadáver confinado. Se não deixarmos pistas, ele nada saberá das nossas investigações diurnas.
Harker: Santo Deus, essa demora!
Van Helsing: Primeiro temos de ir a todas as casas e encontrar todos os seis caixões, sem que ele perceba. E só então agiremos.
Seward: Mas e os empregados?
Van Helsing: Todas as casas estarão vazias. O vampiro é um caçador solitário.
Ouve-se uma gargalhada histérica detrás das cortinas da janela.
Seward corre para lá.
Seward: Renfield!
Seward segura Renfield pelo braço e atira-o para dentro do aposento.
Renfield ri, matreiro.
Van Helsing: Ele estava aqui este tempo todo.
Seward: Você escutou a nossa conversa?
Renfield: Escutei, escutei, escutei.
Renfield indica Van Helsing a Seward e Harker.
Renfield: Ele falou. Escuta ele, faz o que ele falou. Só tem essa saída; ela só tem essa saída.
Renfield vai até Van Helsing.
Renfield: Eu só tenho essa saída.
Renfield se ajoelha diante de Van Helsing.
Renfield: (IMPLORA) Salva a minha alma! Salva a minha alma! Eu sou fraco, o senhor é forte; eu sou doido, o senhor não é; o senhor é bom, ele é mau.
Van Helsing: (IMPRESSIONADO) Vou salvá-lo, Renfield. Mas você precisa me contar o que sabe. Tudo.
Renfield se levanta.
Renfield: O que eu sei? O que que eu sei? Eu não sei nada. (BATE NA CABEÇA) Eu sou doido, o Doutor Seward sabe. O que eu falo não paga ser escutado.
Seward: Não podemos perder tempo com este rapaz. Vou ordenar que o levem embora.
Seward vai até a sineta.
Renfield: (PARA SEWARD) E eu te achava sabido! Débil mental! O mundo todo está todo doido! Você precisa de ajuda, você precisa dos doidos: só doido entende de doideira!
Renfield ri, matreiro.
Renfield: Mas, absolutamente, queiram desculpar, lamento informar, não vou ajudar.
Renfield volta-se para a janela.
Renfield: Doido que sabe das coisas escuta quem é forte.
Van Helsing vai até Renfield.
Van Helsing: (FURIOSO) Quem? Quem é forte?
Renfield: Dizer quem? Falar nomes, assim, entre amigos? Professor, por favor, queira desculpar. Ficar do seu lado, que que eu ganho com isso? O Doutor aí me tranca lá o dia todo. Eu fico bonzinho e eu ganho açúcar pras minhas moscas. (INDICA A JANELA) Eu fico do lado dele e eu ganho…/
Van Helsing: Sangue! Sangue é vida, não é, Renfield? (PUXANDO-O) Que pacto você fez com o Conde Drácula?
Renfield: (APAVORADO) Drácula!? Eu? (DESAFIADOR) Eu nunca escutei falar nesse nome.
Van Helsing: É mentira!
Renfield: Mentira… verdade… é tudo fumaça pra esconder a verdade das coisas… (SOLTA-SE) Isto posto, assim sendo, ou não, sua acusação não é acusação, sua ofensa não é ofensa. E eu, por conseguinte, absolutamente não me sinto ofendido; e o senhor, por conseguinte, está desculpado.
Renfield vai até Seward.
Renfield: Me manda embora! Já falei e o senhor nada! Falei, aconteceu, e o senhor nada. Não falo mais nada, não falo mais nada! Morrer no horror, eu não vou. Não vou trair o…/
Van Helsing: Se falar, o Doutor Seward manda você embora.
Seward: Sim, Renfield.
Renfield faz que não se importa.
Seward: Façamos outro trato: eu recupero a sua alma em troca do que você sabe.
Renfield: Deus não vai maltratar alma de doido. Deus sabe: demônio é forte, doido é fraco. Mas me manda embora, Doutor!
Seward: Se você falar.
Van Helsing: Fale, Renfield.
Um tempo.
Renfield olha para Seward, Van Helsing, Harker e novamente para Seward.
E Renfield fala como um homem normal.
Renfield: Está bem, vou falar, vou contar tudo. Senhores, o Conde Drácula é…/
Um morcego entra pela janela e sai.
Renfield corre até a janela, a gritar, de braços abertos.
Renfield: Mestre! Meu mestre! Eu não falei, eu não falei nada! Eu não contei nada! Eu sou seu servo, eu sou seu escravo!
Seward e Harker correm até a janela.
Harker: É um morcego gigantesco, voando em círculos.
Seward: Pronto, foi embora.
Harker: O que é aquilo ali embaixo, correndo?
Seward: Parece um cachorro enorme.
Van Helsing: Tem certeza de que é um cachorro?
Seward: Pode ser um lobo.
Harker: Ah, bobagem. Estamos nervosos e ficamos vendo coisa.
Van Helsing: E você, Renfield, o que ia nos dizer?
Renfield: Nada, lhufas, xongas, patavina e necas de pitibiriba.
Lucy vem do quarto com o jornal.
Lucy: Professor, o senhor viu o que está aqui?
Van Helsing: Senhorita Lucy, queira entregar este jornal para…/
Renfield vai até ela.
Renfield: A senhora é que é a Senhorita Lucy?
Lucy: Sou.
Seward aproxima-se dela e faz sinal para que Harker toque a sineta.
Renfield: Em nome do Santo Pai e de tudo o que tem de sagrado, vai embora daqui! Já!
Lucy se volta para ele.
Van Helsing faz sinal para que os outros silenciem.
Lucy: Esta é a minha casa. Não vou sair daqui por nada desse mundo.
Renfield: (COMO HOMEM NORMAL) ‘Por nada desse mundo’… É, é tarde demais… Eu sou um débil mental! Vou pagar caro por isso e isso não vai adiantar nada. É tarde demais… (COM PIEDADE) A Senhorita é tão moça, tão bonita, tão pura. E eu, tem vez que eu sou bom e eu preciso falar: ou a Senhorita vai embora, ou a sua alma vai pagar por isso. A Senhorita está possuída pelo…/
O morcego voa janela adentro e sai.
Renfield corre até a janela e grita.
Seward vai até o sofá.
Harker corre até Lucy, para protegê-la.
Renfield: O Mestre está aqui!
Renfield se põe de joelhos.
O Enfermeiro surge à porta.
Seward: Butterworth!
Seward ajuda Renfield a se levantar.
O Enfermeiro agarra Renfield e leva-o em direção à porta.
Renfield: (À PORTA) Adeus, Senhorita Lucy. Já que não quer escutar o meu aviso, rogo a Deus que eu nunca mais veja o seu rosto.
Renfield sai com o Enfermeiro.
Lucy: (HISTÉRICA) O que ele quis dizer, Professor? Por que ele disse essas coisas todas? O que essas coisas todas querem dizer?
Lucy vai para o quarto de dormir.
Harker a acompanha.
Seward: Que horror! Este débil mental fez pacto com o demônio. E Lucy perturbada com alguma coisa no jornal.
Van Helsing: Vá até lá e tire o jornal dela.
Seward: Seja o que for, ela lê e lê e relê.
Van Helsing: Vá até lá, tire o jornal dela, e volte para cá.
Van Helsing coloca a mão sobre a testa, como se fosse desmaiar.
Seward: Cuidado, não abuse da sua resistência, Van Helsing. Nós dependemos de você. Vá se deitar. Você fez uma transfusão. Na sua idade…/
Van Helsing: Nunca estive tão bem em toda a minha vida.
Seward: (ENQUANTO SAI) Nunca esteve tão bem, não é? Que tal você se olhar no espelho?
Van Helsing, a sós, demonstra exaustão.
Lentamente, ele atravessa o aposento e contempla seu rosto esgotado no espelho.
Drácula entra pela janela, furtivo, com o traje de noite e a capa de antes.
Ele caminha lentamente em direção às costas de Van Helsing.
Van Helsing, ainda ao espelho, toca no rosto e balança a cabeça.
Van Helsing: Demônio.
Drácula: Não…
Van Helsing volta-se rapidamente para Drácula e torna a olhar para o espelho.
Drácula: (IRÔNICO) … o senhor não está tão cansado assim.
Van Helsing olha para o espelho e, em seguida, para Drácula.
Van Helsing se controla com dificuldade.
Van Helsing: Não ouvi o senhor entrar, Conde Drácula.
Drácula: Disseram-me repetidas vezes que meus passos, não os tenho pesados.
Van Helsing: Eu estava olhando no espelho. Este aposento está todo refletido no espelho, mas o espelho não reflete o senhor.
Van Helsing volta-se para o espelho.
Tomado de ódio, Drácula, pega o pequeno vaso de flores da mesinha e espatifa-o contra o espelho. Pedaços do espelho e do vaso espalham-se pelo chão.
Van Helsing recua e olha para Drácula com pavor e repugnância.
Drácula: (RECOBRANDO A POSTURA) Queira aceitar as minhas desculpas. Sinto um certo desapreço por espelhos: eles são fetiches da vaidade humana.
Com vaidade, Drácula ajeita sua roupa.
Drácula: Como está passando a nossa doce paciente?
Van Helsing: O diagnóstico é problemático.
Drácula: Sim, receio que sim.
Van Helsing: O senhor estaria interessado em ver o que receitei para ela?
Drácula: Todas as coisas que o senhor receite para a Senhorita Lucy me interessam muitíssimo.
Van Helsing vai até a mesa, pegar o embrulho.
Drácula caminha na direção de Van Helsing, que volta com o embrulho.
Van Helsing se desvia dele, vai até a mesinha à direita do arco, põe-se de frente, abre um canivete e, ao cortar o barbante do embrulho, ele corta o dedo.
Van Helsing solta uma leve exclamação de dor e ergue o dedo.
Drácula tem um sobressalto diante do dedo ensanguentado de Van Helsing.
Em seguida, controlando-se com dificuldade, ele se vira de modo a não ver o sangue.
Van Helsing fita-o por uns instantes, vai até ele e exibe o dedo ensanguentado.
Van Helsing: A prescrição é bastante incomum.
Drácula mostra os dentes e tenta, num bote, morder o dedo de Van Helsing.
Van Helsing afasta-se rapidamente e ata um lenço em torno do dedo.
De novo, Drácula recobra a postura com dificuldade.
Drácula: É superficial, o corte. Eu percebi.
Van Helsing: É o suficiente.
Van Helsing abre o embrulho.
Van Helsing: Aqui está o meu remédio para a Senhorita Lucy.
Drácula se aproxima de Van Helsing.
Van Helsing rapidamente leva o acônito ao rosto de Drácula.
Drácula dá um salto para trás, se protege com a capa, o rosto transfigurado de dor e ódio.
Van Helsing recoloca o acônito no embrulho.
Van Helsing: Não lhe agrada o cheiro?
Drácula: O senhor é um sábio, Professor. E sequer atravessou uma só existência.
Van Helsing: Generosidade sua, Conde.
Drácula: Mas o senhor não é sábio o suficiente para regressar ao seu país, agora que já descobriu o que desejava.
Van Helsing: (SECO) Prefiro ficar. Apesar de um certo louco aqui ter tentado me matar.
Drácula: Loucos são pessoas difíceis. Não nos obedecem. Tentam até trair os seus benfeitores. Mas quando os servos não se submetem às ordens, o Mestre age sozinho.
Van Helsing: Eu previa isto.
Drácula fixa os olhos em Van Helsing.
Drácula: Cinco séculos se passaram, Professor, e todos os que se opuseram aos meus desígnios, todos sucumbiram, alguns sob circunstâncias assaz desagradáveis.
Ainda fitando Van Helsing, Drácula ergue lentamente o braço e profere com ênfase:
Drácula: Aqui, venha; venha, aqui.
Van Helsing empalidece, cambaleia e, lentamente, segue em direção a Drácula.
Drácula fita Van Helsing.
Van Helsing tenta recobrar o controle sobre si, dá mais um passo na direção de Drácula, pára, coloca a mão na testa.
Drácula fixa os olhos nos olhos de Van Helsing.
Van Helsing recobra o controle e afasta o olhar.
Drácula: Sim, sua força de vontade é intensa. Neste caso, eu vou até o senhor.
Drácula vai em direção a Van Helsing.
Van Helsing retira do bolso junto ao coração um pequeno estojo de veludo.
Drácula pára.
Drácula: Mais remédios, Professor?
Van Helsing: Sim, Conde. E mais eficaz do que acônito.
Drácula: Tem certeza?
Drácula vai para morder o pescoço de Van Helsing.
Van Helsing segura o estojo na direção de Drácula.
Drácula se transfigura de pavor e foge de Van Helsing.
Van Helsing persegue Drácula.
Drácula: Ah! Sacrilégio!
Van Helsing: A igreja me concedeu dispensa.
Van Helsing interrompe-lhe o caminho da porta e acossa-o em direção à janela.
Drácula, a rosnar, lívido de ódio, move-se para a janela, de costas.
Fora da janela, ele abre a capa na forma de um morcego, solta uma longa gargalhada de deboche e vai.
Van Helsing quase desmaia.
Ele coloca o estojo de volta no bolso, faz o sinal da cruz e enxuga o suor da testa.
Ouve-se um tiro.
Van Helsing vai até a janela.
Um morcego voa, quase batendo no seu rosto.
Van Helsing cambaleia para trás.
Seward entra correndo, com o jornal na mão.
Seward: Deus meu, Van Helsing! O que foi isto?
Seward joga o jornal sobre a mesa.
Van Helsing: Um tiro de revólver. Que alívio! Pelo menos isso é humano!
Seward: Quem quebrou o espelho?
Van Helsing: Eu.
Harker entra.
Harker: Desculpe. Assustei alguém? Morcego do inferno… Ele estava sobrevoando esse lado da casa. Não aguentei. Eu tive que atirar.
Seward: Você acertou?
Harker: Bom, eu…
Van Helsing: Não, meu caro, ainda não inventaram a bala capaz de atingir aquele morcego. Minhas armas são mais eficazes.
Harker: Do que o senhor está falando?
Van Helsing: De Drácula. Ele esteve aqui.
Seward: Deus meu!
Harker: Como foi que ele entrou?
Van Helsing: Você pergunta como o Rei dos Vampiros entra ou sai, durante a noite, durante as horas de seu reinado? Ele entra e sai como o vento, meu caro; assim: fuf.
Harker: O que ele veio fazer aqui?
Van Helsing: Ele veio me matar. Mas eu trago comigo um poder maior do que o dele.
Harker: Que poder?
Van Helsing: Eu previ este ataque. Obtive uma dispensa do Cardeal. Trago comigo…
Van Helsing faz o sinal da cruz.
Van Helsing: … a hóstia sagrada.
Harker também faz o sinal da cruz.
Van Helsing: Ele veio e eu tirei a minha prova, se é que precisava provar alguma coisa. O espelho não reflete este morto-vivo, este ser sem sombra. Vejam, cortei o dedo. Ao ver o sangue, ele olhou para longe; ao ver a hostia sagrada, ele voou para longe.
Seward: Lucy não pode saber disto.
Van Helsing: (COM TERNURA) Sua filha já sabe. Ela sabe mais do que você imagina.
Harker: Como? Se soubesse, ela teria me contado.
Van Helsing: À medida em que estes ataques se sucedem, ela vai ficando mais e mais sob o poder dele. Eles estão ligados por uma união mística.
Seward solta um suspiro.
Van Helsing: Sim, é duro, mas você precisa encarar os fatos. É até possivel que ele já seja capaz de ler os pensamentos dela. Por esta razão, ela não deve ser informada de que nós sabemos dos caixões de terra: Drácula pode saber tudo o que ela sabe.
Lucy entra.
Seward: Lucy, de pacto com o demônio!? Não, isto não é possível.
Lucy vai até a mesa e pega o jornal.
Van Helsing: Não, não, Senhorita Lucy, por favor.
Harker: Lucy, o que há nesse jornal que tanto perturba você?
Lucy dá o jornal para Harker.
Lucy: Lê, John.
Harker pega o jornal.
Van Helsing faz menção de impedi-lo.
Van Helsing: Não, Harker.
Lucy: Lê, John!
Van Helsing se detém.
Lucy senta-se no sofá.
Todos prestam atenção.
Harker: (LÊ) “A Fera de Hampstead. Em Hampstead, uma misteriosa e bela mulher repetiu os seus ataques a crianças, cometidos após o pôr do sol. Os depoimentos de três meninas de menos de dez anos de idade coincidem nos detalhes mais estarrecedores. Todas as meninas afirmaram que uma linda mulher vestida de branco lhes deu chocolates e, em seguida, as atraiu até local ermo, onde as beijou, acariciou e mordeu levemente o pescoço.”
Harker olha para Sewrad e Lucy.
Lucy: Lê mais.
Harker: (LÊ) “Os ferimentos são superficiais. As crianças não apresentavam outros sinais de maus-tratos, bem como não pareciam atemorizadas. Uma das meninas chegou a manifestar, junto a sua mãe, o desejo de poder novamente encontrar a bela mulher.”
Harker volta-se para Lucy.
Seward toma o jornal de Harker.
Van Helsing: Tudo tão rápido… tudo tão rápido…
Harker e Seward trocam um olhar.
Seward: Você sabe o que está havendo, Lucy?
Lucy faz que sim.
Harker: O Professor Van Helsing também sabe, Lucy. E ele sabe como proteger você.
Lucy: É tarde demais.
Van Helsing: Não, Senhorita Lucy, não é tarde demais.
Seward: Estas criancinhas, coitadas, tão inocentes…
Van Helsing: (PARA SEWARD) Você supõe que o Conde Drácula…/
Lucy: (ESTREMECE) Não, esse nome não!
Van Helsing: Você supõe que o Lobisomem tenha cometido isto também?
Seward: É claro que sim! Sob a forma de uma mulher. Quem mais poderia ser?
Van Helsing: É pior, muito pior.
Harker: Pior? Como?
Lucy está imóvel, o rosto congelado de pavor.
Van Helsing: A Senhorita Lucy sabe.
Lucy: A mulher de branco é a Mina.
Harker: Mina? Mas ela morreu, Lucy.
Lucy: Mina virou uma lâmia. Ela está possuída pelo… Mestre.
Seward: Deus meu, tende piedade de nós!
Seward joga o jornal sobre a cadeira.
Van Helsing: Querida Lucy, não vou lhe perguntar como descobriu. A partir desta noite, nenhuma criancinha vai se encontrar com a mulher de branco. Ela vai permanecer em repouso… na sepultura onde você a deixou. E sua alma, livre deste horror, permanecerá com Deus.
Lucy: Como é que o senhor vai fazer isso?
Van Helsing: Não faça perguntas.
Lucy agarra-se ao braço de Van Helsing.
Lucy: Professor, se o senhor é capaz de salvar a alma da Mina, depois que ela morreu, será que o senhor, agora, é capaz de salvar a minha alma?
Harker: Oh, Lucy!
Harker senta-se no sofá e passa o braço em torno dela.
Van Helsing segura a mão de Lucy.
Van Helsing: Eu vou salvar você. Em nome de Deus, eu juro. E Deus me mandou um aviso, para que esta noite, neste quarto…/
Lucy: Então promete uma coisa. Tudo o que o senhor sabe, tudo o que o senhor pretende fazer, não me conta, não me conta nada.
Lucy se volta para Harker.
Lucy: Nem que eu implore que você me conte, jura, jura que não vai contar nada. Agora, enquanto eu ainda pertenço a você, enquanto eu ainda me pertenço, diz: eu juro.
Harker: Eu juro.
Harker abraça-a e tenta beijá-la.
Lucy empurra-o, horrorizada.
Lucy: Não, John, não! Não me beija! Nem que eu implore, jura que não vai mais me beijar.
Harker hesita.
Lucy: Jura!
Harker: Eu juro.
Van Helsing: Querida Lucy, de hoje em diante um de nós permanecerá acordado a noite toda, aqui, neste quarto, do lado do seu. Aquela porta vai permanecer aberta.
Lucy: (MURMURA) O senhor é tão bom.
Van Helsing: A Criada vai permanecer com você.
Harker conversa com Lucy, no sofá.
Van Helsing pega um punhado de acônito.
Van Helsing: Doutor, esfregue isto na janela daquele quarto. Assim, veja.
Van Helsing esfrega os batentes da janela.
Van Helsing: Esfregue nos batentes e principalmente na parte superior da fechadura.
Seward observa Van Helsing esfregar e, num movimento rápido, pega o acônito de Van Helsing e sai pelo arco.
Van Helsing se volta, vai até a mesa e pega um colar de acônito.
Van Helsing: Veja, fiz este colar. Use-o no pescoço esta noite. Enquanto estiver com ele, você não terá… aqueles sonhos.
Van Helsing pendura o acônito em torno do pescoço de Lucy. Em seguida, ele retira do bolso um crucifixo preso num cordão e pendura-o também em torno do pescoço dela.
Van Helsing: Jure que não vai tirá-los.
Lucy: Eu prometo.
Van Helsing: Prometer não basta. Jure, jure sobre a cruz.
Lucy: Eu juro!
Lucy beija a cruz.
Van Helsing vai até a porta.
Harker: Professor, a hóstia, ela é mais poderosa do que esse acônito.
Van Helsing: Sem dúvida.
Harker: Então deixa a hóstia com ela. Ela vai ficar invulnerável.
Van Helsing: Não. A hóstia não pode ficar junto ao pecado.
Gritos vêm da esquerda.
Van Helsing: O que é isto?
O Enfermeiro entra pela esquerda.
A Criada vem do quarto.
Seward entra pelo arco.
Enfermeiro: É o Renfield.
Seward: Mas por que ele ainda não está trancado?
Enfermeiro: Ele trancou pelo lado de dentro, Doutor. Ele ‘garrou u’a maluca, ele ‘garrou ela pela goela.
O Enfermeiro sai.
Lucy se levanta.
Van Helsing: Ah! Agora é sangue humano! (RÁPIDO) Seward! Harker! Venham!
Seward: Por que eu não botei este beócio no olho da rua!?
A Criada vai até Lucy.
Van Helsing e Seward saem.
Harker: (BALBUCIA) Não é nada de mais, Lucy. Eu volto já, já.
Harker sai atrás de Van Helsing e Seward.
Lucy: John… (PARA A CRIADA) Não vá embora.
Criada: Claro que não, Senhorita Lucy. E só briga de doido. O senhor Harker volta já, já.
A Criada coloca Lucy no sofá.
Lucy perde os sentidos.
A Criada pega sais aromatizados.
Criada: Respire fundo, Senhorita Lucy.
O rosto de Drácula surge por trás da tapeçaria na parede do fundo e desaparece em seguida.
A Criada vai até a direita, recebe um recado e volta.
Ela recoloca os sais na penteadeira.
Ela vai até Lucy.
Criada: (SIBILA COMO DRÁCULA) Essas flores dos infernos fizeram a Senhorita desfalecer.
A Criada retira o crucifixo e o acônito do pescoço de Lucy, e joga-os no chão.
Ela vai até a direita, recebe outro recado e leva as mãos à cabeça.
Ela volta-se lentamente, olha para a janela e vai até o sofá.
Criada: Está tudo tão abafado…
A Criada dirige-se para a janela.
Lucy solta um gemido.
A Criada destrava o trinco e abre a janela.
Uma névoa entra.
A Criada se afasta e recebe outro recado.
Uma pausa.
A Criada apaga as luzes e vai para o quarto ao lado.
O palco está escuro.
Lá fora, uivos, próximos e distantes, de cães apavorados.
Desce uma cortina de gaze e uma luz verde se acende em resistência sobre o sofá e o centro do palco.
No centro, percebemos Drácula, de pé, de costas para a platéia, os braços abertos como um enorme morcego.
À medida que ele se move à frente, Lucy se levanta lentamente do sofá e cai em seus braços.
Eles se beijam demoradamente.
Em seguida, ela se deixa cair sobre o braço direito de Drácula.
Drácula desnuda-lhe o pescoço e começa a mordê-lo.
CAI O PANO
ATO III
CENA I
A biblioteca.
Trinta e duas horas depois, pouco antes do amanhecer.
Uma estaca e um martelo estão sobre a mesa.
Os cães uivam.
As cortinas se movem como se alguém estivesse entrando pela janela.
A cadeira atrás da mesa, virada de costas, gira até ficar de frente para a platéia.
Após uma pausa, Van Helsing entra, acompanhado de Seward.
Van Helsing anda compassadamente de um lado para o outro.
Seward senta-se à mesa.
As portas centrais abrem-se de súbito e entra o Enfermeiro.
Enfermeiro: Professor, esse meu emprego aqui, o senhor pode dar ele para quem quiser ficar com ele.
Seward: O que houve?
Enfermeiro: Eu vi, com esses olhos aqui. E o que eu vi está visto. Vou ‘garrar o primeiro trem e nem quero nem paga das minhas contas.
Van Helsing: Onde está Renfield?
Enfermeiro: Já que o senhor pergunta, eu respondo para o senhor que ele deve estar fazendo u’a visitinha aos cafundós do inferno.
Seward: Você deixou que ele escapasse mais uma vez?
Enfermeiro: Escuta aqui, Doutor. Já que eu, a bem dizer, pedi as contas, agora eu não tenho mais que prestar conta de coisa nenhuma para nenhum dos senhores. Homem nenhum dá conta de coisa que ele não dá conta. E ponto final.
Seward se afunda na cadeira, a cabeça entre as mãos.
Van Helsing: Você vai abandonar o Doutor Seward exatamente agora que ele precisa de toda ajuda possível?
Enfermeiro: Professor, eu não sou homem de correr do batente. Também não sou homem de aturar esculacho por coisa que eu não dou conta – que ninguém dá.
Van Helsing: Você tem razão. Não existe ferrolho nem grade capaz de manter preso o Renfield.
Seward olha para ele.
Enfermeiro: Ah, agora o senhor falou! Ontem, eu meti ele na camisa de força e passei o dia todo chumbando grade na janela. Agora, eu vou lá e dou com grade aberta para tudo quanto é lado, tudo torto que nem vela derretida. E ele se escafedeu.
Van Helsing: Tente encontrá-lo.
Enfermeiro: ‘Encontrá-lo’ como, professor!? É fácil falar ‘encontrá-lo’, ‘encontrá-lo’… Olha pra mim: eu tenho cara de lagartixa? Eu dou conta de caçar ele muro acima, muro abaixo? Olha pra mim. Olhou bem? Olhou? Agora dá o meu emprego pra uma lagartixa!
O Enfermeiro sai.
Van Helsing: O demônio zomba de nós. Pouco depois de descobrir o que sabemos e fizemos, ele vem até aqui e arrasta consigo aquele pobre rapaz.
Seward: (APÁTICO) O que pode o vampiro querer com o Renfield?
Van Helsing: Renfield está sendo treinado para unir-se ao Rei dos Vampiros depois de morrer. Precisamos evitar que isto aconteça.
Seward: Como, meu Deus!? (PAUSA) Meu Deus… Van Helsing, se nós formos derrotados, Deus não existe.
Van Helsing: Não podemos nos desesperar.
Seward: O demônio é capaz de prever tudo!
Van Helsing: Quando invadimos Carfax e encontramos o caixão de terra, pensei que fosse o fim do vampiro. Depois, sempre que encontrávamos um caixão em cada uma das suas quatro casas, eu pensava que o vampiro tivesse chegado ao fim. Quando levantei a tampa do quinto caixão, tive a certeza de que ali estava ele, sem escapatória.
Seward: (AMARGO) Todos vazios.
Van Helsing: Cinco caixões, todos vazios.
Seward: Ele só trouxe seis, no avião. Só falta mais um.
Van Helsing: Só mais um, escondido em lugar que jamais descobriremos. E agora ele está alertado.
Seward: Fomos derrotados.
A cadeira gira aré ficar de costas para a platéia.
As cortinas esvoaçam para fora da janela.
Seward consulta o seu relógio de pulso.
Seward: Só falta meia hora para o sol nascer.
Seward se levanta e vai até a lareira.
Seward: Pobre John, velando Lucy há nove horas. Tão logo o sol nasça, ela estará a salvo e ele poderá dormir um pouco. Se é que alguém pode dormir aqui nesta casa.
Van Helsing: Se alguém vai dormir, eu não sei. Sei que a Senhorita Lucy vai, tão logo o sol nasça.
Seward: Mais um horror?
Van Helsing: Você não percebeu que ela permanece acordada a noite toda e dorme durante o dia?
Seward: Isto está ligado à… transformação?
Van Helsing: Claro que sim. E, às vezes, a transformação que brota de seu rosto…
Seward: Não, pelo amor de Deus, eu não aguento!
Van Helsing: Pelo seu amor por ela, você tem de aguentar.
Seward: Mas como ele conseguiu, se ela tinha o acônito e a cruz pendurados no pescoço!? Hipnose transmitida pelo demônio?
Van Helsing: Exatamente. Ele deve ter compelido a Criada a tirar o acônito e a cruz e a abrir a janela. Eu devia ter previsto.
Seward: Não se culpe. O demônio é mais astuto do que nós.
Seward se senta no sofá.
Seward: Lucy parece ter melhorado. Antes deste último ataque, ela sempre estava exausta. Mas ontem, quando o sol se pôs e ela acordou, depois de dormir o dia todo…
Van Helsing: … o sangue havia retornado as suas faces.
Seward: Sim, graças a Deus…
Van Helsing: E de onde veio este sangue!?
Seward: O que é que você quer dizer com isto? Mais outro horror?
A porta da esquerda range e se abre um palmo.
Uma mão comprida e magra surge para dentro do aposento.
Seward percebe-a e tem um sobressalto. Ele se levanta.
Van Helsing vira-se rapidamente.
A porta se abre lentamente e Renfield se esgueira para dentro.
Renfield: Um, dois: dois homens. Um, dois, três, quatro, cinco e meia: cinco e meia da manhã. Dois homens, que não são doidos nem nada, zanzando que nem zumbi, às cinco e meia da manhã. Doideira…
Renfield vai até a janela.
Van Helsing: (A SEWARD) Esta criatura semi-humana pode nos ser útil. (CHAMA) Renfield.
Renfield: Um, um quer me pegar! Ele, ele quer me matar!
Van Helsing: Colabore conosco, Renfield, e nós o salvaremos.
Renfield: Você? Você, um hominho mirrado, vai agora botar essa cabeça aí para brigar com a cabeça dele? Ha! Ha! Você está é lelé! É, você, holandês cabeçudo, mais, dois, esse psiquiatra débil mental aí e, três, aquele fedelho fedendo a cueiro… Nem cem soldados, nem mil policias, nem milhões de Londres, ninguém pode com o Mestre!
Van Helsing: Deus pode!
Renfield: Ha! Ha! Ha! Deus fez o mal. Por que que Deus fez o mal, se Deus é bom? Ha! Ha! Essa é boa! Responde, vai!
Seward: Como foi que você escapou pelas barras de ferro?
Renfield: Doido é bicho parrudo, Doutor.
Van Helsing: Renfield, nós sabemos que você não entortou as barras sozinho.
Renfield: (NORMAL) Não, os senhores sabem, eu sei. Eu queria que elas ficassem ali, direitinho; queria que elas prendessem ele do lado de fora. Ele veio e entortou tudo. Aí ele me chamou e aí eu tive que ir. (VOLTA A INSANIDADE) O Mestre, ele está danado. Falou que me dava vida pra toda a vida; que me dava bicho vivo, mil bichos, dos grandes, mais grandes que mosca e aranha; que me dava sangue pra beber, e sangue, e mais sangue. Obedecer a ele eu obedeço, mas que nem ele, eu não quero ficar, não. Eu sei muito bem que sou doido, sei muito bem que sou bicho mau também: eu como vidas, e tal. Mas são só umas vidinhas de inseto. Que nem ele, eu não sou, não. Não como vida de gente.
Das coxias, Lucy solta uma risada e diz “Ah, John!”.
Lucy entra com Harker.
Lucy está mudada. Suas faces estão rosadas, ela parece mais saudável, cheia de vitalidade.
Harker e ela se detêm, surpresos, ao avistarem Renfield.
Renfield: Foi pela Senhorita. Eu traí ele pela Senhorita.
Lucy sorri.
Renfield: Minha boca falou que eu ia servir ao demo, mas eu não servi ele, não. Não gosto de mulher que não tem sangue dentro das veias.
Lucy solta uma risada.
Renfield: Mas eu vim e avisei vocês e fiz ele ficar com raiva. E agora… (HISTÉRICO) … ele vai vir e vai me matar!
Lucy solta outra risada.
Renfield: E aí eu não vou ter mais coisa viva pra comer; aí eu não tenho mais sangue, sangue, sangue!
Renfield se lança ao pescoço de Lucy.
Harker agarra-o.
Van Helsing também.
Seward vem e toma o lugar de Harker.
Renfield grita e se debate violentamente.
Seward e Van Helsing levam-no para fora.
Harker: Lucy, meu amor, você não deve ligar para esse doido, coitado.
Lucy: (DANDO RISADA) Eu não. Ele me diverte.
Lucy vai até o sofá e se senta.
Harker: Diverte como? Um capeta.
Lucy ri.
Harker: Graças a Deus o sol já vai nascer.
Lucy pára de rir.
Lucy: O sol nasce, a vida murcha. Detesto o sol. Como é que alguém pode gostar da luz?
Harker: É a luz do dia! É a luz da vida!
Lucy: É nas trevas da noite que existe vida de verdade, é de noite que existe o gozo do amor.
Harker se volta para ela, hesita.
Lucy: Vem, vem para mim, John, John, meu John.
Harker vem, se senta ao lado dela.
Harker: Lucy, eu estou tão feliz por você estar melhor.
Lucy: Nunca estive tão bem, tão cheia de saúde. Aquela pobre coitada, pálida, abatida não existe mais. John, não sei o que fez você me amar, não tinha por quê. Mas agora tem.
Harker: Eu adoro você.
Lucy: Então me conta uma coisa. Se você me ama, me conta…/
Harker se afasta um pouco.
Lucy: Não, não foge de mim.
Harker: Você me fez jurar que eu não ia contar nada.
Lucy: Ah, mas eu desobrigo você desse juramento. Pronto. O que é que você, papai e aquele professor maluco estavam fazendo o dia todo?
Harker: Não posso contar. Eu jurei.
Lucy: Você diz que me ama e não confia em mim!
Harker: A você eu confio minha vida, minha alma…
Lucy: Então prova. O que é que vocês estavam fazendo lá em Carfax? Para que aquele martelo e aquela estaca medonha toda de ferro?
Harker balança a cabeça.
Lucy fica com raiva.
Harker coloca a cabeça entre as mãos, como se chorasse.
Lucy: Você não vai achar que eu estou perguntando isso porque…/ Eu só quero saber é se você me ama de verdade.
Harker se afasta dela.
Lucy: Quer dizer que você esconde os seus planos de mim, com medo que eu passe adiante, não é? Vocês três são uns bobocas. Ele consegue descobrir o que quiser. Sozinho. Ele sabe tudo o que vocês estão fazendo, ele sabe tudo o que vocês estão pensando. Ele sabe de tudo.
Harker: Lucy!
Harker coloca a cabeça sobre a perna de Lucy e soluça.
Lucy ergue as mãos como se fosse estrangulá-lo.
Em seguida, ela muda de atitude e acaricia-lhe a cabeça.
Lucy: Querido, desculpe. Vou afogar essas lágrimas nos meus beijos.
Lucy começa a beijá-lo.
Harker levanta-se subitamente e se afasta.
Harker: Não, você não pode me beijar! Você me fez jurar que eu não ia deixar você me beijar.
Lucy: John, querido, você não percebe que eu pedi isso porque te amo muito. Eu tinha medo do que pudesse acontecer. Você sempre disse que eu era fria, mas dentro das minhas veias tem sangue, sangue quente, meu querido John. E eu sabia que se beijasse você…/ Mas agora já passou: vem. (FIRME) Será que eu preciso repetir?
Harker: Eu não entendo você.
Lucy: (VAI ATÉ ELE) Eu amo você, eu quero você.
Lucy estende os braços para ele.
Lucy: Vem, meu amor, vem. Eu quero você, eu quero você para mim.
Harker pára de resistir e vai para ela, arrebatado.
Harker: Lucy, meu amor!
Harker toma Lucy nos braços.
Lucy segura-lhe a cabeça e curva-a para trás. Lenta e triunfantemente, ela se curva sobre ele, sua boca passeia sobre a dele.
Cães uivam lá fora.
Num movimento rápido, Lucy curva a cabeça de John ainda mais, e sua boca se dirige ao pecoço dele.
Aa portas centrais se abrem.
Van Helsing entra correndo, segurando o crucifixo.
Van Helsing: Harker! Cuidado!
Harker se afasta de Lucy.
Van Helsing estende o braço com o crucifixo para os dois.
Repugnância e ódio transfiguram o rosto de Lucy, Como um animal, ela rosna e recua.
Van Helsing persegue-a, apontando-lhe o crucifixo.
Lucy desmaia sobre o sofá.
Van Helsing: (PARA HARKER) Eu lhe avisei.
Van Helsing ajoelha-se ao lado de Lucy e fricciona-lhe as têmporas.
Pouco a pouco, Lucy volta a si.
Ela olha em seu redor, depara-se com a cruz, segura-a e beija-a com fervor.
Van Helsing: (ARDENTEMENTE) Deus misericordioso, eu Lhe dou graças!
Um tempo.
Harker vai até o sofá.
Lucy: Não chegue perto de mim, John. Eu estou possuída pelo pecado.
Harker: (SENTA-SE DO LADO DELA) Meu amor, para mim você é a pureza em pessoa.
Van Helsing: Sim, ela é pura. E o pecado que dela se apossou, dela será extirpado.
Lucy: (COM VOZ FRACA) O senhor disse que podia salvar a alma da Mina.
Van Helsing: E a alma de Mina subiu aos céus.
Lucy: (MURMURA) Como?
Seward entra, alarmado, e vai até eles.
Van Helsing, com um gesto, pede silêncio.
Van Helsing: Sim, agora eu posso lhe contar. Entrei no túmulo da Mina, abri o caixão e lá estava ela, mergulhada no mais profundo dos sonos. Não, ela não estava morta, não estava completamente morta. As faces estavam rosadas. No canto da boca, havia uma gotícula de sangue, como um pequeno rubi. Finquei uma estaca no meio de seu coração. Um grito, um espasmo e, em seguida, o manto da paz cobriu-lhe o rosto. Com a ajuda de Deus, fiz com que ela deixasse de ser uma morta-viva. Agora, Mina está completamente morta.
Lucy: Se eu morrer, prometam, jurem que vão fazer o mesmo com o meu corpo.
Harker: Eu juro.
Seward: Eu também.
Van Helsing: O mesmo será feito.
Lucy: Meu amor, meu pai, meu querido amigo, vocês juraram salvar a minha alma. Pronto, agora estou quite com a vida. Não posso continuar a viver e virar… Vocês sabem o quê.
Van Helsing: Não, não, Senhorita Lucy, por tudo o que existe de sagrado, nem pense nisto. O suicídio a colocaria para sempre sob o poder dele.
Lucy: Eu não posso virar uma coisa dos infernos.
Harker: (LEVANTA-SE) Esse demônio que desgraçou a sua vida será encontrado por nós. Minha mão devolverá aquela alma do mal para a fornalha do inferno.
Lucy: Sim, ele deve ser destruído. Se vocês conseguirem. Mas nada de ódio, nada de vingança. Ele deve ser destruído com piedade. Essa pobre alma que tanto mal espalhou por tanta gente, ela precisa mais das nossas preces do que qualquer outra alma.
Harker: Você não pode pedir que eu tenha piedade.
Lucy: Talvez eu também venha a precisar das suas preces e da sua piedade.
Van Helsing: Senhorita Lucy, agora que está de posse de si mesma, por favor, ajude-me.
Van Helsing segura a mão dela.
Lucy: Ajudar como? Não, não, não diga nada. O senhor não deve me dizer nada.
Van Helsing: Todas as vezes em que aquele rosto branco e aqueles olhos vermelhos vieram até aqui, a Senhorita ficou pálida, exaurida, depois. Mas da última vez…/
Lucy: Da última vez, ele veio até aqui; ele disse que eu era a noiva dele; ele disse que ia me marcar, ia me marcar para ele, para sempre.
Van Helsing: E depois?
Lucy: Depois…/
Lucy se levanta e vai até a porta.
Lucy: Não, não consigo. Eu não posso contar, eu não consigo.
Van Helsing: Consegue sim!
Seward: Conte, Lucy.
Lucy: Uma veia, com a unha. Ele abriu uma de suas veias, cortou com a unha… Colocou minha boca sobre o corte. Disse que era um sacramento místico. Eu fui obrigada, ele me obrigou a beber… Eu não consigo, eu não posso continuar.
Lucy, histérica, sai correndo.
Seward sai atrás dela.
Van Helsing: Eu lhe avisei, meu caro. Corri para cá quando ouvi o uivo dos cães.
Harker: Os cachorros! O Lobisomem está por aqui.
Van Helsing: Ele está atrás de Renfield.
Harker: Santo Deus, temos que fazer alguma coisa!
Van Helsing: E tem de ser já. Vou deixar Renfield aqui, como deixei a Senhorita Lucy. Se o demônio aparecer, nós três vamos barrar as duas portas e a janela.
Harker vai até a janela. Ele ri, incrédulo.
Harker: Barrar? Barrar o demônio?
Van Helsing: Sim, barrar o demônio. Cada um de nós levara consigo um objeto sagrado.
Harker: E depois?
Van Helsing: Depois será o terror. Não sabemos da extensão dos seus poderes. Mas disto eu sei…
Van Helsing consulta o relógio.
Van Helsing: Faltam oito minutos para o sol nascer; faltam oito minutos para as forças do mal fenecerem. Só lhe resta um único caixão para refugiar-se. Se conseguirmos mantê-lo aqui até o amanhecer, isto será o seu fim. O martelo e a estaca estão prontos.
Cães uivam.
Harker sai pela janela.
Van Helsing: Ele chegou! Agora!
Van Helsing corre até a janela, agarra Renfield e arrasta-o para dentro.
Renfield: Não, não, não!
Van Helsing: Sim! Isto pode salvar-lhe a vida e a alma.
Renfield: Não, não, sozinho, não! Não me deixa sozinho!
Van Helsing empurra-o para frente.
Renfield cai.
Van Helsing apaga as luzes e sai, fechando a porta atrás de si.
Renfield ergue-se lentamente, olha à sua volta e uiva de pavor.
Ele se agacha junto ao fogo da lareira, o mais longe possível da janela e das portas.
Pela porta central, sob uma fraca luz azul, surge Drácula.
Ele usa os trajes de noite e a mesma capa de antes.
O fogo da lareira projeta uma luz vermelha sobre ele.
Renfield está de costas para a platéia.
Renfield: Mestre! Eu não fiz nada. Eu não contei nada! Eu sou todo seu. Sou seu escravo, sou seu servo, sou seu cachorro!
Renfield uiva de pavor.
Lentamente, Drácula se aproxima de Renfield.
Renfield: Mestre, não me mata! Pelo amor de Deus, me deixa viver! Me castiga, me tortura, eu mereço. Mas me deixa viver! Não posso me encontrar com Deus, assim, com todas essas vidas berrando dentro da minha cabeça, com todo esse sangue escorrendo das minhas mãos.
Drácula: (COM A CALMA DO SEPULCRO) Eu lhe disse. Mas parece que você se esqueceu. Sim, você será meu, na hora da sua morte. Você gozará, para sempre, da posse sobre as vidas dos corpos e das almas dos animais e das pessoas.
Renfield: Sim, Mestre, sim, eu quero sangue, eu quero as vidas. Mas vida de gente, eu não quero, não.
Drácula: Você me traiu. Você tentou obstar meu pacto com Lucy, minha Lucy, a minha possuída, minha.
Renfield: Misericórdia, misericórdia, não me mata, misericórdia!
Muito lentamente, Drácula ergue o braço direito em direção a Renfield.
Renfield grita, desta vez por dor física.
Como um passarinho diante de uma cobra, Renfield se arrasta em direção a Drácula, que permanece de pé, imóvel.
Quando Renfield chega aos pés de Drácula, este, num movimento rápido, se curva, agarra-o pelo pescoço e ergue-o, a mão sufocando os gritos do Renfield.
Aa portas centrais se abrem de súbito.
Van Helsing acende as luzes.
Drácula larga Renfield, que cai no canto do sofá e lá permanece durante o que se segue.
Drácula estremece diante de Van Helsing.
Van Helsing retira do bolso interno o estojo com a hóstia e estende-o na direção de Drácula.
Drácula recua e gira rapidamente em direção à janela.
Harker surge da janela, na mão, um crucifixo voltado para Drácula.
Drácula recua.
Seward entra, segurando o acônito.
Os três homens permanecem de pé, com seus braços direitos apontados para Drácula.
Drácula gira, vai até a lareira, volta-se e fita-os.
Drácula: Prezados amigos, lastimo não ter estado presente para recebê-los quando visitaram os meus aposentos.
Van Helsing: (CONSULTA O SEU RELÓGIO) Quatro minutos.
Drácula: (CONSULTA O SEU RELÓGIO) Quatro minutos, Professor.
Van Helsing: Sua vida na morte chegou ao fim.
Harker vai em direção a Drácula.
Drácula: Tenho a impressão de que não, Professor.
Harker: Mais quatro minutos e você vai estar no inferno. E, depois, nem mil séculos vão fazer com que você fique nem um segundo mais perto do fim da sua purgação.
Van Helsing: Não diga isto, Harker. A Senhorita Lucy nos pediu preces e piedade. (PARA DRÁCULA) Faça as pazes com Deus, morto-vivo. Não somos seus juízes; não sabemos como esta maldição se apossou de você.
Drácula: Débeis mentais! Com hóstias, crucifixos e acônitos, acham que com isto são capazes de me destruir, a mim, o Rei dos Vampiros? Vocês vão ver. Vocês conspurcaram cinco dos meus caixões, mas e o sexto?
Van Helsing: Você não pode chegar até ele. Assuma a sua verdadeira forma de Lobisomem, se quiser. Seus dentes podem nos estraçalhar, mas cada um de nós jurou detê-lo aqui… (CONSULTA O RELÓGIO) … por mais dois minutos e meio. Então, você desmaiará e nós lhe daremos um fim.
Drácula: Vocês vão deter a mim!? Débeis mentais! Ouçam estas palavras que soarão para sempre dentro dos seus tímpanos, que torturarão os seus cérebros mesmo dentro da tumba! Eu vou dormir em meu caixão pelos próximos cem anos. Isto você conseguiu, Van Helsing. Mas vou despertar daqui a cem anos. Vou tirar minha noiva de sua tumba, vou trazê-la para junto de mim, a minha Lucy, a minha Rainha.
Harker e Seward aproximam-se dele.
Drácula: Possuo outras noivas, de outras eras, que me aguardam em minhas cavernas, na Transilvânia. Mas, acima de todas elas, estará Lucy.
Harker: Mesmo que você escape, nós sabemos como salvar a alma da Lucy.
Drácula: Ah, a estaca. Sim, mas só se ela morrer durante o dia. Farei com que ela morra durante a noite. Quando morrer, ela virá para um dos meus caixões e lá ela aguardará o seu Mestre. Para fazer com ela o que você fez com a minha Mina, Van Helsing, você precisará encontrar o corpo dela. E isto você não conseguirá.
Harker: Então, ela vai morrer de dia.
Drácula: E quem vai matar Lucy? Você? Um camundongo cheio de medo?
Seward: Não responda, John, ele está desesperado. Ele quer se vingar, quer nos atormentar, depois.
Van Helsing: (CONSULTA O RELÓGIO) Trinta segundos.
Eles fecham o cerco.
Drácula: Eu lhe sou grato por lembrar-me da hora.
Van Helsing: Harker, abra as cortinas.
Harker abre as cortinas.
Lá fora, a luz da manhã que se aproxima.
Van Helsing: Ali está o leste. O sol vai nascer ali.
Drácula se cobre com a capa.
Seward olha para a janela, deixando o acônito sobre a mesa.
Seward: As nuvens se colorem…
Harker: Manhã divina…
Harker deixa o crucifixo sobre a mesa.
Van Helsing consulta o relógio.
Drácula vai para o fundo do palco e dá as costas para os três homens.
Drácula: A que tarefa agradável o senhor se reservou, meu caro Harker.
Van Helsing: Dez segundos. Estejam prontos para quando ele desmaiar.
Seward caminha até a esquerda de Drácula, para segurar-lhe a capa.
Harker segura a capa, à direita de Drácula.
Harker: O sol! A estaca, Professor, a estaca! Segura ele, Doutor.
Seward: Ele está seguro.
Drácula solta uma gargalhada debochada e desaparece, deixando os dois homens a segurar uma capa vazia.
Um raio explode defronte à lareira.
Harker recua para a esquerda baixa e deixa cair, em frente da mesa, a capa vazia.
Os três homens olham em volta.
Harker: Subiu pela chaminé, como um morcego. Lembram o que ele disse?
Seward: Deus não vai permitir.
Harker: E agora, o que vamos fazer, Doutor Van Helsing?
Van Helsing examina o prostrado Renfield.
Em seguida, ele cruza o palco e faz sinal para que Harker e Seward se aproximem.
Van Helsing: (SUSSURRA) Vamos fazer com que Renfield nos mostre!
Seward: Como?
Van Helsing: Teríamos coragem de deixar Renfield no mundo, para tornar-se escravo depois de morrer?
Seward: Não podemos cometer assassinato!
Harker: Se o senhor não pode, Doutor, eu posso!
Van Helsing: (PARA SEWARD) Vá até o seu consultório e traga uma droga indolor.
Desconfiado, Renfield se esgueira até a estante.
Ele olha pelo aposento e para a estante.
Renfield: Eles vão me matar, Mestre! Me salva! Eu sou seu!
O painel da estante se abre.
Renfield sai por ali.
O painel se fecha.
Van Helsing: Seward, ele nos mostrou o caminho! Onde vai dar esta passagem?
Seward: Nunca soube que ela existia.
Harker corre até a mesa, pega a estaca e o martelo.
Eles correm em direção à estante.
Van Helsing: Só aquele diabo sabe como abri-la. Temos de atravessar de qualquer maneira. Harker, depressa, o martelo!
BLACKOUT / CAI O PANO
CENA II
Uma caverna. A escuridão é total.
Um caixão à direita do centro e atrás de uma cortina de gaze.
A luz de uma tocha é vista descendo lentamente as escadas, ao centro.
Voz de Van Helsing: Por amor a Deus, tome cuidado, Seward.
Voz de Seward: Estas escadas não acabam nunca!
Voz de Van Helsing: Que Deus nos proteja.
Voz de Seward: Harker!
Voz de Van Helsing: Ele foi buscar uma lanterna.
Voz de Seward: Pronto, cheguei ao final da escada.
Voz de Van Helsing: Cuidado, estou bem atrás de você.
A tocha vasculha lentamente a caverna.
Voz de Seward: Que lugar é este?
Voz de Van Helsing: Parece uma caverna pré-histórica.
Grito abafado de Sewrad.
A tocha cai.
Voz de Van Helsing: O que houve? Onde está você, Seward?
Voz de Seward: Aqui. Uma ratazana bateu no meu pé.
Uma luz desce as escadas.
Surge Harker, com uma lanterna acesa.
Ele chega ao chão e ilumina parcialmente a caverna. Ele traz a estaca e o martelo.
Harker: Onde os senhores estão? Que lugar é esse?
Van Helsing: Não estamos vendo nada.
Harker se move com a lanterna.
Harker: Isso aqui fede a morcego.
Van Helsing: De fato, é um odor animal, semelhante a toca de lobo.
Harker: Então é isso!
Seward: Isto aqui está completamente vazio.
Harker: (À ESQUERDA, COM A LANTERNA) Aqui tem outra passagem.
Van Helsing: (INDO PARA A ESQUERDA) Era disto que eu suspeitava. Deve dar em Carfax. O sexto caixão está aqui.
Harker: E dentro está o demônio.
Seward: Como podem saber?
Seward reacende a tocha, cuja luz se derrama sobre Renfield, prostrado no chão.
Ao ser iluminado, Renfield solta um grito e rasteja rapidamente para a escuridão à direita.
Seward: Renfield!
Harker e Van Helsing correm para lá.
Van Helsing: Onde está ele?
Seward: Por ali. Mesmo que Renfield conheça este lugar, isto não prova que o vampiro está aqui.
Van Helsing vai até a direita e agarra Renfield.
Van Helsing: Agora é a vida do vampiro ou a sua!
Van Helsing arrasta Renfield até a luz da lanterna.
Van Helsing: Olhem, olhem para ele: ele sabe!
Renfield: Eu não sei de nada! Me larga! Me larga!
Renfield se solta e volta para a direita.
Van Helsing: Ele estava prostrado aqui, mas não me deixou arrastá-lo de volta… Ah! Aqui! Depressa, a estaca!
Harker e Van Helsing fazem uma alavanca com a estaca e abrem a laje de pedra e o caixão.
Os três homens, com horror e triunfo, contemplam o caixão.
Seward: Massa horrenda de matéria morta-viva!
Harker: Deixe que eu cravo a estaca!
Van Helsing toma a estaca de Harker e leva-a para dentro do caixão.
Renfield está de pé na extremidade do caixão.
Van Helsing: (SUSSURRA) Doutor, o coração é aqui?
Seward: É.
Van Helsing entrega o martelo para Harker.
Harker ergue o martelo acima da cabeça e desce-o com toda força contra a estaca.
Ouve-se um gemido abafado.
Silêncio.
Harker: A estaca está cravada no coração de Drácula!
Van Helsing: Vejam o rosto; vejam a paz que lhe cobre o rosto.
Seward: Ele está se pulverizando.
Renfield: Ha! Ha! Livre! Deus! Santo! Salvador! Livreee! Ha-Ha-Ha! Ha-Ha-Ha! Ha-Ha-Ha!
Lucy desce as escadas e pára.
Lucy: Papai! Papai! John!
Harker: Lucy!
Van Helsing enche a mão de pó e derrama-o sobre o corpo.
Van Helsing: Do pó vieste, ao pó retornarás.
CAI O PANO
A cortina se abre novamente e todo o elenco vem à boca do palco.
Van Helsing: (PARA A PLATÉIA) Senhoras e senhores, concedam-nos mais um minuto, antes de partirem. Esperamos que a estória de Drácula e Renfield não lhes causem “sonhos assustadores”. Esperamos agora poder oferecer-lhes algumas palavras de conforto. Mais tarde, quando, em suas casas, as luzes se apagarem, se por ventura tiverem medo de olhar atrás das cortinas, se por ventura tiverem medo de encontrar um rosto atrás da janela, acalmem-se. Lembrem-se de que, afinal, estas coisas existem realmente.
CAI O PANO
ANTES DO CAFÉ
de
Eugene O’Neill
Tradução
de
Flávio de Campos.
setembro, 1984.
Uma sala pequena, conjugando cozinha e sala de jantar, num apartamento em Christopher Street, Nova York. Ao fundo, à direita, uma porta dá para o hall de entrada. À esquerda da porta, uma pia e um fogão de duas bocas. Acima do fogão e estendendo‑se pela parede da esquerda, um armário de madeira para pratos, etc. À esquerda, duas janelas que dão para fora, onde algumas plantas morrem nos vasos por falta de cuidado. Diante das janelas, uma mesa coberta com uma toalha de oleado. Junto à mesa, duas cadeiras de palha; uma outra cadeira, encostada à parede, à direita da porta ao fundo. Na parede da direita, ao fundo, uma porta que dá para o quarto de dormir. Mais à frente, diversas peças de roupa de homem e de mulher, penduradas em ganchos. Uma corda de secar roupas vai do canto esquerdo, ao fundo, à parede da direita, à frente dos ganchos. São mais ou menos oito e meia da manhã de um lindo dia de sol, no início do outono.
A Sra. Rowland vem do quarto de dormir, bocejando. As mãos, dão os retoques finais na desalinhada toalete; enfiam grampos nos cabelos amarelados e amontoados no alto da cabeça. Ela é de estatu-ra mediana, com tendência a gordura disforme, acentuada por um vestido azul também sem forma, desbotado e gasto. O rosto é inexpressivo, de traços pequenos e olhos de um azul indefinível; ansiedade nos olhos, no nariz e na boca malevolente e flácida. Tem pouco mais de 20 anos, mas parece bem mais velha.
Ela vai até o meio da sala e boceja, espreguiça os braços ao máximo. Os olhos sonolentos passeiam pela sala com a irritação de alguém cujo longo sono não foi um longo descanso. Cansada, ela vai até as roupas penduradas à direita e tira um avental de um gancho. Tenta amarrá‑lo à cintura. O nó não obedece os dedos desajeitados. Exasperada, ela solta uma praga. Por fim consegue amarrá‑lo, vai lentamente até o fogão e acende uma das bocas. À pia, enche a chaleira e coloca‑a no fogo. Em seguida, deixa‑se cair na cadeira junto à mesa e põe a mão na testa como se estivesse com dor de cabeça. De repente seu rosto se ilumina. Ela lança um rápido olhar ao armário e olha fixamente para o quarto. Ela apura os ouvidos um tempo.
Sra. Rowland: (EM VOZ BAIXA) Alfred! Alfred!
(DO QUARTO AO LADO NÃO VEM RESPOSTA. ELA CONTINUA, DESCONFI-ADA E A VOZ MAIS ALTA)
Não precisa fingir que está dormindo.
(DO QUARTO NÃO VEM RESPOSTA. MAIS SEGURA DE SI, ELA SE LEVAN-TA DA CADEIRA E, NA PONTA DOS PÉS, VAI ATÉ O ARMÁRIO. DEVAGAR, ELA ABRE UMA DAS PORTAS E, COM CUIDADO PARA NÃO FAZER BARULHO, TIRA DE TRÁS DOS PRATOS UMA GARRAFA DE GIM E UM COPO. AO FAZÊ‑LO, ELA BATE NO PRATO DE CIMA: UM PEQUENO RUÍDO. ELA SE SOBRESSALTA E OLHA DESAFIADORA EM DIREÇÃO AO QUARTO.)
(COM VOZ TRÊMULA) Alfred!
(APÓS UMA PAUSA E ATENTA AO MENOR RUÍDO, ELA PEGA O COPO, DERRAMA UMA DOSE ENORME E BEBE TUDO DE UMA VEZ. ENTÃO, COM PRESSA, ELA RECOLOCA A GARRAFA E O COPO EM SEU ESCONDERIJO; FECHA A PORTA DO ARMÁRIO COM O MESMO CUIDADO COM QUE O ABRIU. COM UM LONGO SUSPIRO DE ALÍVIO, ELA TORNA A SE ABOLETAR NA CADEIRA. A ENORME DOSE DE ÁLCOOL TEM EFEITO QUASE IMEDIATO. SEUS TRAÇOS SE ANIMAM, ELA PARECE RECUPERAR ENERGIA E OLHA PARA A PORTA DO QUARTO COM UM SORRISO DURO E VINGATIVO. COM RAPIDEZ, SEUS OLHOS VASCULHAM A SALA E SE FIXAM NUM PALETÓ E COLETE PENDURADOS NUM GANCHO À DIREITA. ELA VAI FURTIVAMENTE ATÉ A PORTA E TENTA OUVIR QUALQUER MOVIMENTO.)
(SUSSURRA) Alfred!
(NENHUMA RESPOSTA. COM UM MOVIMENTO RÁPIDO, ELA TIRA O PALETÓ E O COLETE DO GANCHO E VOLTA COM ELES PARA A CADEIRA. SENTA‑SE E, DE CADA BOLSO, TIRA E RECOLOCA RAPIDAMENTE VÁRIOS OBJETOS. POR FIM, NO BOLSO INTERNO DO COLETE, ELA ENCONTRA UMA CARTA. OBSERVA A CALIGRAFIA E DIZ PARA SI, LENTAMENTE)
Eu sabia!
(ELA ABRE A CARTA E LÊ. A PRINCÍPIO SUA EXPRESSÃO É DE ÓDIO, MAS, À MEDIDA EM QUE CHEGA AO FINAL, TRANSFORMA‑SE EM TRIUNFANTE PERVERSIDADE. POR UNS MOMENTOS ELA PERMANECE MERGULHADA EM PROFUNDA MEDITAÇÃO, O OLHAR FIXO À FRENTE, A CARTA NAS MÃOS E UM SORRISO CRUEL NOS LÁBIOS. EM SEGUIDA, RECOLOCA A CARTA NO BOLSO DO COLETE E, AINDA CUIDANDO PARA NÃO ACORDAR NINGUÉM, PENDURA AS ROUPAS NO MESMO GANCHO, VAI ATÉ A PORTA DO QUARTO E OLHA PARA SEU INTERIOR.)
(EM VOZ ALTA E ESTRIDENTE) Alfred!
(MAIS ALTO) Alfred!
(DO QUARTO OUVE‑SE UM RESMUNGO ABAFADO E SONOLENTO)
Você não acha que está na hora de se levantar, não? Vai ficar na cama o dia todo, é?
(GIRA O CORPO E VOLTA PARA A CADEIRA)
Eu sei, o que tem de preguiça aí dá pra deixar você na cama até morrer.
(ELA SE SENTA E OLHA PARA FORA DA JANELA, IRRITADA)
A gente nem tem como saber que horas são, depois que você botou o seu relógio no prego feito um bocó. Você sabia muito bem que era a última coisa de valor que a gente tinha. Com você é só “botar no prego, botar no prego, botar no prego”. Qualquer coisa que te livre de arrumar um emprego, qualquer coisa que te livre de trabalhar feito homem.
(NERVOSA, ELA BATUCA O PÉ NO CHÃO E MORDISCA OS LÁBIOS; APÓS BREVE PAUSA)
Alfred! Levanta daí, está me ouvindo? Quero fazer essa cama antes de sair. Estou cheia dessa bagunça que você faz. (COM SATISFAÇÃO VINGATIVA) Se bem que a gente não vai ficar aqui muito tempo, se você não arrumar dinheiro. Deus sabe que eu faço o que me cabe ‑ mais do que me cabe ‑ saindo para costurar todo santo dia; enquanto você ‑ ha! ‑ você bota a pose de granfino e sai desfilando pelos bares com aquele bando de artistas vagabundos lá da praça.
(PAUSA BREVE, DURANTE A QUAL ELA, À MESA, BRINCA NERVOSAMENTE COM UMA XÍCARA E UM PIRES.)
E onde, eu queria saber onde é que você vai arrumar dinheiro? O aluguel vence essa semana e o proprie-tário, você sabe, ele vai despejar a gente logo logo. Você diz que “não consegue” arrumar emprego. É mentira e você sabe muito bem disso. Nem procurar você procura. Vive no mundo da lua, escrevendo uns poeminhas e uns contos bobos que ninguém vai comprar, que ninguém é bobo. Eu sempre arrumo serviço, seja ele qual for. É isso que salva a gente de morrer de fome.
(ELA SE LEVANTA, VAI ATÉ O FOGÃO, OLHA DENTRO DA CHALEIRA PARA VER SE A ÁGUA FERVE, VOLTA E SE SENTA.)
Eu não dou conta de tudo, eu não aguento. Hoje você tem que arrumar dinheiro. Dado, emprestado ou roubado, mas tem que arrumar. (COM UMA RISADA DE DESPREZO) Arrumar como? Para pedir, você é muito orgulhoso; emprestado, você já passou da conta, coragem para roubar, você não tem.
(PAUSA. LEVANTA‑SE COM RAIVA)
Pelo amor de Deus, ainda não se levantou!? Você é bem capaz de dormir de novo ‑ ou fingir que está dormindo.
(ELA VAI À PORTA DO QUARTO E OLHA PARA O SEU INTERIOR)
Ah, está de pé. Estava na hora. Não precisa ficar me olhando assim. Essa sua pose não me engana mais. Conheço você muito bem ‑ melhor do que imagina ‑ você e as suas encrencas.
(AFASTA‑SE DA PORTA) Sei de muitas coisas, meu caro. Por enquanto, deixa para lá o que eu sei. Te conto antes de sair, pode ficar sossegado.
(ELA VAI ATÉ O MEIO DA SALA E PÁRA, IRRITADA)
Muito bem. Acho que vou aprontar o café. Se bem que não tem muito o que aprontar. Ou será que você tem um dinheirinho aí?
(ELA ESPERA POR RESPOSTA QUE NÃO VEM)
Que pergunta!
(ELA SOLTA UMA RISADA CURTA E SECA)
A essa altura eu já devia te conhecer melhor. Ontem à noite, quando você saiu daqui todo nervosinho, eu sabia o que ia acontecer. A gente não pode confiar em você nem um segundo. Em que estado você me volta para casa! A briga da gente foi só uma desculpa para você dar uma de furioso. Para que botar o relógio no prego, se você só queria o dinheiro para gastar com bebida?
(ENQUANTO FALA, ELA VAI ATÉ O ARMÁRIO E TIRA PRATOS, XÍCARAS, ETC.)
Anda logo! Café agora sai rápido, graças a você. Hoje é só pão, manteiga e café. E não ia ter nem isso se não fosse eu, costurando até furar os dedos.
(ELA BATE O PÃO NA MESA.)
O pão está velho. Tomara que goste. Você não merece coisa melhor, mas não sei porque eu devia passar por isso.
(VAI ATÉ O FOGÃO)
O café fica pronto já, já – e não pensa que vou esperar por você. Tinha graça…
(DE REPENTE, COM MUITA RAIVA) Que que você esta fazendo esse tempo todo?
(ELA VAI ATÉ A PORTA E OLHA PARA DENTRO) Bom, pelo menos está quase vestido. Pensei que tivesse voltado para cama. Você bem que era capaz disso. Hoje você está um horror! Pelo amor de Deus, faz a barba! Você está um nojo! Parece um mendigo. Está na cara que ninguém vai te dar emprego. E com toda razão, você não aparenta um pingo de decência.
(ELA VAI ATÉ O FOGÃO)
Água quente é o que não falta. Não tem como se desculpar.
(ELA DERRAMA UM POUCO DA ÁGUA DA CHALEIRA DENTRO DE UMA TIGELA)
Toma.
(ELE ESTICA A MÃO PARA DENTRO DA SALA PARA PEGÁ‑LA. A MÃO DELE É FINA, OS DEDOS MAGROS; TREME E DERRAMA UM POUCO DA ÁGUA NO CHÃO.)
(COM DEBOCHE) Olha a sua mão como treme! Devia parar de beber. Você não aguenta. É do tipo com tendência a “delirium tremens”. Você está nas últimas! (OLHA PARA O CHÃO) Olha só a sujeira que você me faz nesse chão: é guimba de cigarro e cinza por todo lado. Será que não dá para colocar num pires? Não, sua consideração não vai a tanto. Nunca pensa em mim; não é você quem varre a sala…
(PEGA A VASSOURA E COMECA A VARRER FURIOSAMENTE, LEVANTANDO UMA NUVEM DE PÓ. DO QUARTO VEM O SOM DE UMA NAVALHA SENDO AFIADA.)
Anda logo! Deve estar quase na hora de eu ir embora. Se chego atrasada, eu perco o emprego e aí não vou poder mais te sustentar. (COM SARCASMO) Aí você ia ter que trabalhar ou qualquer outra catástrofe do gênero.
(VARRE SOB A MESA)
O que eu quero saber é se você vai ou não vai procurar emprego hoje. Você sabe, a sua família parou de ajudar a gente. Eles também se encheram de você.
(DEPOIS DE VARRER ALGUM TEMPO EM SILÊNCIO)
Estou cheia dessa vida. Vontade de voltar para casa, bem que eu tenho, não fosse esse meu orgulho de não querer que eles saibam do fracasso que você é. Você, filho único do milionário Rowland, formado em Harvard, poeta, o melhor partido da cidade ‑ ha! (AMARGA) Hoje ninguém ia invejar a minha conquista. Que que foi o nosso casamento, diz aí? Mesmo antes do “milionário” do seu pai morrer, devendo dinheiro a Deus e ao mundo, você nunca dedicou um minuto do seu tempo à sua mulher. Talvez achasse que eu devia estar muito contente em você ser bastante “honrado” a ponto de se casar comigo, depois de me meter naquela fria. Tinha era vergonha de mim com os seus amigos gra-finos porque o meu pai e só um quitandeiro, isso sim. Pelo menos o meu pai é honesto, coisa que ninguém pode dizer do seu.
(COM FIRMEZA, ELA VARRE EM DIREÇÃO À PORTA. APOIA‑SE NA VASSOURA POR UM INSTANTE.)
Você esperava que todo mundo fosse achar que se casou obrigado e que todo mundo ia ter pena de você, não foi? Foi logo dizendo que me amava, me fazendo acreditar nas suas mentiras, antes da coisa acontecer, foi ou não foi? Me fez acreditar que não queria que o seu pai me pagasse para eu sumir, como ele tentou fazer. Hoje eu sei. Não foi à toa que eu vivi com você esse tempo todo. (SOMBRIA) Ainda bem que o pobrezinho nasceu morto. Que pai que você seria!
(ELA FICA QUIETA E TACITURNA POR UM TEMPO. E CONTINUA, NUMA ESPÉCIE DE ALEGRIA SELVAGEM.)
Só que eu não sou a única a te agradecer por ser infeliz, não. Tem pelo menos uma outra e esperança de se casar contigo agora, ela não pode ter.
(ELA COLOCA A CABEÇA DENTRO DO QUARTO.)
A Helena, hem?
(ELA RECUA, UM POUCO AMENDRONTADA.)
Não olha para mim com essa cara! Li, eu li a carta. E daí? Estou no meu direito. Sou sua mulher. E eu sei de tudo, não adianta mentir. Não precisa me olhar com essa cara. Essa sua pose não me mete mais medo. Não fosse eu, nem café você tinha, hoje.
(ELA RECOLOCA A VASSOURA NO CANTO.)
Nunca teve um pingo de gratidão por nada do que eu fiz, nem um pingo…
(ELA VAI ATÉ O FOGÃO E COLOCA O CAFÉ NA CHALEIRA.)
Café está pronto. E eu não vou esperar por você, não.
(ELA TORNA A SE SENTAR NA CADEIRA. UMA PAUSA E ELA ESFREGA A CABEÇA COM AS MÃOS)
Estou louca de dor de cabeça. É o fim eu ter que trabalhar numa sala abafada o dia todo, com essa dor de cabeça. E eu não ia, se você fosse um pouco homem. O certo era eu ficar na cama e não você. Você sabe como eu estive doente esse ano e ainda assim reclama quando eu tomo umazinha para me animar. (COM UMA RISADA SECA) Eu sei que você adoraria me ver morta e fora da sua vida. Aí você estava livre para correr atrás de todas essas garotinhas bobocas que pensam que você é uma pessoa incrível que ninguém compreende ‑ essa tal de Helena e as outras.
(DO QUARTO VEM UMA EXCLAMAÇÃO AGUDA DE DOR. COM SATISFAÇÃO:)
Ha! Eu sabia que você ia acabar se cortando. É bem feito para você aprender. Sabe que não pode beber a noite inteira com os nervos nesse estado.
(ELA VAI ATÉ A PORTA E OLHA PARA DENTRO.)
Por que que você está tão palido? Para que ficar se olhando no espelho desse jeito? Pelo amor de Deus, limpa esse sangue da cara!
(SOBRESSALTADA) É horrível.
(MAIS ALIVIADA) Isso, melhorou. Nunca pude ver sangue.
(ELA SE AFASTA UM POUCO DA PORTA)
Você devia desistir e ir ao barbeiro. Sua mão treme que é um horror. Por que que você me olha assim?
(ELA DÁ AS COSTAS PARA A PORTA)
Ainda está com raiva de mim por causa da carta? (DESAFIADORA) Eu tinha o direito de ler. Sou sua mulher.
(ELA VAI À CADEIRA E SE SENTA. APÓS UMA PAUSA)
Eu sempre soube que você tinha alguém. Suas desculpas de ficar na biblioteca nunca me enganaram. Afinal, quem é essa tal de Helena? É artista? Ou será que também escreve poesia? Pela carta, parece… Aposto que ela disse que as suas coisas eram as melhores do mundo e você acreditou, feito um bocó. Ela é moça? É bonita? Eu também era moça e bonita, quando você me enganou com o seu papo sofisticado, poético. Mas viver com você acaba logo com qualquer um…
(VAI AO FOGÃO E PEGA O CAFÉ)
Café está pronto. (COM DESPREZO) Café…
(SERVE UMA XÍCARA DE CAFÉ PARA SI E COLOCA A CHALEIRA NA MESA.) O café vai esfriar. Que que você está fazendo? A barba, ainda, meu santo Deus!? Devia desistir. Qualquer dia desses acaba se cortando de verdade.
(ELA CORTA O PÃO E PASSA MANTEIGA. NAS FALAS SEGUINTES, ELA COME E BEBE CAFÉ.)
Vou acabar de comer e vou ter que sair correndo. Um de nós tem que trabalhar…
(COM RAIVA) Você vai procurar emprego ou não vai? Por que que um dos seus amigos gra-finos não te ajuda? Eles acham que você é o tal… Eles só gostam mesmo é do seu papo furado.
(FICA SENTADA EM SILÊNCIO UM TEMPO.)
Tenho pena dessa tal de Helena, seja ela quem for. Será que você não se importa com os outros, não? Que que a família dela vai dizer? Eu li, ela fala da família na carta. Que que ela vai fazer? Vai ter a criança ou vai a um médico daqueles? Essa é boa. Onde é que ela vai arrumar dinheiro? Ela é rica?
(ELA ESPERA ALGUMA RESPOSTA.)
Hum! Não vai me contar nada não, é? Estou pouco ligando. Pensando bem, não tenho tanta pena dela assim, não. Ela sabia o que estava fazendo. Pela carta, dá para ver que ela não é nenhuma menininha, como eu era. Ela sabe que você é casado? Claro que sabe. Todos os seus amigos sabem da sua “infelicidade conjugal”. Sei que eles têm pena de você, mas eles não sabem do meu lado da estória. Iam ter outra opinião se soubessem.
(POR UM INSTANTE O COMER IMPEDE‑A DE PROSSEGUIR.)
Helena… Ela deve ser das boas, se sabia que você era casado. Que que ela espera, hem? Que eu vou me separar de você e deixar que vocês se casem? Será que ela acha que eu sou louca a esse ponto, depois de tudo o que você me fez passar? Duvido! E você sabe muito bem que de mim você não consegue divórcio. Ninguém nunca pode me acusar de ter feito nada de errado.
(ELA BEBE O ÚLTIMO GOLE DE CAFÉ.)
Ela merece é sofrer, isso sim. Vou te dizer uma coisa. Eu acho que a sua Helena é igualzinha a qualquer piranha de rua, igualzinha!
(DO QUARTO VEM UM GEMIDO ABAFADO DE DOR.)
Se cortou de novo? Bem feito.
(ELA SE LEVANTA, TIRA O AVENTAL)
Bom, tenho que correr.
(RABUGENTA) Ah, como é boa a vida que eu levo!
(UM SOM DESPERTA‑LHE A ATENÇÃO. ELA PÁRA E ESCUTA)
Pronto! Derramou água para todo lado. Não adianta dizer que não. Estou escutando muito bem a água caindo no chão.
(UMA VAGA EXPRESSÃO DE MEDO SURGE EM SEU ROSTO)
Alfred! Por que que você não me responde?
(ELA SE MOVE VAGAROSAMENTE EM DIREÇÃO AO QUARTO. OUVE‑SE O RUÍDO DE UMA CADEIRA QUE TOMBA E ALGO SE ESPATIFA NO CHÃO. ELA FICA ESTÁTICA E TRÊMULA DE MEDO.)
Alfred! Alfred! Responde! Que que você derrubou? Você ainda está bebado?
(INCAPAZ DE SUPORTAR A TENSÃO, ELA CORRE PARA A PORTA DO QUARTO.)
Alfred!
(TOMADA DE HORROR, ELA PERMANECE DE PÉ À PORTA, OLHA PARA O CHÃO DO QUARTO. EM SEGUIDA, GRITA DESCONTROLADAMENTE E CORRE ATÉ A OUTRA PORTA. DESTRANCA‑A, ABRE‑A FURIOSAMENTE E SAI, BERRANDO FEITO LOUCA.)
CAI O PANO
BERTA MANDA LEMBRANÇAS
de
Tennessee Williams
1946.
Tradução
de
Flávio de Campos
Março, 1988.
——————
Personagens:
Regina / Lena
Berta / Menina.
Um quarto no “vale” ‑ uma conhecida zona de prostituição ao longo do mangue, em St. Louis, Missouri, EUA.
No centro, deitada sobre uma pesada cama de cobre com travesseiros e cobertas em desalinho, nervosamente se agita Berta ‑ uma prostituta grande e loura. Encostada à parede da direita, uma penteadeira antiga e também pesada, com puxadores dourados, uma toalha espalhafatosa de seda por cima e duas grandes bonecas. Ao lado da cama, uma mesinha com garrafas de gim vazias. Algumas revistas sensacionalistas se espalham pelo chão. O papel de parede é de um brilho grotesco e coberto de rosas grandes e berrantes ‑ e está rasgado e soltando‑se, em alguns lugares. No teto, grandes manchas amarelas; pendurado no centro, um lustre velho, com uma franja de pingentes de vidro vermelho. Regina entra pela porta à esquerda. Ela usa um vestido sujo de duas peças, feito de cetim preto e branco, justo, a desenhar‑lhe o corpo magro.
Parada à porta, ela fuma um cigarro, enquanto fita, impacientemente, a figura prostrada de Berta.
REGINA: E então, Berta, que que você vai fazer? (PAUSA)
BERTA: (COM UM LEVE GEMIDO) Não sei…
REGINA: Você tem que resolver, Berta.
BERTA: Não posso resolver nada…
REGINA: Por quê?
BERTA: ‘cansada…
REGINA: Isso não é resposta.
BERTA: (AGITANDO‑SE) É a única que eu sei. Eu só quero ficar deitada aqui, pensando que que eu vou fazer.
REGINA: Você está deitada aqui, pensando ou sei lá o que, já faz duas semanas. (BERTA EMITE UMA RESPOSTA ININTELIGIVEL) Você tem que tomar uma decisão. As meninas precisam deste quarto.
BERTA: (COM UMA RISADA ROUCA) É todo delas!
REGINA: Com você deitada aqui, não dá.
BERTA: (DANDO UM TAPA NA CAMA) Ai, meu Deus!
REGINA: Se controla, Berta. (BERTA SE AGITA NOVAMENTE E GEME)
BERTA: Que que eu tenho?
REGINA: Você está doente.
BERTA: Eu estou é com dor de cabeca. Quem é que me deu aquele grogue, ontem de noite?
REGINA: Ninguem te deu grogue nenhum. Você está deitada nessa cama já faz duas semanas ‑ e falando sem parar. Agora, o que você deve fazer, Berta, é voltar para casa ou então…
BERTA: Voltar pra casa nenhuma! Vou ficar aqui mesmo, até eu conseguir (BREVE PAUSA) me erguer novamente.
(OBSTINADA, ELA DESVIA O ROSTO)
REGINA: Bordel não é lugar para menina no seu estado. Alem disto, nos precisamos deste quarto.
BERTA: Me deixa em paz, Regina. Quero dar uma descansadinha antes de comecar a trabalhar.
REGINA: Berta, você tem que tomar uma decisão!
POR UM BOM TEMPO ESTA ORDEM PAIRA PESADAMENTE PELA ATMOSFERA FLORIDA DO QUARTO. LENTAMENTE BERTA VIRA O ROSTO NA DIREÇÃO DE REGINA.
BERTA: (DEBIL) Que que eu tenho que decidir?
REGINA: Para onde é que você vai?
POR ALGUNS INSTANTES, BERTA FITA-A EM SILENCIO.
BERTA: ‘lugar nenhum. Agora me deixa em paz, Regina. Eu tenho que descansar.
REGINA: Se eu deixar você em paz, você vai ficar deitada aqui até o dia do Juizo Final! (A RESPOSTA DE BERTA É ININTELIGIVEL) Escuta! Ou você se decide agora mesmo, ou eu chamo a ambulância para te levar já já!
BERTA: (O CORPO ENRIJECE UM POUCO ANTE ESTA AMEACA) Não posso decidir nada… estou cansada, exausta…
REGINA: Está muito bem! (ELA ABRE A BOLSA NUM GESTO RAPIDO) Vou levar esta moeda e vou ligar agorinha mesmo. Vou dizer para eles que aqui tem uma garota doente, que não fala coisa com coisa.
BERTA: (FIRME) Vai, telefona… estou pouco ligando pro que vai acontecer comigo.
REGINA: (MUDANDO DE TATICA) Por que que você não escreve outra carta, Berta, para aquele homem lá de Memphis, que vende… ferragens ou sei lá o quê?
BERTA: (SUBITAMENTE ALERTA) O Charlie!? Deixa o nome dele de fora dessa tua boca fedida!
REGINA: Olha só como você fala comigo… Eu, deixando você ficar aqui por pura piedade, e você sem me trazer um tostão furado, já faz duas semanas! Onde é que você…
BERTA: Charlie… ele é um amor de pessoa. O Charlie é… (A VOZ SE TORNA UM RESMUNGO SOLUCANTE)
REGINA: Mas qual é o problema!? Mais uma razão para você escrever para ele te tirar deste buraco em que você se meteu, Berta.
BERTA: (EXALTADA) Pra ele eu não peco mais nem um tostão! Ouviu bem? Ele não se lembra nada de mim; nem do meu nome, nem nada. (ELA LENTAMENTE DESCE A MÃO PELO CORPO) Alguem me cortou de faca, quando eu estava dormindo.
REGINA: Acorda, Berta. Se esse cara tem dinheiro, quem sabe ele te manda um pouco, para ajudar você a “se erguer novamente”.
BERTA: Claro que ele tem dinheiro. Ele é o dono de uma loja de ferragem. Pelo menos isso eu tinha que saber: eu trabalhei lá! E ele sempre me dizia: “Broto, quando você precisar de alguma coisa, é só falar com o Charlie aqui…” A gente se divertiu a valer, naquele quarto lá dos fundos!
REGINA: Aposto que ele também não esqueceu.
BERTA: Ele descobriu tudo o que eu fiz, depois que eu larguei ele e… vim pra St. Louie. (ELA DA DOIS TAPAS NA CAMA)
REGINA: Descobriu nada, Berta. Aposto como ele não sabe de nada. (BERTA RI BAIXO)
BERTA: Foi você que escreveu pra ele… Inventou um monte de nojeira a meu respeito e saiu contando! Essa tua língua fedida matraqueia tão depressa que/…
REGINA: Berta! (BERTA RESMUNGA UMA OBSCENIDADE ININTELIGÍVEL) Eu sempre fui sua amiga, Berta.
BERTA: Não faz diferença: ele esta casado, agora.
REGINA: Manda só um cartão, um bilhetinho dizendo que você passou por umas dificuldades. Lembra ele que ele falou que ajudava você, quando você precisasse.
BERTA: Me deixa sozinha, um pouco, Regina. estou me sentindo muito mal por dentro, agora.
REGINA: (AVANCANDO UNS PASSOS E ENCARANDO BERTA COM MAIS PREOCUPAÇÃO) Quer ir no medico?
BERTA: Não. (PAUSA)
REGINA: Um padre? (BERTA AGARRA O LENCOL E PUXA‑O SOBRE SI)
BERTA: Não!
REGINA: Qual é a sua religião, Berta?
BERTA: Não tenho.
REGINA: Acho que uma vez você falou que era catolica.
BERTA: ‘capaz. E daí?
REGINA: Se você fosse, quem sabe nos conseguiamos umas freiras ou sei lá o que que te arrumavam um quarto, que nem o que arrumaram para a Rose Kramer; aí você podia descansar em paz e se recuperar e tudo, hem, Berta?
BERTA: Eu não quero freira nenhuma pra me arrumar droga nenhuma! Quero é ficar aqui, sossegada, até acabar de descansar.
REGINA: Berta… você está muito doente, Berta.
BERTA: (APOS PEQUENA PAUSA) Muito?
REGINA: Muito, Berta. Eu não quero te meter medo, mas…
BERTA: (COM VOZ ROUCA) estou morrendo?
REGINA: (APOS PENSAR POR UM INSTANTE) Eu não disse isto. (OUTRA PAUSA)
BERTA: Não, mas pensou.
REGINA: Nos temos que pensar no futuro, Berta. Não podemos ficar só de papo para o ar.
BERTA: (TENTANDO SENTAR‑SE) Se eu estou morrendo, eu quero escrever pro Charlie. Eu quero… contar pra ele umas coisinhas…
REGINA: Se você quer se confessar, querida, acho que um padre seria…
BERTA: Não, nada de padre! Eu quero o Charlie!
REGINA: O Padre Callahan podia…
BERTA: Não! Não! Eu quero o Charlie!
REGINA: O Charlie está em Memphis. Ele está cuidando da loja de ferragens lá dele.
BERTA: É mesmo. Lá na Avenida Central. Numero cinco meia tres.
REGINA: Eu vou escrever para ele e vou contar como é que você está, hem, Berta?
BERTA: (APOS PAUSA PARA PENSAR) Não… Escreve só que eu mandei lembranças. (ELA VIRA O ROSTO PARA A PAREDE)
REGINA: Eu preciso dizer mais alguma coisa, Berta.
BERTA: É só isso que eu quero que você escreve: “Berta manda lembranças.”
REGINA: Você sabe que isso não faz sentido.
BERTA: Claro que faz. “Berta manda lembranças para o Charlie com todo amor.” Não faz sentido?
REGINA: Não!
BERTA: Claro que faz.
REGINA: (VIRANDO‑SE PARA A PORTA) Melhor eu telefonar para o hospital e mandar vir a ambulância.
BERTA: Não, você não vai fazer isso! Prefiro morrer.
REGINA: Você não está em condicoes de ficar no bordel, Berta. Uma menina no seu estado precisa de cuidados, ou o pior pode acontecer.
LÁ FORA, NA RECEPÇÃO, ALGUEM LIGOU A VITROLA DE FICHA. TOCA “THE ST. LOUIS BLUES”. UMA VOZ ROUCA DE HOMEM REPETE O REFRÃO. EM SEGUIDA, OUVE‑SE UMA GARGALHADA E UMA PORTA BATENDO.
BERTA: (APOS LIGEIRA PAUSA) Dizer isso pra mim, maninha… (ELA ERGUE OS OMBROS) estou por dentro das regras desse jogo! (ELA FITA REGINA COM OLHAR BRILHANTE E REMOTO) Quando você vai pro escanteio, não tem volta. E nem “a senhora”, “Dona” Regina, nem “a senhora” ia conseguir voltar!
ELA SACODE A CABECA. LENTAMENTE, TORNA A RECOSTAR‑SE. ELA CERRA OS PUNHOS E SOCA A CAMA VARIAS VEZES. EM SEGUIDA, A MÃO RELAXA E PENDE DA BEIRADA DA CAMA.
REGINA: Pronto, agora vamos, Berta. Eu vou arrumar um quarto bonitinho para você. E lá você vai ter comida gostosa e uma cama limpinha para dormir.
BERTA: “Pra morrer” que você quer dizer! Me ajuda a sair dessa cama! (ELA LUTA PARA SE LEVANTAR)
REGINA: (INDO ATÉ ELA) Ah, não fica nervosa, Berta!
BERTA: Me ajuda a levantar. Anda! Cade o meu robe?
REGINA: Berta, você não está em condicoes de sair sacaricando por aí, não.
BERTA: Cala essa boca, para de me urubuzar! Fala pra Lena vir aqui. Ela vai me ajudar a carregar os meus cacarecos.
REGINA: Que que você decidiu, Berta?
BERTA: Ir embora.
REGINA: Para onde?
BERTA: Isso é problema meu.
REGINA: (APOS UMA PAUSA) Está bem, eu vou chamar a Lena. (BERTA LEVANTOU‑SE COM DIFICULDADE E AGORA CAMBALEIA EM DIREÇÃO À PENTEADEIRA)
BERTA: Ei, pera aí! Da uma olhada debaixo dessa bandeja. A bandeja do pente e da escova. (OFEGANTE, ELA SE DEIXA CAIR NUMA CADEIRA DE BALANCO) Você vai achar cinco pratas.
REGINA: Berta, não tem dinheiro nenhum debaixo dessa bandeja aí.
BERTA: ‘ta querendo dizer que eu estou dura?
REGINA: Você está dura há dez dias, Berta. Desde que você ficou doente, que você está dura.
BERTA: Mentirosa!
REGINA: (COM RAIVA) Não me ofende, Berta!
ELAS SE ENCARAM. UMA MENINA, VESTINDO O QUE PARECE SER UMA ROUPA DE GINASTICA FEITA DE CETIM, SURGE À PORTA E, CURIOSA, DA UMA ESPIADA PARA DENTRO. ELA SORRI E DESAPARECE.
BERTA: (FINALMENTE) Traz a Lena até aqui. Ela não vai armar pra cima de mim.
REGINA: (INDO ATÉ A PENTEADEIRA) Olha, Berta. Só para satisfazera sua vontade. Está vendo debaixo da bandeja? Não tem nada. Só este cartão que você recebeu do Charlie há muito tempo atras.
BERTA: (LENTAMENTE) Me roubaram. É, me roubaram. (FALANDO GRADATIVAMENTE MAIS RAPIDO) Só porque eu estou aqui, doente, sem eira nem beira, que nem consigo tomar conta de mim, que vão e me roubam! Se eu estivesse de posse da minha saude, você sabe o que que eu ia fazer? Eu estourava esse lugar, eu virava isso aqui de cabeca pra baixo! Eu ‘garrava de volta a grana que você me roubou, eu ‘rancava ela de onde você escondeu, sua velha…
REGINA: Berta, você gastou tudo, tudinho. Você comprou gim.
BERTA: Não!
REGINA: Você ficou doente numa noite de terca feira. Naquela noite, você comprou uma garrafa de gim. Isto eu posso jurar, Berta.
BERTA: Nem que você jurasse na Biblia eu acreditava. Chama a Lena! Isso é arapuca! (ELA SE LEVANTA E CAMBALEIA ATÉ A PORTA) Lena! Lena! Me chama a policia!
REGINA: (SOBRESSALTADA) Não, Berta!
BERTA: (AINDA MAIS ALTO) CHAMA A POLICIA!
TROMBANDO DE FRAQUEZA CONTRA A LATERAL DA PORTA, ELA SOLUCA, AMARGURADA, E COBRE OS OLHOS COM UMA DAS MÃOS. A ELETROLA RECOMECA A TOCAR. OUVE‑SE O ARRASTAR DOS PES DAS PESSOAS A DANCAR, LÁ FORA.
REGINA: Berta, se acalma. Agora sossega, vem, aqui.
BERTA: (VIRANDO‑SE PARA A OUTRA) Não vem me pedir calma, não, o bruaca velha. Me chama a policia, anda, senão eu…! (REGINA AGARRA‑A PELO BRACO E ELAS LUTAM, MAS BERTA SE SOLTA COM UM SAFANÃO) Eu vou registrar queixa de furto na Delegacia, nem que seja a ultima coisa que eu faco na vida! Você é capaz de roubar até esmola de cego ‑ e depois vem posar de piedosa. Entra aqui dentro e me cospe um papo vaselina de “padre, confissão”… ME CHAMA A POLICIA! (ELA ESMURRA A PAREDE E SOLUCA)
REGINA: (ATONITA) Berta, você está precisando de um bom calmante. Volta para a cama, meu bem, que eu vou te trazer dois calmantes e uma caixa de aspirina.
BERTA: (COM RAPIDEZ E NUMA SÓ EXPIRAÇÃO, OS OLHOS FECHADOS, A CABECA PARA TRAS, AS MÃOS CERRADAS) Você vai me devolver os meus vinte e cinco dolares que você me roubou de debaixo da bandeja do pente e da escova!
REGINA: Olha, Berta…
BERTA: (SEM MUDAR DE POSIÇÃO) Você vai me devolver ou eu vou te meter um processo no meio das fucas! (OS LABIOS TREMEM DE TENSÃO; UM FIO DE SALIVA BRILHA QUEIXO ABAIXO. ELA PARECE UMA PESSOA EM TRANSE CATATONICO) Eu tenho amigo nessa cidade. Gente importante! (EXULTANTE) Advogado, político! Eu me safo de qualquer artigo da lei que você tentar me enquadrar! (OS OLHOS BRILHAM, ARREGALADOS) Vadiagem? (ELA RI, DESVAIRADA) Essa é boa, né não? (PATETICA) Eu estou na posse dos meus direitos constitucionais! (A RISADA SE ESVAI E ELA CAMBALEIA ATÉ A CADEIRA DE BALANCO, PARA NELA AFUNDAR. COM MUITO MEDO, REGINA A OBSERVA. EM SEGUIDA, ELA CIRCUNDA BERTA CUIDADOSAMENTE E SAI PELA PORTA, ASSUSTADA, A ARFAR)
BERTA: Charlie, Charlie, você era um amorzinho, um amorzinho! (A CABECA BALANCA E ELA SORRI DE ANGUSTIA) Você me enganou tantas vezes, Charlie, que eu até perdi a conta. Me enganou, iludiu ‑ e casou com uma cantorazinha do coral da igreja ‑ oh, meu Deus! E eu te amo tanto que me doi toda por dentro só de olhar para essa tua fotografia. (O EXTASE SE ESVAI E RETORNA O OLHAR DE SUSPEITA ESQUIZOFRENICA) Cade aquela bruaca venenosa? Cade os meus dez dolares? Ei, OOOO!!! Volta aqui com o meu dinheiro! Eu rebento as tuas fucas, se eu te pego sacaricando por aí com o meu dinheiro!… Ah, Charlie… estou louca de dor de cabeca, Charlie… Não, amor. Fica comigo hoje de noite. (ELA SE LEVANTA DA CADEIRA DE BALANCO) Ei, você. Me traz uma compressa de gelo: estou com dor de cabeca… estou com uma ressaca dos infernos, meu bem! (ELA RI) Vadiagem… Vadia é a perereca da tua vó! Chama o meu advogado. Eu tenho prestigio nessa cidade. É… Minha familia é dona da metade dos pocos de petroleo do Estado de… de… Nevada. (ELA RI) Essa é boa, né não? (À PORTA, CHEGA LENA, UMA JUDIA MORENA DE SHORT E BLUSA DE CETIM COR DE ROSA. BERTA FITA‑A COM OS OLHOS SEMI-ABERTOS) E você, quem é?
LENA: Sou eu, a Lena.
BERTA: Ah, Lena, é? Senta aí, estica as pernas… Pega um cigarro, meu bem. Eu não estou bem. Aqui não tem cigarro nenhum. A Regina levou. Ela leva tudo o que é meu. Senta e… aceita um…
LENA: (À PORTA) A Regina me falou que você não estava muito bem, hoje à noite. Daí que eu resolvi dar uma passadinha, pra te ver.
BERTA: Essa é boa, né não? Eu estou bem. Eu volto pro batente agora de noite. Pode crer. Eu sempre dou a volta por cima, não dou, garota? Já me viu pedir arrego? Posso estar nu’a maré meio de azar agora, mas… é só isso! (ELA DA UMA PAUSA, COMO SE ESPERASSE APROVAÇÃO) É só isso, né não, Lena? Velha, eu não estou. Inda estou enxuta, não estou?
LENA: Claro que esta, Berta. (PAUSA)
BERTA: Então que que ‘ce esta rindo?
LENA: Eu não estou rindo, Berta.
BERTA: (COM UM VAGO SORRISO) Eu pensei que quem sabe você estava pensando que era engracado eu estar perguntando se eu ainda estava enxuta.
LENA: (APOS UMA PAUSA) Não, Berta. Você pensou errado.
BERTA: (ASPERA) Escuta aqui, o minha flor. Eu conheco o Prefeito desse fim de mundo. A gente é assim, um com o outro. Viu? Eu me safo de qualquer artigo da lei que você tentar me enquadrar e eu não quero nem saber! Vadiagem? Essa é boa! Pega a minha mala, faz favor, Lena. Cade? Já fui despejada de lugar muito melhor do que esse. (ELA SE LEVANTA E SE ARRASTA SEM RUMO PELO QUARTO. EM SEGUIDA, CAI NA CAMA. LENA VAI ATÉ A CAMA) Meu Deus, eu estou muito cansada. Vou ficar deitada até a minha cabeca parar de rodar… (REGINA APARECE À PORTA. LENA E ELA TROCAM OLHARES SIGNIFICATIVOS)
REGINA: E então, Berta, já resolveu?
BERTA: “Resolveu” o quê?
REGINA: O que que você vai fazer?
BERTA: Me deixa em paz. Eu estou cansada…
REGINA: (COM DISPLICENCIA) Telefonei para o hospital, Berta. Estão mandando uma ambulância para te pegar. Vão cuidar de você, num quarto limpinho.
BERTA: Manda eles me jogar no rio pra economizar dinheiro do governo. A ver estão com medo d’eu poluir a agua. Acho que eles vão ter é que cremar as carnes da Berta aqui, pra não espalhar epidemia. É o único jeito. Essa é boa! Olha só para ela, Lena: a bruaca metida a madame. Ela acha que tem um coração grande. Essa é boa, né não? A única coisa grande que ela tem esta no meio das pernas dela. É, a bruaca é velha! Ela entra aqui dentro e vomita um papo vaselina, que vai chamar padre, que vai me meter em casa de caridade… Pra cima de mim, não, camaleão! Pra cima de mim, não, estou te avisando!
REGINA: (CONTROLANDO O ODIO) Seria bom que você tomasse cuidado com o que diz. Cuidado, que eles te metem numa camisa de forca ‑ e acabou‑se o que era doce.
BERTA: (LEVANTANDO‑SE DE SUBITO) Passa fora! (ELA ATIRA UM COPO EM REGINA, QUE SOLTA UM GRITO E SAI CORRENDO) Cadela dos infernos! (BERTA VIRA‑SE PARA LENA) Senta e escreve uma carta pra mim. Tem papel debaixo daquela boneca.
LENA: (OLHANDO SOBRE A PENTEADEIRA) Tem não, Berta.
BERTA: Não tem? Até isso me roubaram! (LENA VAI ATÉ A MESA DE CABECEIRA E APANHA UM BLOCO DE PAPEL)
LENA: Pronto, Berta.
BERTA: ‘ta bem. Escreve uma carta. Para o Senhor Charlie Aldrich, proprietario da maior loja de ferragem da Cidade de Memphis. Escreveu aí?
LENA: Qual é o endereco, Berta?
BERTA: É Avenida Central, cinco meia duzia tres. Pegou? Muito bem. Senhor Charlie Aldrich. Querido Charlie. Tem gente armando para me meter no manicomio municipal. Sob a acusação de atividade criminosa, sem o devido processo da lei. Escreveu aí? (LENA PARA DE ESCREVER) E eu estou na posse da minha saude, como você está, da sua saude, neste exato momento, Charlie. Sempre regulei bem da bola e sempre assim será. Escreveu aí? (LENA BAIXA OS OLHOS E FINGE ESCREVER) Assim sendo, vem até aqui, Charlie, e paga a minha fianca e me leva embora daqui, meu amor, por amor aos velhos tempos. Envio‑lhe junto com esta todo o meu amor… e muitos beijos, da sua amada de sempre, Berta. … Pera aí. Escreve um P.S. e pergunta “como vai a sua esposa e a sua”… Não! Risca! Isso não tem nada a ver. Risca, risca tudo, risca toda a carta! (O SILENCIO É DOLOROSO. BERTA SUSPIRA E, LENTAMENTE, VIRA‑SE SOBRE A CAMA, PUXANDO PARA TRAS OS CABELOS SEM BRILHO) Pega outra folha de papel. (LENA SE LEVANTA E ARRANCA OUTRA FOLHA DO BLOCO. UMA MENINA COLOCA A CABECA À PORTA)
MENINA: Lena!
LENA: Já vou.
BERTA: Pegou?
LENA: Peguei.
BERTA: Muito bem. Agora, diz só isso: Berta manda lembranças… para o Charlie… com todo amor. Escreveu aí? Berta manda lembranças… para o Charlie…
LENA: (LEVANTANDO‑SE E ENDIREITANDO A BLUSA) Escrevi.
BERTA: Com todo… amor… (LÁ FORA, A MUSICA RECOMEÇA)
CAI O PANO
O CANTO DO CISNE – do Anton Chekov.
O CANTO DO CISNE
Estudo dramatico em um ato,
de Anton Chekov.
Tradução
de
Flavio de Campos.
Marco, 1984.
= Da versao francesa de Genia Cannac e Georges Perros. Paris, Gallimard, 1966.
——-
Personagens:
– Vassili Vassilievitch Svetlovidov, ator, 68 anos.
– Nikita Ivanytch, Ponto de teatro.
A acao se passa a noite, depois do espetaculo, num palco de um teatro, numa pequena cidade do interior. A direita, uma carreira de portas toscas em madeira clara que dao para os camarins. A esquerda e ao fundo do palco, muitos aderecos. No centro do palco, um banquinho virado de cabeca para baixo. A luz é pouca.
I
Svetlovidov, caracterizado como Calchas, sai de seu camarim segurando uma vela. Ele ri às gargalhadas.
Sv: Essa e boa! Essa e formidavel! Cochilar no camarim! O espetaculo acabou ha muito tempo, todo mundo ja foi embora e eu a cochilar como o mais tranquilo dos homens. Ah! velho gaga, velho gaga! Pobre velho! Fica bebendo e acaba dormindo sentado! Essa e boa! Parabens, meu garoto. (ELE CHAMA.) Egorka! Egorka! Deus do ceu! Petrouchka! Eles estao dormindo, os pilantras! Que os diabos, que toda urucubaca do mundo os carregue! Egorka!
ELE DESVIRA O BANQUINHO, SENTA-SE, COLOCA A VELA NO CHAO.
Sv: Nao se escuta nada… So o eco me responde… E nisso que da pagar esses garotos. Tres rublos para cada um… agora, para achar eles… nem mesmo com cachorro policial… Sumiram, os patifes! Na certa fecharam todas as portas a chave…
ELE SACODE VIOLENTAMENTE A CABECA.
Sv: Acho que estou bebado. O que eu devia mesmo era meter uma cerveja com vinho pela goela abaixo em homenagem a esse espetaculo. Meus cabelos estao um bagaco, e esse gosto na boca… repugnante… E triste.
PAUSA
Sv: Digno de um idiota… Olhem so esse velho idiota que se embebedou. Para comemorar o que? Vao perguntar a vovozinha! Ai, meu Deus! Os rins ja nao servem para mais nada, a cabeca estoura, arrepios pelo corpo todo, e dentro da alma esta tudo frio, preto, que nem numa tumba. Pedaco de velho festeiro, se voce pouco se importa com a sua saude, tende ao menos piedade da sua velhice.
PAUSA
Sv: Pois é, a velhice… De que que adiantou iludir, representar, fingir: a vida acabou… sessenta e oito anos nas costas… Adeus, carcaca… voce nao os fara voltar… A garrafa esta vazia… So uma gotinha no fundo… a borra… Isso mesmo… Pois e, meu pobre Vassia… Querendo, ou nao querendo, esta na hora de ensaiar o papel de defunto… A morte, nossa Mae, nao esta nada longe…
ELE OLHA A SUA FRENTE.
Sv: Olha so, quarenta e cinco anos que eu faco teatro, e tenho para mim que e a primeira vez que vejo um no meio da noite… E, a primeira vez… Gozado, mesmo assim eu nao tenho nada para dizer.
ELE SE APROXIMA DA BOCA DO PALCO.
Sv: Nao se ve patavina. Mal distingo a caixa do Ponto… O camarote daqueles senhores… a mesa… o resto, nada, trevas. Um buraco negro sem fundo, uma tumba, a morte em pessoa la dentro… Brrr… Que frio! Vem da plateia, como de um tunel de vento… Lugar ideal para se evocar os espiritos! Estou com medo que o diabo me carregue… Arrepios na espinha…
ELE CHAMA.
Sv: Petrouchka! Egorka! Onde e que voces estao, seus diabos! Senhor, que que tem se eu evoco o Diabo! Ah, meu Deus, chega de blasfemias. E para de beber, que voce esta velho, vai morrer logo, logo… Aos sessenta e oito anos as pessoas de bem, elas vao a missa, elas se preparam para a morte. Nao como voce que… Ah, Senhor! Os palavroes, essa goela de beberrao, essa roupa de palhaco… E deploravel… Vou correndo trocar de roupa… Estou com medo! Se eu fico aqui a noite toda, eu morro e de medo…
ELE SE DIRIGE A SEU CAMARIM. NESTE MOMENTO, NIKITA IVANOVITCH, DE CAMISA BRANCA, SAI DA PORTA MAIS DISTANTE E SURGE NO FUNDO DO PALCO.
II
AO VER NIKITA, SVETLOVIDOV SOLTA UM GRITO DE PAVOR E RECUA.
Svetlovidov: Que e isso? O que? Que que voce quer?
ELE BATE COM O PE NO CHAO.
Sv: Quem e voce?
Nikita: Sou eu, senhor.
Sv: Eu quem?
Ni: (SE APROXIMANDO LENTAMENTE.) Sou eu, senhor… Nikita Ivanovitch, o Ponto… Sou eu, Vassili Vassilevitch.
EXAUSTO, SVETLOVIDOV SE DEIXA CAIR NO BANQUINHO; ELE OFEGA E TREME TODO.
Sv: Meu Deus! Quem? E voce… voce, Nikitouchka? Para… Para que voce esta aqui?
Ni: Eu durmo aqui, senhor, num camarim… Mas, pelo amor de Deus, nao conta para Alexis Fomitch, senhor… E o unico lugar que eu tenho para dormir, palavra de honra…
Sv: E voce, Nikitouchka… Meu Deus, meu Deus. Dezesseis cortinas… tres premiacoes… uma porcao de outras coisas… Todo mundo entusiasmado, mas ninguem para acordar o velho bebado, levar ele para casa… Eu estou e velho, Nikitouchka… Sessenta e oito anos… Eu estou doente… Meu pobre espirito esta atormentado…
ELE CHORA, ABRACADO AO PONTO.
Sv: Nao me deixa sozinho, Nikitouchka… Eu estou velho, doente, perto da hora da morte… Eu estou com medo. Eu estou com medo!
Ni: (COM AFEICAO E RESPEITO) O senhor devia voltar para casa, Vassili Vassilievitch.
Sv: Eu nao quero. Eu nao tenho casa. Nao, nao, nao…
Ni: Meu senhor! Sera que esqueceu onde mora?
Sv: Eu nao quero ir para casa, nao quero! Eu fico sozinho la. Eu nao tenho ninguem, Nikitouchka. Nem parente, nem mulher, nem filhos. Sozinho. Que nem vento na planicie. Se eu morro, ninguem vai chorar por mim. E eu tenho muito medo de ficar sozinho. Ninguem para cuidar de mim, me consolar, me botar na cama quando estou bebado. Quem sou eu? Quem precisa de mim? Quem me ama? Ninguem, Nikitouchka, ninguem!
Ni: (EM MEIO A LAGRIMAS) O publico, o publico ama o senhor, Vassili Vassilievitch.
Sv: O publico? Ele foi embora, ele esta dormindo, ele esqueceu esse bufao. Nao, ninguem precisa de mim, ninguem me ama. Eu nao tenho nem mulher, nem filhos…
Ni: Bah! Nao tem porque se preocupar.
Sv: Mas eu estou vivo, Nikitouchka. Nao e agua, e sangue que corre nas minhas veias. Eu sou bem nascido, de boa familia… Antes de cair nesse buraco, eu era militar, oficial de artilharia. E – ah, se voce tivesse me visto! – que folgazao! Bem apessoado, honesto, corajoso, ardente. Meu Deus, e tudo isso, para onde e que foi tudo isso? E entao, Nikitouchka, eu nao fui um ator magnifico?
ELE SE LEVANTA, APOIANDO-SE NO BRACO DO PONTO.
Sv: Que fim levou esse tempo todo? Meu Deus! De repente, olhei nesse buraco e me lembrei de tudo, tudo. Foi esse buraco que engoliu quarenta e cinco anos da minha vida. E que vida! Olhando para ela, eu revejo cada detalhe, como eu vejo agora cada ruga do teu rosto. A pujanca da minha
juventude, a fe, o ardor, o amor! As mulheres, Nikitouchka!
Ni: Vassili Vassilievitch, esta na hora de voce descansar.
Sv: Uma vez, eu estava comecando – um ator comecando a se apaixonar por sua arte – uma moca, me lembro bem, ela se apaixonou por mim por causa do meu talento. Era bonita, esbelta como um lirio, jovem, inocente, pura e ardente como manha de verao. O azul do seu olhar, seu sorriso maravilhoso faziam recuar ate mesmo a noite. “As ondas do mar se quebram sobre o rochedo. Mas nem as pedras, nem as espumas, nem as montanhas nevadas teriam resistido as ondas dos seus cabelos.” Uma vez, me lembro bem, eu estava diante dela, como agora, aqui com voce… Ela estava mais linda do que nunca, e seu olhar… ah! dele eu nao esqueco, nem mesmo na tumba! O carinho, o aveludado, a profundidade desse olhar, o arrebol da juventude… Embriagado, louco de felicidade, eu caio a seus pes, eu peco a sua mao! (COM UMA VOZ ESMAIDA) E voce sabe o que que ela me respondeu? Hem? “Largue o teatro!” Voce compreende? “Lar-gue-o-te-a-tro.” Ela podia se apaixonar por um ator, mas casar com ele, nunca! Naquela noite, me lembro bem, eu tinha espetaculo, um papel infame de farsante. E, enquanto representava, eu senti meus olhos se abrirem. E, compreendi que a arte sagrada nao existia, que tudo era engodo e mentira, que eu nao passava de um escravo, um fantoche para os ociosos, um bufao, um farsante. E o publico, eu tambem compreendi o que ele era. Depois disso, nao acreditei mais em aplausos, em coroas de louro, em delirios de entusiasmo. Pois e, Nikitouchka, me aplaudem, pagam um rublo por minha fotografia, mas o publico me despreza. Para eles eu sou menos que nada, um fantoche! Essa gente toda quer me conhecer – por pura vaidade – mas nunca se rebaixam a ponto de me entregarem sua irma ou sua filha em casamento. Nao acredito mais no publico!
ELE SE JOGA NO BANQUINHO.
Sv: Nao acredito mais.
Ni: O senhor nao me parece bem, Vassili Vassilievitch. E, para falar a verdade, o senhor me da ate medo. Que tal irmos embora? Por favor!
Sv: Foi ai que eu vi tudo – e isso me custou caro. Depois dela, dessa moca, eu dei de andar para la, para ca, sem eira nem beira, a viver a esmo, sem pensar no futuro. Fiz o bufao, o bobo, o imbecil. Eu era ma companhia – mas que artista que eu era! que talento! Mas esse talento, eu enterrei, eu deformei; vulgarizei minha linguagem, perdi a imagem e a semelhanca do divino. Foi esse buraco negro ai que me engoliu, me devorou. E eu nao tinha me dado conta disso ate essa noite. Agora eu dei por mim… olhei para tras… Estou com sessenta e oito anos. Acabo de ver minha velhice. Minha
cancao chegou ao fim! (ELE SOLUCA.) Minha cancao chegou ao fim!
Ni: Vassili Vassilievitch! Meu paizinho, meu amigo… Vamos la, acalme-se. Meu Deus! (ELE CHAMA.) Petrouchka! Egorka!
Sv: Que talento, sim, e que vigor! E que diccao! Voce nao imagina quanto sentimento, quanta finesse, que cordas vocais…
ELE BATE NO PEITO.
…dentro desse peito! De tirar a respiracao… Meu velho, escuta… deixa eu recuperar o folego. Tome, por exemplo, Godounov:
Foi a sombra do Terrivel quem me adotou
e quem, de sua tumba, me chama Dimitri,
a minha volta ela salvou os povos,
fez de Boris minha vitima prometida.
Sou o Tsarevitch. Basta! Basta!
Nao me rebaixo diante da altiva Polonaise. (1)
Nada mal, hem? (ANIMANDO-SE.) Escuta, o Rei Lear. Voce sabe: ceu escuro, chuva, to-rovaao, os relampagos – zas! – rasgando o ceu. E, no meio:
Soprai, ventos, rasgai vossas bochechas! Furia! Soprai!
Cataratas e furacoes, jorrai,
Inundai os campanarios, afogai os cataventos!
Vos, fogos sulfuricos, velozes como pensamento,
Arautos dos raios que ceifam carvalhos,
Queimai minha cabeca branca! E vos, trovao que tudo treme,
Acaçapai a densa rotundidade do mundo!
Estilhacai os moldes da natureza; cuspi, ja, todos os germes
De que e feito o homem ingrato!
(COM IMPACIENCIA) Depressa, a replica do Bobo.
ELE BATE O PE.
Sv: Me da, vai, a replica do Bobo, eu nao tenho tempo!
Ni: (REPRESENTANDO O BOBO.) Ah, titio, mais vale agua benta da corte em casa seca do que agua de chuva no relento. Bondoso titio, entra e pede a bencao a suas filhas. Essa noite aqui nao tem do nem do sabio nem do bobo.
Sv: Ribombai todo o vosso ventre! Cuspi, fogo! Despencai, chuva! Nao existe chuva nem vento, trovao nem fogo que sejam minhas filhas. Vos, elementos, nao vos cobro gratidao; nunca vos dei reino, nunca vos chamei de filhas… (2)
… Que forca! que talento! que artista! Vamos em frente. Vamos representar outra coisa qualquer… para reviver o passado. Tomemos…
ELE REBENTA NUM RISO ALEGRE.
…Hamlet. Vamos la, eu comeco… Mas por onde comecar? Pronto! Eu fico ali.
ELE REPRESENTA O HAMLET.
… Ah! as flautas! Deixe-me ver uma. (A NIKITA) Voce, para resolver isso logo; por que voce fica andando por ai, tentando pegar o meu ar, como se fosse me lancar numa armadilha?
Ni: Ah, senhor, se meu zelo e desmesurado, minha afeicao peca pela rudeza.
Sv: Eu nao entendo bem isso. Quer tocar essa flauta?
Ni: Senhor, eu nao sei.
Sv: Eu lhe peco.
Ni: Acredite, eu nao sei.
Sv: Eu lhe suplico.
Ni: Nao sei uma nota, senhor.
Sv: E tao facil quanto mentir. Controle esses furos com os dedos, sopre o ar pela boca e ela emitira a mais eloquente das melodias. Veja, esses sao os registros.
Ni: Mas deles eu nao consigo tirar qualquer pio de harmonia; eu nao possuo a arte.
Sv: Ora, veja bem em que coisa desprezivel voce me transforma. Queria fazer de mim o seu instrumento, parecia conhecer os meus registros, queria arrancar o coracao do meu misterio, fazer soar desde a minha nota mais baixa ate o topo da minha escala. Existe muita musica e excelente voz nesse pequeno orgao, e nem assim voce e capaz de faze-lo falar. Pelo sangue dos ceus, voce acha que sou mais facil de ser tocado do que uma flauta? Pode me chamar do instrumento que quiser; apesar de poder me dedilhar, voce nao consegue me tocar. (3)
ELE DA GARGALHADAS E APLAUDE.
Sv: Bravo! Bis! Bravo! Qual foi o diabo que falou em velhice? A velhice nao existe; bobagem,
tolice! Quando o vigor jorra por todas as veias, isso e a juventude, o frescor, a vida! Onde existe talento, Nikitouchka, nao existe velhice! Voce nao responde, nao e? Esta atordoado, Nikitouchka! Espera, deixa eu retomar o folego… Ah! Senhor, meu Deus! E essa, escuta so, que finesse, que musica! Silencio… Shii…!
A noite ucraniana esta calma
O ceu, transparente; as estrelas rebrilham,
O ar se deixa vencer pelo sono,
As folhas dos choupos tremilicam um nada… (4)
OUVE-SE O RUIDO DE UMA PORTA QUE SE ABRE.
Sv: Que e isso?
Ni: Com certeza Petrouchka e Egorka voltaram… Que talento, Vassili Vassilievitch! Que talento!
Sv: (EM DIRECAO A PORTA) Aqui, minhas aguias! (PARA NIKITA) Vamos nos vestir. Que velhice, que nada. Bobagem, tolice.
ELE RI ALEGREMENTE.
Sv: Mas por que que voce esta chorando? Meu bobo querido, para que derramar lagrimas? Ah! Isso nao esta certo! De jeito nenhum! Anda, anda, meu velho, nao me olhe com essa cara. Por que que voce esta me olhando? Anda, anda…
ELE O ABRACA E FALA POR ENTRE LAGRIMAS.
Sv: Nao se deve chorar… Onde existe arte e talento, antidotos da velhice, da solidao, da doenca, onde a propria morte quase… (ELE CHORA.) Nao, Nikitouchka, nossa cancao chegou ao fim… Sera que sou so talento? Um bagaco, isso, gelo derretido, prego enferrujado. E voce, voce nao passa de um velho rato de teatro, um Ponto… Vamos embora daqui.
ELES SE DIRIGEM A PORTA.
Sv: Sera que ainda tenho talento? Nas pecas sérias, eu so sirvo para figurar no sequito de Fortinbras… e mesmo para isso eu estou muito velho… estou mesmo… Voce se lembra dessa
passagem do Otelo, Nikitouchka?
Ah! Agora, para sempre,
Adeus, paz de espirito, adeus, contentamento!
Adeus, tropas emplumadas, adeus, grandes guerras
Que fazem da ambicao virtude! Ah, adeus!
Adeus, cavalo e relincho, adeus, trombeta e estridulo;
E o tambor instigante, o pifano ensurdecedor,
O estandarte real e toda a beleza,
Orgulho, pompa e circunstancia de guerra gloriosa! (5)
Ni: Que talento! Que talento!
Sv: Ou entao, escuta so mais essa:
Vou-me embora de Moscou. Nunca mais vou voltar.
Parto. Para o meu coracao ulcerado,
Por entre a imensidao da natureza, ao longe,
Vou procurar abrigo. Avante com a minha carroca! (6)
ELE SAI COM NIKITA IVANYTCH.
A CORTINA CAI LENTAMENTE.
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Notas:
1. Pouchkine. BORIS GODOUNOV.
2. REI LEAR. ato III, cena II.
3. HAMLET. ato III, cena II.
4. Pouchkine. POLTAVA.
5. OTELO. ato III, cena III.
6. Griboiedov. SAGACIDADE EM DEMASIA E NOCIVO.
KANTAN
Zeami Motokiyo
(?) (1363-1443)
FONTE: Taiheiki, vol. XXV – “O sonho enquanto se cozinhava o painço”, que provém, com inúmeras modificações, do “Chenchung-chi” ou “Crônicas de Travesseiro”, de Shen Chi-chi, autor chinês do século VIII.
KANTAN pertence a uma subdivisão chamada “yugaku-mono”, ou “peças joviais” do Quarto Grupo, que recebe seu nome da danca “gaku” (“jovial”), que contém. Esta dança é inserida num enredo muito elaborado e cheio de contrastes.
O herói é um jovem chines chamado Lu-sheng (Rosei), que nasceu e vive numa parte afastada de Chu (Shoku), hoje Província de Szechwan. Ele se encontra dividido entre dois caminhos: a vida segundo Buda, ou ao mundo e suas promessas de fama e opulência. Ouve falar de um monje e decide procurá-lo para obter iluminação. Ele põe-se a caminho desta sua longa viagem e chega a Hantan* (Kantan), onde se aloja numa estalagem para passar a noite.
Ali existe um travesseiro mágico trazido por um velho taoista versado em bruxaria e, conta a lenda, quem dormir sobre o travesseiro será iluminado através de um sonho. O estalajadeiro, ao saber do objetivo da viagem de Rosei, entrega-lhe o travesseiro e ele dorme, enquanto sua refeição está sendo preparada. Rosei sonha que foi convidado a subir ao trono do imperador, e ele goza das boas coisas da vida durante cinquenta anos.
Subitamente seu sonho é interrompido pelo aviso de que a refeição está pronta. Ao acordar, ele percebe como é onirica a felicidade do mundo e como a única vida digna de ser vivida é aquela que renuncia à carne e que se dedica ao espírito de acordo com Buda. Iluminado, ele volta para casa.
Esta narrativa é dramatizada numa peça de três partes, cada uma refletindo um estado de espírito diferente do herói. Na Primeira Parte, ele está indeciso e disperso, fortemente movido tanto pela ambição quanto pela religião. Ele surge no palco vestindo uma estola e carregando um rosário, mas, de resto, suas vestes são as de um homem normal. Esta inconsistência no vestir é representativa da sua dúvida entre a vida mundana e a espiritual. A Segunda Parte se dá num mundo de sonhos. O herói atingiu o topo da fama e do poder. A “dança jovial” é executada neste momento. A Terceira Parte exibe-o despertando de seu sonho como alguém saturado de prazeres humanos. Percebendo o vazio do mundo que acabou de conhecer, ele finalmente decide seguir o caminho da fé religiosa.
* Cidade na Província de Hopei, China, outrora capital da dinastia Chou durante as Guerras Civis (403-221 AC).
Uma máscara especial – chamada “homem de Kantan” – é usada pelo herói. Ela representa o rosto de um jovem cândido e é feita de modo a permitir que se expressem a melancolia, jovialidade ou serenidade da mente, de acordo com as circunstâncias.
Um estrado, com bambus em cada um dos cantos a sustentarem um telhado simples, é colocado próximo ao assento do “waki”. Ele representa o quarto de dormir na estalagem, nas Primeira e Terceira Partes; na cena do sonho, ele é usado para sugerir o interior de um palácio imperial. A dança do herói / imperador se inicia no estrado; durante sua sequência, o ator vai para o chão, que passa a ser entendido como o salão de banquetes no palacio.
Ao final da dança, quando a cena se desloca do palácio para o quarto de dormir, o ator tem de atirar-se rapidamente no estrado e retomar a postura de quando dormia, na Primeira Parte.
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A VIDA É SONHO (Kantan)
de
Yukio Mishima
Traduzida do inglês
por
Flavio de Campos
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Personagens:
Jiro.
Kiku.
A Beleza.
Dançarinas.
Cavalheiros.
Secretário Particular.
Médico Ilustre.
Médicos.
Funcionária.
(ANTES DA CORTINA SE ABRIR.)
Kiku: (SUA VOZ VEM DAS COXIAS.) Que maravilha você ter vindo!
Jiro: (TAMBÉM DAS COXIAS.) Faz dez anos, não é, Kiku?
Kiku: Você cresceu tanto… Ah, eu carrego.
Jiro: Não, pode deixar. Tudo bem.
Kiku: Por favor, me dá. Eu aguento. E só u’a mala.
(KIKU ENTRA COM A MALA. ELA É UMA MULHER DE MAIS OU MENOS QUARENTA ANOS. JIRO A ACOMPANHA. ELE TEM DEZOITO ANOS; VESTE UM TERNO TRESPASSADO.)
Jiro: (OLHANDO EM VOLTA.) Ainda está escuro como breu.
Kiku: Vai clarear já, já. Os dias são longos nessa época do ano. Por favor, entre.
(KIKU SE AJOELHA E TOCA A CORTINA COM A MÃO: ELA SE ABRE DIANTE DOS DOIS. ELES ESTÃO DE COSTAS PARA A PLATEIA. NO FUNDO, AO CENTRO, ESTA UM “SHOJI”, UMA PORTA DUPLA DE PAPEL, TIPICAMENTE JAPONESA. MUITOS PÁSSAROS, FLORES E OUTROS ENFEITES DE PAPEL RECORTADO PENDEM DO TETO.)
Jiro: Que bonito! Esta arrumado exatamente como o meu quarto, quando eu era menino, não e?
Kiku: E sim. Eu não quero nunca me esquecer daquele quarto. Foi lá que eu criei você. Esse aqui é copia daquele na sua casa em Toquio; sempre quis que ele ficasse igualzinho.
Jiro: Aquele quarto pegou fogo, junto com a casa.
Kiku: Eu sei. Mas aqui não mudou nada.
Jiro: (BATENDO NOS ENFEITES DE PAPEL, FAZENDO-OS GIRAR.) Parece até que eu voltei para aquela casa em Toquio. Quando foi que você arrumou o quarto desse jeito?
Kiku: Faz dez anos. Desde quando eu deixei de trabalhar para a sua familia. Os enfeites, todo mes eu troco por novos.
Jiro: E incrivel como as mulheres se agarram ao passado. E incrivel…
Kiku: Pode implicar a vontade! Você tinha cinco anos e ja falava assim.
Jiro: (SENTANDO-SE NO CHAO.) Blocos de armar! Deve ser o jogo que os meus pais lhe deram como lembranca minha. Meus blocos de armar! Quanto tempo faz que eu brincava com eles? E, esse carrinho passa por baixo da ponte.
Kiku: Ela é baixa um tiquinho de nada. Você sempre levantava a ponte para o carro passar.
Jiro: O carro enguicou.
Kiku: O que?
Jiro: Quero dizer, o carro de verdade.
Kiku: Onde?
Jiro: No meio do caminho. Eu peguei o ultimo onibus, ontem a noite, o das oito. Na metade do caminho para ca, ele enguicou, la na encruzilhada.
Kiku: Lá sempre acontece alguma coisa.
Jiro: A gente esperou, esperou e nada de vir alguem para consertar. Cobri a cabeca com o meu casaco e tirei um cochilo dentro do onibus. Quando eu acordei, passava das tres. Ai’ eu vim andando.
Kiku: Sozinho, pela estrada, a noite?
Jiro: Impossivel alguem se perder naquela estrada. Alem do mais estava claro, as estrelas brilhavam.
Kiku: (INDO SENTAR-SE NOUTRO LUGAR.) Você sabe, pressentimento acaba acontecendo. No meio da noite, eu acordei de repente e me vesti. Eu estava tão agitada, eu sabia que não ia conseguir pegar no sono de novo.
Jiro: Você achou que eu estava vindo?
Kiku: Mas claro! Claro que eu ia ver você de novo!
Jiro: Você achou que eu ia viajar ate aqui so para fazer uma visita?
Kiku: Atras de dinheiro é que ninguem ia vir ate esse fim de mundo… Mas mesmo que seja por dinheiro, eu estou feliz. Tanto faz, eu estou muito feliz so em ver você.
Jiro: Faco ideia. Isso prova, eu acho, que, para mim, as coisas chegaram ao fim. Senão eu nunca teria resolvido vir para cá. Minha vida chegou ao fim.
Kiku: Que é isso?! Você so’ tem dezoito anos! Como é que a vida pode acabar aos dezoito anos? Você não está exagerando?
Jiro: Posso ter so’ dezoito anos, mas sou lucido o bastante para saber quando a minha vida chega ao fim.
Kiku: Mas você nem está ficando careca! Nem corcunda! Você não tem nenhuma ruga no rosto!
Jiro: Você é que não consegue ver. Meu cabelo pode parecer preto, mas ele está é todo branco; meus dentes cairam e minha corcunda vai até os joelhos.
Kiku: Eu, eu não estou entendendo nada.
Jiro: é, eu sei. (PAUSA)
Kiku: Patrãozinho… será que… bem… você… uma moca por ai’, quem sabe?
Jiro: Você está perguntando se eu estou apaixonado?
Kiku: E. Foi isso que aconteceu com você?
Jiro: (BRUSCAMENTE) Eu nunca amei ninguem, nem nunca ninguem me amou.
Kiku: Então não é caso de amor não correspondido?
Jiro: Não seja boba, Kiku. “Amor não correspondido”… Que criancice.
Kiku: (ARREGALANDO OS OLHOS) Mas, mas então o que é? Você sofreu a traição de um amigo?
Jiro: Amigo? Nunca tive amigo.
Kiku: Você passou nos exames?
Jiro: Larguei a escola faz muito tempo.
Kiku: Então você foi maltratado pelo mundo…
Jiro: Fiquei em casa, à toa.
Kiku: Mas então por que a sua vida acabou? Por que, se ela nem comecou?
Jiro: Ela acabou antes de ter comecado.
Kiku: Fico morta de medo quando você implica e faz troca de mim desse jeito.
Jiro: Velha boba, não fique ai’ se iludindo.
Kiku: Já sei. Você dormiu pouco essa noite e está com os nervos à flor da pele. Por que você não da uma deitadinha? Vamos, tire um bom cochilo enquanto Kiku prepara a sua comida. Você vai se sentir outro. Vou arrumar a cama.
Jiro: (FICA DE PE, ENTREABRE O “SHOJI”, OLHA PARA FORA.) Kiku, por que todas as plantas do jardim estão murchas? Não tem uma flor aberta. Esse jardim, que estranho, todo preto, todo quieto.
Kiku: (RETIRANDO A COLCHA DA CAMA.) Esta morto. As flores não desabrocham e as frutas não nascem. Esta assim já faz tempo.
Jiro: “Ja faz tempo” quer dizer desde que o seu marido foi embora?
Kiku: Então você já sabe.
Jiro: Não foi em livro que eu aprendi… Outro dia eu encontrei um homem-sanduiche vestido de Charles Chaplin. Era um solteirão e seus unicos prazeres na vida são tomar cafe e ir ao cinema. So’ precisa de cafe e cinema para ficar feliz. Ele me contou.
Kiku: Contou o que?
Jiro: O travesseiro, claro.
Kiku: (ELA RECUA, APAVORADA.) Ah…!
Jiro: Ele contou que você tem um travesseiro muito especial por aqui. Agora chega, não fique assim tão apavorada. Eu so’ estou lhe contando o que esse Chaplin me contou.
Kiku: Você não deve levar essas estorias a serio.
Jiro: Está bem. Mas você tem um travesseiro. Não sei como é que você conseguiu, mas o que importa é que ele está aqui… Certa vez – era verão, me disseram – aconteceu do seu marido achar o travesseiro e tirar um cochilo sobre ele. Na hora, você estava na cidade, fazendo compras. De noite, quando você voltou, não encontrou mais o seu marido. Para onde é que ele podia ter ido? Ele nunca mais voltou.
Kiku: Por favor, chega; chega, por favor. Eu não aguento falar dessas coisas.
Jiro: Os lirios, os cravos… Desde esse dia as flores do seu jardim nunca mais desabrocharam. Verdade, não é?
Kiku: é… é verdade… O travesseiro veio – isso faz muito tempo – de um lugar na China chamado Kantan. Ele passou de geração em geração ate que se tornou uma heranca da minha familia.
Jiro: Mas por que será que quando alguem dorme nesse travesseiro…?
Kiku: Eu não sei, não sei porque. Eu nunca tive coragem de dormir nele.
Jiro: Sabe o que o Chaplin me contou? Ele disse que se você dorme no travesseiro e sonha, o mundo perde o sentido, depois. Ai, quando você olha para o rosto da sua mulher, você não entende porque você viveu com essa mulher esse tempo todo. Ele disse que ai ele saiu de casa, na mesma hora.
(KIKU CHORA.)
Jiro: Desculpe, Kiku. Eu fiz você chorar? Desculpe.
Kiku: Não precisa pedir desculpas, patrãozinho. Você não tem culpa nenhuma.
Jiro: Mas, Kiku, você não usou o travesseiro nenhuma vez, esse tempo todo?
Kiku: Será que eu devo lhe contar tudo? Usei tres vezes.
Jiro: Tres vezes?
Kiku: Foi. Tem homem que é muito esquisito com mulher, você sabe. Depois que o meu marido me deixou, assim, apareceram uns homens, com propostas, investidas… E sempre aquele travesseiro vinha a calhar.
Jiro: Vinha a calhar? Quer dizer, eles desapareceram?
Kiku: Foi. Bem… é muito dificil explicar.
Jiro: Fala, por favor, fala!
Kiku: é dificil, mas não é nada que me de vergonha.
Jiro: Fala, Kiku. Por favor, fala.
(ELE TOCA-A NO JOELHO.)
Kiku: Quando você queria bolo – me lembro direitinho – você sacudia o meu joelho assim mesmo.
Jiro: Me conta! Não muda de assunto.
Kiku: Muito bem, vou contar. Eu consegui, gracas ao travesseiro, eu consegui me preservar.
Jiro: O que que você quer dizer com isso?
Kiku: E que, quando as coisas ficavam delicadas, eu oferecia o travesseiro. Podia ser o homem que fosse, não fazia diferenca. Ele ia dormir e quando abria os olhos tudo parecia absurdo para ele. Ele mal me olhava. Ai, patrãozinho, um por um, eles saiam por ai, para nunca mais serem vistos.
Jiro: O que que você quer dizer com “tudo parecia absurdo”?
Kiku: Mulheres, dinheiro, fama…
Jiro: Bem, então não vai ser novidade para mim: mulher é que nem bolha de sabão, dinheiro é que nem bolha de sabão, fama, a mesma coisa. E o mundo em que a gente vive é so o que a gente ve refletido nessas bolhas de sabão. Disso eu sei.
Kiku: So’ em palavras.
Jiro: Não, isso não é verdade. Eu vi atraves de todas as coisas. E por isso que a minha vida chegou ao fim. E é por isso, Kiku, que eu sou o unico homem que pode dormir nesse travesseiro sem correr risco algum.
Kiku: Não sei, não. Fico triste so em pensar que, depois de acordar, você pode olhar para essa Kiku como se ela fosse uma estranha, e depois desaparecer para nunca mais voltar.
Jiro: Não se preocupe. Eu não corro risco algum. Eu nunca vou ficar que nem aquele Chaplin.
Kiku: Chaplin?
Jiro: É, o seu marido.
Kiku: Como é que você sabe?
Jiro: Escuta: eu sei tudo.
(PAUSA)
Kiku: Então vamos combinar uma coisa, patrãozinho? Se o travesseiro fizer você sair por ai, você me leva junto?
Jiro: Mas se eu estou lhe dizendo, está tudo definido. O travesseiro não vai ter nenhum efeito sobre mim. Eu vim até aqui so’ para provar isso.
Kiku: Mesmo assim, eu olho para o seu rosto e vejo agua correndo para muito longe.
Jiro: De que que você está falando? Não, anda logo, o dia ja vai raiar, traz o travesseiro.
Kiku: Mas se pelo menos você prometesse que me levava junto…
Jiro: Mesmo que eu prometesse, não ia adiantar nada. Eu não vou embora.
Kiku: Mas e se, quem sabe, uma chance num milhão…
Jiro: Você está contando com essa chance num milhão, não esta? Você quer sair a procura do seu marido.
Kiku: (CONFUSA) Eu nunca ia fazer essa bob…/
Jiro: Ia, ia sim! Você está enrubescendo!
Kiku: Você não entende, patrãozinho. Doi muito esperar.
Jiro: E se você dormisse no travesseiro, so uma vez? Ai você podia se esquecer completamente do seu marido.
Kiku: Não tenho coragem. Tenho medo do que o travesseiro pode fazer.
Jiro: Se você tem medo, então não. Mas anda, traz o travesseiro!
Kiku: Sempre achei que eu ia ficar aqui, virar farelo, em paz, so isso. Mas, por causa de você, patrãozinho, minhas esperancas futeis…
Jiro: Uma chance num milhão, Kiku, so’ isso.
Kiku: Está bem. Vou buscar o travesseiro.
Jiro: Estou com sono, estou com muito sono. Anda logo, o dia já vai raiar.
Kiku: Está bem. Volto já.
(ELA SAI.)
Coro: O travesseiro é inocente,
A cabeca sobre ele, não.
Os passarinhos já não cantam,
As flores já não desabrocham,
Mas o travesseiro é inocente,
E o homem, não.
O travesseiro é inocente,
Os passarinhos, não.
O travesseiro é inocente,
As flores, não.
Nasce o dia, morre o dia,
As florestas verdes
Sussurram ao vento.
Inuteis,
Tremulam, tremulam…
E o lirio não desabrocha.
(DURANTE ESTE CANTO, JIRO TIRA O CASACO E DEITA-SE NA CAMA. KIKU ENTRA COM O TRAVESSEIRO E COLOCA-O SOB A CABECA DE JIRO. ELA SAI. AO FINAL DO CANTO CORAL, ENTRA A BELEZA, PELO CENTRO, AO FUNDO DO PALCO. ELA USA UMA MASCARA E UM VESTIDO DE GALA.)
Beleza: Jiro… Jiro…
Coro: Acorda… Acorda…
Beleza: Jiro… Jiro…
Coro: Acorda… Acorda…
Jiro: (ACORDANDO E SENTANDO-SE NA CAMA.) O que é? Quem é você? (COM ADMIRACAO.) é… você é uma beleza!
Beleza: Adivinha quem sou eu.
Jiro: (COM DESPRAZER) Ah, as mulheres! Antes de dizerem quem são, tem sempre que fazer um teatro.
Beleza: Você gosta de mulheres diretas, não é? Que coisa mais fora de moda! A mulher so’ é interessante – você sabe disso – se ela resiste.
Jiro: Não me amola com suas frases banais.
Beleza: Este é o meu nome: Banal.
Jiro: Nunca ouvi nome tão idiota.
Beleza: Mas, veja bem, se Banal vira nome proprio, então frase Banal deixa de ser frase banal.
Jiro: Não, virou trocadilho, agora!
Beleza: Oh! Suas mãos estão tremulas que nem borboletas! Deixa que eu pego para você.
(ELA LHE TOMA AS MAOS ENTRE AS SUAS.)
Beleza: Peguei! Se não fosse eu, suas mãos teriam voado.
Jiro: Você tem a imaginação solta.
Beleza: (SORRINDO MALICIOSAMENTE.) Eu so’ estou imitando você.
Jiro: O que que acontece quando uma mulher que conhece os homens imita um homem que não conhece as mulheres?
Beleza: Que coisa mais complicada você me pergunta, homenzinho!
Jiro: Você acaba ficando com uma mulher que não conhece homem.
Beleza: Se você vai ficar ai dizendo essas coisas e se achando muito esperto… Vamos tomar a bebida que Banal trouxe para você.
Jiro: Para mim, não. Não gosto de ficar bebado.
Beleza: Não existe bebida que não embebede.
Jiro: é por isso que eu não gosto de beber.
Beleza: Isso você diz agora, mas dentro de dez anos você vai ser um bebado acabado.
Jiro: Pode ser. Mas se daqui a dez anos eu vou virar um bebado, então por que que eu devo beber agora?
Beleza: Seus olhinhos ficam lindos quando você argumenta, olhos bebados nos seus proprios argumentos.
Jiro: Ah! Uma coisa medonha chispou dos seus olhos agora mesmo.
Beleza: O que foi?
Jiro: às vezes, dos olhos de uma mulher brota um lobo.
Beleza: Geralmente é um engano por parte do pastor.
Jiro: Não gosto de nada em você.
Beleza: Não faz diferenca, dentro de seis meses nos estamos casados.
Jiro: Não amo nada em você.
Beleza: Não faz diferenca, daqui a pouco nos estamos casados.
Jiro: Não tem pessoa no mundo que goste da poeira que se acumula nos bolsos das calcas, mas ela se acumula assim mesmo, e vai se acumulando pela vida a fora. As lavanderias não são la muito eficientes.
Beleza: (NUMA ENTONACAO CANTADA.) As lavanderias não são la muito eficientes… Depois, nos, em lua de mel.
Jiro: Gorjetas e mais gorjetas, paisagens e paisagens entre bocejos e mais bocejos, fotografias fora de foco, adultos num circo mambembe para criancas – e, na corda-bamba, com um parassol, o macaquinho se balanca…
Beleza: Você fala como se já tivesse vivido isso.
Jiro: Lua de mel… Lua de mel é so’ um teste do equipamento de cada um, não é não?
Beleza: (BATENDO PALMAS.) Que coisas encantadoras que você diz! E você é so’ uma crianca!
Jiro: Nos primeiros cinco anos você brilha que nem bicicleta nova. E para por ai’. Dai’ para frente a bicicleta vai enferrujando, enferrujando… O que as pessoas chamam de bom marido e um homem que nunca deixa sua mulher perceber que ele poderia andar, mesmo que não tivesse bicicleta.
Beleza: Você acha que vai me vencer com essas palavras, mas ai’ é que você se engana. Essa sua adversaria não foi nem arranhada! Imagine so: de manha eu vou me levantar antes de você e vou fazer torradas com ovo quente; você vai segurar o ovo assim, vai quebrar a casca com uma colher – teque, teque, teque…
Jiro: E dai’? Um ovo é um ovo.
Beleza: Ai’ eu vou dizer: – Mas como você é desajeitado! Deixa que eu faco.
Jiro: Você! Detesto gente intrometida.
Beleza: – Oh, querido, esse ovo ficou duro!
Jiro: Mulher na cozinha sempre dá nisso. A comida, ou passa do ponto, ou fica crua; ou salgada demais, ou doce demais.
Beleza: Olha que bonitinho o ovo que eu descasquei para você. Agora abra a boca e…
(ELA BEIJA-O DE REPENTE.)
Jiro: Não consigo respirar! Que coisa horrivel…
Beleza: Bobinho. Você não sabe nada. Para que você tem nariz? Nariz foi feito para você respirar enquanto beija.
Jiro: Detesto respirar pelo nariz.
Beleza: E por isso que a sua boca está sempre escancarada.
Jiro: Sabe de uma coisa? Você é bonita.
Beleza: Até que enfim você abriu os olhos!
Jiro: Parecia uma mascara me beijando.
Beleza: Assim é que são os beijos de mulher.
Jiro: Você é bonita mesmo. Mas se arrancar a pele, so’ vai sobrar uma caveira.
Beleza: Você é horrendo! Nunca pensei nisso.
(ELA TOCA SEU PROPRIO ROSTO.)
Jiro: Será que algumas caveiras são tidas como beldades entre as demais?
Beleza: Acho que sim. Algumas são, com certeza.
Jiro: Que seguranca a sua! Mas agora mesmo, quando você me beijou, eu sabia que por tras do seu rosto os ossos estavam rindo.
Beleza: Se o meu rosto ri, os ossos riem tambem.
Jiro: E isso o que você tem a dizer? Esta certo, quando o rosto ri, os ossos estão rindo. Mas os ossos riem tambem quando o rosto está chorando. O ossos dizem: – Se quiser, pode rir; pode chorar, se quiser. Daqui a pouquinho chega a nossa hora.
Beleza: A hora dos ossos! Que divino pensar numa coisa dessas!
Jiro: Mulher so tem dois valores criticos: “Que divino!”, ou então “Que tolice!”. So’ tem esses dois.
Beleza: Você é um cinico adoravel!
(ELA OLHA AFETUOSAMENTE PARA JIRO. SUBITO, DE UM BERCO A DIREITA DO PALCO, OUVE-SE O CHORO FORTE DE UMA CRIANCA.)
Beleza: Nosso filho nasceu!
Jiro: Hum! Que nem torrada pulando da torradeira.
Beleza: (OLHANDO DENTRO DO BERCO.) Não é uma gracinha? Nenem ve mamae? Uu-uuu! Mamae ve nenem!
Jiro: Para com isso! é ridiculo. Você não é Papai Noel de Shopping Center.
Beleza: Vem ver papai, vem? Pronto, não chora, não. Papai ainda é uma crianca tambem, mas ele é muito cabecudo em certas coisas.
(TRAZENDO O BERCO ATE A CAMA DE JIRO.)
Beleza: Papai, olha, papai! E o nosso primeiro filho!
Jiro: Hum-hum. Nossa primeira caveira?
Beleza: O que você acha? é com você ou comigo que ele se parece?
Jiro: (AFASTANDO O OLHAR.) Uma crianca nasceu para dentro desse mundo das sombras escuras. Na barriga da mae ela tinha mais cores. Por que sera que ela quis troca-las pelo negrume? Idiotinha. Ela, eu não consigo entender…
Beleza: Ele está piscando! Ele riu!
Jiro: Os ossos ja aprenderam a rir. Isso é assustador, você não acha?
Beleza: Uu-uuu.
Jiro: Eu rezo, eu suplico que isso seja so’ um sonho.
Beleza: Uu-uuu! Mamae ve nenem!
Jiro: So’ um sonho…
Beleza: Ele está rindo para o papai.
Jiro: Está é? é com você ou comigo que ele se parece?
Beleza: Pode falar o que quiser, mas eu sei que no fundo você está interessado nele.
Jiro: Hum? Com quem ele se parece?
Beleza: Se você faz essa cara medonha, ele vai acabar chorando. Já que você pergunta, sou obrigada a dizer que ele se parece mais com o pai do que comigo.
Jiro: é mesmo?
Beleza: As sobrancelhas, o nariz, a boca… Da para ver a silhueta do seu rosto atras do dele.
Jiro: Então ele se parece comigo.
Beleza: Você devia ficar feliz.
Jiro: Eu não gosto disso, de ele se parecer comigo.
Beleza: Você é tão modesto.
Jiro: Que nojo, nasceu um fedelho que se parece comigo!
Beleza: (GRITANDO DE DOR.) Para com isso!
Jiro: (APANHANDO UM CINZEIRO A CABECEIRA DA CAMA E SOCANDO FURIOSAMENTE O INTERIOR DO BERCO.) Ele vai ver!
Beleza: Para! O que você está fazendo? Para com isso!
Jiro: Morreu.
Beleza: Meu filhinho! Que horror!
Jiro: Melhor assim. Se ele tivesse vivido, ele ia crescer, e mais cedo ou mais tarde ele ia sofrer por causa da sua semelhanca com o pai. Esse é o destino de todo mundo.
Beleza: Homem horrendo! Você tem ciume até do seu filho!
Jiro: Isso mesmo. Eu não admito que ninguem se pareca comigo.
Beleza: (CHORANDO.) Monstro horrendo…
Jiro: Olha, os ossos estão rindo.
Beleza: E eu te amo assim mesmo.
Jiro: Eu esperava por isso.
Beleza: Agora eu entendo! Você matou o nenem porque você me ama. Você estava com medo de ter alguem entre nos. Foi isso, não foi? Eu te amo. Eu te amo muito. Agora eu entendo. Você é um homem muito passional. Eu não tinha percebido como você era passional. Que tolice a minha. O nenem já é coisa do passado, eu te perdoo. Eu te perdoo tudo, tudinho.
Jiro: A vaidade da mulher se amolda segundo às regras da conveniencia.
Beleza: Jiro, em troca, nunca me abandone.
Jiro: Se você for uma esposa fiel…
Beleza: Eu serei! Vou fazer tudo. Vou esfregar o chão, varrer, costurar as suas roupas, tudo. Se você disser para eu andar nua pelas ruas, eu ando.
Jiro: Bela decisão! Antes de mais nada, você nunca deve ter ciumes.
Beleza: Sim, sim; eu me submeto a tudo, tudo.
Jiro: (ESPREGUICANDO-SE.) Deixe-me ver… Ah, sim. Sou um pai que perdeu o filho. Preciso de consolo, de alguma coisa que me alegre, uma diversão, como os outros homens tem.
Beleza: Esta certo. Divirta-se o quanto quiser. Eu so vou olhar. Você pode fazer o que quiser, eu so vou olhar e nunca vou ter ciumes. Vou ser paciente e olhar. Tudo o que eu quero é poder olhar para você. Sou feliz.
(OUVE-SE UMA MUSICA ESTRANHA E SENSUAL.)
Beleza: Vou ficar em silencio e olhar para você, como um lirio.
Jiro: Um lirio! Está bem, você pode me olhar à vontade. Olhar não custa nada.
(A BELEZA SENTA-SE NUMA CADEIRA DE CRIANCA, A DIREITA. ENTRAM TRES DANCARINAS SEMINUAS, USANDO MASCARAS. ELAS FORMAM UM CIRCULO E DANCAM.)
Coro: O travesseiro é inocente.
Você danca: o sol brilha,
As nuvens brilham.
Você danca: sua vida é outra.
A danca é inocente.
Você danca: sua sombra é outra.
Dancarina 1: Jiro… Jiro…
Coro: Danca! Danca! Danca!
Dancarina 2: Jiro… Jiro…
Coro: Danca! Danca! Danca!
Dancarina 3: Jiro… Jiro…
Coro: Danca! Danca! Danca!
(AS TRES DANCARINAS TENTAM TRAZER JIRO PARA A DANCA, SEM SUCESSO: ELE PERMANECE INFLEXIVEL. DEITADO NA CAMA, A CABECA APOIADA NAS MAOS, ELE OBSERVA-AS. POR FIM, ELAS DESISTEM E SENTAM-SE NA CAMA, à VOLTA DELE.)
Dancarina 1: Que olhos lindos! Nunca vi homem com olhos tão divinos.
Jiro: Você diz isso porque ve o seu rosto refletido neles, não é?
Dancarina 1: Você não é muito gentil.
Dancarina 2: Que dentes lindos!
Jiro: Escovo todos os dias com acido sulfurico.
Dancarina 2: Que homem feroz! Ele é maravilhoso!
Jiro: Sua mão é bem gordinha, boa de se comer.
Dancarina 2: Pode comer à vontade. Cresce outra no lugar.
(AS DANCARINAS RIEM.)
Jiro: Vocês não sabem falar nada sem rir? Não tem nada mais chato do que mulher quando comeca a rir. A gente nunca sabe quando é que ela vai parar.
As Dancarinas: As coisas que ele diz não são gozadissimas?
Dancarina 3: Agora é a minha vez. Eu adoro a testa do Jiro. E alva, larga. Parece pista de aterrissagem.
Jiro: Seria uma pena ela ficar assim. Uma de vocês devia adubar e plantar alguma coisa aqui.
Dancarina 1: Eu…
Dancarina 2: Não, eu.
Dancarina 3: Deixa que eu…
Dancarina 1: Nós todas.
Jiro: Está bem, está bem… Vamos imaginar: vocês plantam as sementes – por exemplo, cenoura e nabo. Quando vocês menos esperam, as cenouras ja cresceram, os nabos ja cresceram. Vocês arrancam as cenouras e os nabos da minha testa e cozinham ate formarem uma pasta. Ai vocês derramam tudo num prato…
Dancarina 1: Sim, e ai’?
Jiro: Vocês devoram tudo.
Dancarina 1: Oh-hh!
Jiro: Vocês raspam o prato.
Dancarina 2: E ai’?
Dancarina 3: Que estoria maravilhosa! E depois?
Jiro: é so’ isso. é que nem a vida. Vocês entenderam, não e? Se entenderam, vão embora – e depressa.
Dancarina 1: Não, Jiro, eu não quero ir.
Jiro: Que praga! Vão embora, depressa!
Dancarina 2: Como ele é grosseiro! Mas tenho de confessar, existe um certo charme na sua frieza.
Jiro: Já disse, vocês são umas pragas! Vão embora! Me deixem sozinho!
Dancarina 3: Esta bem, a gente vai embora. Mas da uma boa gorjeta, vai.
Dancarina 1: Na proxima vez a gente precisa passar muito mais tempo juntos.
Dancarina 2: Jiro, eu percebi que você era generoso na hora em que meus olhos bateram em você. Adoro gente com rosto franco.
(ENQUANTO ELA FALA, SURGE A DIREITA UM HOMEM DE TERNO, COM UMA MASCARA DE SENHOR DE MEIA IDADE: O SECRETARIO. ELE FAZ UM SINAL PARA AS DANCARINAS, ASSINA UM CHEQUE E ENTREGA-O PARA ELAS. AS DANCARINAS E A BELEZA SAEM PELA DIREITA.)
Jiro: Quem é o senhor? O senhor pagou as mocas? Lamento te-lo incomodado. Aconteceu de eu estar sem trocado.
(O HOMEM SE APROXIMA E ENTREGA-LHE SEU CARTAO DE VISITAS.)
Secretario: Meu senhor, tenho a honra de ser o seu secretario particular. O dinheiro que dei era seu. Com a sua anuencia, é claro. Assinei o cheque por procuração. Dei a elas 10 mil yens, acrescidos de 2 mil a titulo de gratificação. Sem duvida, está verdadeiramente impossivel alguem divertir-se nesses nossos dias, a não ser a custa de vastas somas. Arrancam-lhe ate o ultimo centavo que conseguirem. Basta estarem a par dos lucros da nossa companhia.
Jiro: Nossa companhia?
Secretario: Quero dizer, da sua companhia, senhor, Senhor Presidente.
Jiro: Presidente?
Secretario: Não existe necessidade de fingir ignorancia, senhor. Isto não lhe cai bem. Parece possuir certos caprichos, Senhor Presidente…
Jiro: Presidente? Esta bem, seja como você quiser. Eu ia acabar presidente mesmo… Muito bem, prepare-me um relatorio detalhado sobre o montante do capital da firma, bem como sobre os meus bens pessoais.
Secretario: Pois não, senhor. Imediatamente.
(ELE FAZ UM SINAL PARA A DIREITA. UMA FUNCIONARIA, USANDO A MASCARA APROPRIADA, TRAZ NUMA BANDEJA UM APARELHO DE TELEFONE E UM LIVRO DE CONTABILIDADE. ELA COLOCA O TELEFONE JUNTO AO TRAVESSEIRO DE JIRO E O LIVRO DE CONTABILIDADE DIANTE DO SECRETARIO. ELA SAI.)
Jiro: Leia em voz alta.
Secretario: Pois não, senhor.
(O SECRETARIO COLOCA OS OCULOS. O TELEFONE TOCA. O SECRETARIO ATENDE.)
Secretario: Sim. Sim, senhor. O presidente se encontra aqui. (COBRINDO O BOCAL COM A MAO.) Novamente aquela firma de Osaka. O mesmo de sempre.
Jiro: (ABORRECIDO.) Está bem, está bem. (ELE PEGA O FONE.) Pronto, ele mesmo… Sei… Hum-hum… Hum-hum… é verdade… Oh… Compreendo… Hum-hum… Mesmo?… Bem… Hum-h
um… Hum-hum… Ha-ha… Sei… Sei… Sei… Sei… Oh… Hum-hum… Hum-hum… Ha-ha… Tchau. (ELE DESLIGA.)
Secretario: O senhor é a imagem viva do presidente anterior! Ao telefone, o senhor e rigorosamente identico. Era exatamente esta a maneira com que ele se desvencilhava de chamadas inconvenientes. Nisto ele era impecavel. Dele jamais se ouvia um “sim” ou um “não”. Que gloria saber que seu filho herdou-lhe o genio. Não, não há duvida: tal pai, tal filho… Curioso, sentado aqui, sinto como se estivesse em presenca dele… Ah, as lembrancas que me chegam!
(ELE RETIRA OS OCULOS E OLHA PARA O ALTO.)
Secretario: Pela manha, tão logo abria os olhos, ele mandava me chamar. Eu passava algum tempo a sua cabeceira para me inteirar dos planos para aquele dia e responder as chamadas telefonicas. Em seguida chegava o jornal. Era da coluna de fofocas que ele gostava; depois das cotações da Bolsa, era o que ele lia. Em seguida, mesmo aquela hora da manha, vinham – ha! ha! – as piadas, as de sempre – é mesmo! Em seguida, sua famosa galinha cozida. Ele sempre quebrava o jejum com galinha cozida. As pessoas diziam ser esta a razão de ele, naquela idade, ainda gozar de todo o seu vigor. Durante um bom tempo sua galinha cozida esteve muito em voga nos circulos financeiros. Maior honra não poderia ter-me tocado senão a de ter podido partilhar da sua galinha cozida. Todas as manhas, com o coração tomado pela gratidão, eu comia moela, figado – ele comia as partes tenras, e eu, as demais. Ah, aquelas refeições matinais, como descreve-las…?
Jiro: Leia a contabilidade.
Secretario: (COLOCANDO OS OCULOS.) Pois não, senhor. Imediatamente.
(O TELEFONE TOCA. JIRO ATENDE.)
Jiro: Pronto, ele mesmo… Hum-hum… Bla-bla-bla… Ha-ha… Ora… Mesmo?… Hum-hum… Tchau.
Secretario: (FAZENDO UMA MESURA.) Esplendido! Esplendido!
Jiro: E a contabilidade?
Secretario: Pois não, senhor.
(O TELEFONE TOCA. O SECRETARIO ATENDE.)
Secretario: Sim. Sim, correto, ele está.
(ENTREGA O FONE PARA JIRO.)
Jiro: É ele. Mas a essa hora da manha! Estou ocupado. Ah, garota, estou cheio das suas lamurias. E você lá sabe? Tem gente que chora no telefone. Você devia ter vergonha… Não, chega, acabou. Isso mesmo: ponto final. Depois eu mando dinheiro pelo meu secretario. Falei claro, não falei? (ELE DESLIGA.)
Secretario: Esplendido: “ponto final”! Que determinação! O presidente anterior deve estar regozijando-se em seu tumulo. A falar a verdade, ainda que não esteja entre as minhas atribuições a de dar-lhe conselhos, devo confessar que eu estava bastante preocupado quanto a esta questão. Mas o senhor deu-lhe um fim de forma cabal. Sua indole é verdadeiramente ilustre.
Jiro: E agora dá para eu saber da contabilidade?
Secretario: Pois não, senhor. Eu me deixei levar… O capital da firma, como o senhor não ignora, é de 230 milhões de yens. O ativo monta a…
Jiro: As minhas ações, qual é o montante delas?
Secretario: Pois não, senhor. Deixe-me ver… (ELE VIRA AS PAGINAS.)
Coro: (RUIDO DE GRITOS E GEMIDOS.)
Jiro: Que foi isso?
Coro: (OS MESMOS RUIDOS.)
Secretario: Não merece a sua consideração, senhor. O sindicato está promovendo agitação em torno de alguma coisa.
Coro: (OS MESMOS RUIDOS.)
Jiro: E muita agitação para um sindicato so…
Coro: (OS MESMOS RUIDOS.)
Secretario: (OLHANDO PARA TRAS.) O senhor tem razão. O populacho tambem participa.
Coro: (OS MESMOS RUIDOS.)
Jiro: A quanto montam as minhas ações?
Secretario: Cincoenta e cinco por cento.
Jiro: (JOGANDO A CABECA SOBRE O TRAVESSEIRO.) Vende tudo.
Secretario: Pois não, senhor!
Jiro: Todas.
Secretario: Vai causar rebulico no Conselho e na assembleia dos acionistas.
Jiro: Antes da gente passar para isso, e as minhas propriedades particulares?
Secretario: Oito milhões em bens imoveis, 12 milhões em titulos – evidentemente encobertos por alguns malabarismos para escapar do imposto de renda – o que totaliza 20 milhões de yens.
Jiro: Vende isso primeiro.
Secretario: Senhor Presidente, queira ter certeza do que está fazendo.
Coro: (OS MESMOS RUIDOS.)
Jiro: Distribui o que apurar entre os sindicatos. O resto, dá para as obras sociais.
Secretario: Deve existir uma forte razão por detras…
Jiro: Não tem razão nenhuma, não. Eu estou é com sono; eu quero é dormir, so’ isso.
(ELE VIRA-SE DE COSTAS PARA A PLATEIA E DORME.)
Secretario: (PARA SI MESMO.) Ha-ha! Entendi tudo. Ele tem ambições politicas. (LEVANDO O TELEFONE ATE A MESINHA, A DIREITA.) Alo, alo… E do Jornal do Japão? Editoria politica; o senhor Noyama, por favor. (PARA SI.) Preciso assessorar o presidente em sua carreira politica, ainda que isso me acabe com a saude, ainda que isso me acabe com a vida… Alo, Noyama? Tenho uma noticia quente para você. O presidente da minha companhia está revertendo toda a sua fortuna para os sindicatos e as obras sociais. Ele vai fundar um novo partido, sem um tostão. Isso mesmo. Por favor, de a cobertura devida. Falo com você amanha ou depois. Por favor… Sim… Por favor, isso mesmo.
(O PALCO ESCURECE. O SECRETARIO SAI. O CORO CANTA A MESMA CANCAO DA ENTRADA DA BELEZA. A LUZ SE ACENDE. DOIS HOMENS COM MASCARAS DE CAVALHEIROS IDOSOS ESTAO DE PE, VOLTADOS PARA A DIREITA.)
Cavalheiro 1: A reviravolta é total.
Cavalheiro 2: Não resta a menor duvida.
Cavalheiro 1: Uma especie de “coup d’etat”.
Cavalheiro 2: Mais do que um “coup d’etat”, um massacre. Fomos destruidos direitinho.
Cavalheiro 1: Nem tres anos se passaram desde que ele dizimou a sua fortuna para entrar na politica…
Cavalheiro 2: Pensando bem, era isto que deviamos ter feito.
Cavalheiro 1: Mas mesmo que um homem sem recursos como eu quisesse jogar fora todo o seu dinheiro, existe um limite quanto ao que ele podia dizimar.
Cavalheiro 2: O senhor sempre diz isso, mas aposto que tem uma fortuna escondida dentro do poco de sua casa.
Cavalheiro 1: Para o poco da minha casa, eu tenho uma utilidade mais importante do que esconder dinheiro. E lá que eu pretendo me esconder se as coisas ficarem pretas.
Cavalheiro 2: é uma vergonha o senhor, nessa idade, ter medo da morte. Eu sempre carrego veneno comigo. Faz parte dos apetrechos pessoais de um politico de hoje em dia.
(ORGULHOSO, ELE EXIBE O VENENO AO CAVALHEIRO 1, QUE EXAMINA ATENTAMENTE O FRASCO. DURANTE A CONVERSA QUE SE SEGUE, O VENENO E COLOCADO NA MESA, ONDE SERA ESQUECIDO.)
Cavalheiro 1: Está tudo acabado, agora que ele tem sob controle a mafia dos militares…
Cavalheiro 2: Era de se esperar, os chefes militares de cachorrinhos do Partido…
Cavalheiro 1: Como é facil virar heroi; basta não ter desejos. Atraves da indiferenca um homem consegue mais poder do que atraves da ambição. Veja bem, nesses nossos dias um simples rapazola pode dominar o pais so’ porque age com indiferenca e afirma – aparentemente com sinceridade – não precisar de dinheiro, mulheres ou fama.
Cavalheiro 2: O que aconteceria se o senhor agisse com indiferenca?
Cavalheiro 1: Agora é tarde.
Cavalheiro 2: Bom, pelo menos o senhor está consciente disto.
Cavalheiro 1: No entanto…
Cavalheiro 2: Permita-me informa-lo, mas “no entanto” é uma locução que so’ pode ser usada por intelectuais; não é locução de politico.
Cavalheiro 1: O senhor está ficando um rabugento. E inevitavel, creio eu. Mas como eu ia dizendo, no entanto, agora que ele tem os militares na coleira, a Camara e o Senado na mão e é lider das organizações de base, o proximo passo é a guerra.
Cavalheiro 2: Os preparativos já terminaram. O senhor já percebeu como os empresarios da industria pesada deram para posar de patriotas, ultimamente? Ontem mesmo, no Clube dos Industriais, alguem fez um discurso que me deu uma indigestão brutal.
Cavalheiro 1: Dizem que a comida de lá continua boa.
Cavalheiro 2: Pois é. Eu não aguento esta padronização das refeições. Meus rins sofrem se eu não como pelo menos uma boa refeição por semana.
Cavalheiro 1: é impressionante como os ditadores preferem comidas insossas. Talvez eles se martirizem, para terem a sensação de estar servindo a nação. Este ai com certeza dorme tarde, a julgar pela pessima qualidade do que come.
Cavalheiro 2: Enquanto dorme, os outros elaboram os planos para ele. Depois acorda, com o rosto tomado por aquela palidez mortal. E faz discursos, preside comicios, recebe representantes estrangeiros. E é so’.
Cavalheiro 1: E tudo está sob controle…
Cavalheiro 2: …de um ditador dorminhoco.
Cavalheiro 1: Enquanto ele dormia, o programa foi tracado.
Cavalheiro 2: Belo papel, não e? O ditador adormecido. Mesmo naquele dia em que veio com seus guarda-costas, tiveram de entupi-lo de estimulantes e ele se aguentou de pé a noite toda, os olhos arregalados que nem dois pires.
Cavalheiro 1: Veja! Enquanto nosso lider e senhor dorme, as ruas acordam e saltam para a vida.
Cavalheiro 2: Mas essas bandeirolas plebeias a panejar pelas ruas da cidade que nos viu nascer!
Cavalheiro 1: O senhor não acha lindas as nuvens da manha? So depois que fiquei velho e comecei a acordar cedo e que pude apreciar isto.
Cavalheiro 2: Não consigo escuta-lo. O Comite dos Jovens ja iniciou o seu desfile.
Cavalheiro 1: Um estado em petição de miseria. Hoje em dia os jovens acordam mais cedo do que os velhos.
(OUVE-SE UMA BANDA DE METAIS QUE SE APROXIMA.)
Coro: Viva Jiro! Vida longa, viva Jiro!
Cavalheiro 1: Viva Jiro? A que estado deploravel o mundo chegou!
Coro: Viva Jiro! Vida longa, viva Jiro!
Cavalheiro 1: Houve um tempo em que se dizia “Vida longa para o
Rei!” Que decadencia! As massas perderam o bom gosto.
Coro: Viva Jiro! Vida longa, viva Jiro!
Cavalheiro 1: So’ de ouvir essas vozes o meu reumatismo estrila. Vamos fumar um charuto lá no saguão.
Cavalheiro 2: Excelente ideia. Ate que o nosso lider Jiro se digne a abrir os olhos, não e? O senhor trouxe os charutos, quero crer.
Cavalheiro 1: Oh, não. Esperava ser obsequiado com um dos seus.
Cavalheiro 2: Oh, não. Nos dias de hoje não posso conceder-me estes luxos.
(ELES SAEM.)
Coro: Viva Jiro! Vida longa, viva Jiro!
(OS GRITOS E A BANDA DE METAIS DESAPARECEM NA DISTANCIA. O MEDIC
O ILUSTRE ENTRA. ELE USA UM JALECO PRETO. DOIS MEDICOS ACOMPANHAM-NO. ELES SENTAM-SE EM TORNO DA MESINHA E INICIAM UMA DISCUSSAO.)
Medico Ilustre: Shhh… Nosso lider ainda dorme.
Medico 1: Ainda dorme.
Medico 2: Ainda dorme.
Medico Ilustre: Enquanto ele dorme, temos de tomar uma decisão vital. Vou fechar meus olhos e seguir meus dedos. Estamos acordados? (PAUSA) Toquei algo.
Os dois Medicos: Tocou algo.
Medico Ilustre (ABRE OS OLHOS, OLHA: E O FRASCO DEIXADO PELOS DOIS CAVALHEIROS.): Veneno!
Os dois Medicos: Veneno!
Medico Ilustre: Ao que tudo indica, afinal, a eventualidade que eu encarava com tanta apreensão não deve ser evitada. Como os senhores indubitavelmente estão a par, sigo o metodo denominado Terapia Acidental, e eu ficaria extremamente penhorado aos senhores por sua coobrigação. Em suma – omito as explanações cientificas e seus detalhes – estou convicto da validade da hipotese segundo a qual, em casos de risco extremo, e cientifico calcar-se em indicações acidentais. Este metodo permite ao medico determinar de antemão, segundo as leis da probabilidade, o sucesso ou fracasso da terapia. Neste exato momento, por mero acidente, minha mão tocou neste veneno que, por alguma razão, aconteceu ter sido deixado exatamente neste lugar. Segundo minha teoria, isto significa que a unica coisa requerida pelo paciente que temos diante de nos é veneno.
Medico 1: E extremamente improvavel que em qualquer coisa que diga o senhor possa estar equivocado.
Medico 2: Todos os academicos da Faculdade de Medicina desta Universidade tomarão seu diagnostico como lei.
Medico Ilustre: Cavalheiros, estamos diante de uma situação deploravel. Nosso Jiro, nosso lider deve tomar o veneno. E esta a situação com que nos defrontamos.
Medico 1 (APOS CONFERENCIAR COM O SEGUNDO MEDICO.): Devo dizer, um diagnostico rigorosamente cientifico.
Medico 2: Fora de qualquer duvida. Nossas tradições academicas não podem ficar a merce de considerações politicas.
Medico Ilustre: Cavalheiros, rejubilo-me do fundo de meu coração com a confianca que me dedicam. Em breve nossa patria recorrera a ação. A esta altura um lider adormecido não possui poder algum. Em verdade, desde que surgiu na cena politica, ate o momento, ate este exato momento, nosso lider não cessou de dormir. Os unicos a estarem a par deste segredo, deste grande segredo nacional, somos eu proprio e dois ou tres encarregados das questões de estado. Um sem numero de substitutos sempre – observem bem, senhores, sempre – atuaram em seu lugar e obraram para manter o poder politico deste lider. A nação poderia ser comparada a uma rica senhora que comparece a festas portando uma imitação perfeita de um colar de brilhantes que ela mantem guardado no cofre.
Medico 1: Atenção! Atenção!
Medico 2: Seu entusiasmo juvenil servir-nos-a como inspiração imorredoura.
Medico Ilustre: A era de farsas e imposturas chegou ao fim. Nossa patria está prestes a rebelar-se, e a ronronante maquinaria ja comecou a avancar. O motor de nossa pujanca não está em nosso lider nem nos que o rodeiam, mas na juventude, no poder da juventude una e unida.
Medico 1: Fascinante!
Medico 2: Possui o verdadeiro fervor de um cientista.
Medico Ilustre: A maquinaria ja comecou a avancar. Um lider adormecido não nos é necessario. é necessario que o ditador adormecido morra.
(OS DOIS MEDICOS APLAUDEM. JIRO ACORDA E SENTA-SE NA CAMA.)
Jiro: O que é isso? O que que está havendo? Você ai, o velho, me diga.
Medico Ilustre: Esta é a hora da morte de nosso lider. Autorizamos a presenca daqueles que lhe eram mais proximos.
(ENTRAM A BELEZA E AS TRES DANCARINAS. ESTAO VESTIDAS DE PRETO, SEUS OLHARES ESTAO BAIXOS. ENTRA O SECRETARIO PARTICULAR. TODOS SENTAM-SE EM TORNO DA CAMA COM POSTURAS REVERENTES.)
Jiro: Essa é boa! Que que está havendo com todo mundo? Por que que de repente todo mundo ficou quieto? Ei! (CUTUCA UMA DAS DANCARINAS.) Essa não: chorando! Que que tem de triste? Gente mais doida!
Medico Ilustre: Viemos dizer adeus ão nosso lider.
(TODOS SE PROSTRAM.)
Jiro: Pronto, todo mundo quieto de novo. Ei, que que está havendo com você, minha mulher querida, meu lirio em flor? Me desculpe por ter matado o nenem.
Medico Ilustre: Um copo com agua.
Medico 1: Sim, senhor.
Medico Ilustre: Queira tomar este remedio.
Jiro: E o que é “este remedio”?
Medico Ilustre: Vamos, coragem. Estamos todos velando os seus derradeiros momentos.
Jiro: Não quero, não. Deixa de piada. Eu não quero morrer.
Medico Ilustre: Rogo-lhe que não proceda como uma crianca. Encare o seu destino como homem.
Jiro: Teimoso, você! Já disse que não quero morrer.
Medico Ilustre: Estes são os derradeiros momentos de nosso lider. Rogo-lhe que proceda com decoro.
Jiro: Eu não quero morrer. Vocês, facam esse cidadão parar com isso. Mulher não serve para nada, nem nessas horas.
Medico Ilustre: Este não é o momento para o senhor denegrir as mulheres. Vamos, esvazie o copo sem maiores delongas.
Jiro: Não. Não, e ponto final.
Medico Ilustre: Neste caso – impossivel evitar – sou forcado a convence-lo de que deve beber, a fim de que sejamos poupados de uma cena das mais desagradaveis. Por obsequio, queiram retirar-se. Confiem a mim esta tarefa. Reconheco que gostariam de estar presentes a seus derradeiros momentos, mas sou forcado a pedir-lhes que se retirem.
(TODOS SAEM, EXCETO O MEDICO ILUSTRE.)
Medico Ilustre: Bem, Jiro, você está me ouvindo? Vou convence-lo. Ouca em silencio. Somos espiritos da cidade de Kantan. Suponho que você saiba o que isto significa. E nossa norma absoluta: todo aquele que durma sobre este travesseiro deve atingir a iluminação. Em tempos idos, houve um homem que sonhou durante toda a sua vida enquanto um caldeirão de sopa era cozido para ele, e isto fez com que ele percebesse a ausencia de significado da vida. A mesma coisa continua a ocorrer hoje em dia. Todo mundo vive docil e obedientemente toda uma vida enquanto sonha. Adormecidos, todos sempre viveram sonhos. Por isto, a fim de agucar a percepção da futilidade da vida, quando despertam de seus sonhos, a eles é oferecido o elixir da imortalidade – o que está no sonho no qual eles se tornam Imperadores. E minha função oferecer o elixir. Todos os outros respeitaram as normas. Mas e você? Desde o inicio você sequer tentou viver, não foi? Em você não existe a menor particula de uma natureza humana normal. Mesmo em seus sonhos, você rejeitou, você completa e absolutamente rejeitou a vida. Estive atento a isto todo o tempo.
Jiro: Mas claro, meu velho. A gente é livre, inclusive nos nossos sonhos. Se a gente tenta viver, ou se a gente tenta não viver, isso não é da sua conta. Ou será que é?
Medico Ilustre: Sua atitude não é exatamente o que se poderia chamar de polida.
Jiro: Não estou dando a menor bola para ser ou não ser.
Medico Ilustre: Mas eu estou. E não há meio de fazer com que um louco como você compreenda a futilidade da vida. Noutras palavras, não consigo cumprir o meu dever. Quando as coisas atingem este ponto, eu definitivamente não posso traze-lo de volta para a vida. Seria violar os meus deveres sagrados.
Jiro: Pode falar a vontade, mas eu não quero morrer.
Medico Ilustre: Contradição! Uma contradição! Seu argumento carece de qualquer consistencia logica.
Jiro: Por que?
Medico Ilustre: Porque em momento algum você tentou viver. Você passou morto pela vida. Como pode afirmar que não quer morrer?
Jiro: Pois é, mas eu quero viver.
Medico Ilustre: Por favor, beba isto primeiro e depois pense nestas idiotices.
Jiro: Não. Eu quero viver.
(JIRO, QUE ESTIVERA ESPERANDO PELA OPORTUNIDADE, SUBITAMENTE AR
REBATA O VENENO DO MEDICO ILUSTRE E ATIRA-O NO CHAO. O VELHO DESAPARECE COM UM GRITO. O PALCO ESCURECE. APOS UMA PAUSA, O “SHOJI” ILUMINA-SE LIGEIRAMENTE, EM RESISTENCIA: JIRO DORME COMO NO INICIO. A LUZ AUMENTA GRADATIVAMENTE. OUVE-SE UM CHILREIO TUMULTUADO DE PASSAROS DO LADO DE FORA, NO JARDIM. ENTRA KIKU. ELA ACORDA JIRO, SACUDINDO-LHE OS OMBROS.)
Kiku: Vamos, acorda, patrãozinho.
Jiro: Humm. Humm.
Kiku: Acorda, vamos. Ah, você estava dormindo com um rosto tão inocente. Igualzinho quando você era bebe.
Jiro: Humm. Humm.
Kiku: Vamos, levanta, anda. A comida ja está pronta; o arroz está quentinho. Você sempre dizia que so comia arroz feito pela Kiku.
Jiro: é de manha, não é?
Kiku: Dia claro. O tempo está lindo.
Jiro: KIiku, eu tive sonhos dos mais fantasticos.
Kiku: (ANSIOSA, BAIXANDO A VOZ.) Será que…
Jiro: “Será”? Não, você se enganou. Eu sou um pouco diferente dos outros. A vida é exatamente o que eu pensava que fosse. Não fiquei surpreso com nada.
Kiku: Se você vai embora, que nem o meu marido…
Jiro: Você bem que queria, não e? Você queria que eu saisse por ai’.
(KIKU ESTá QUIETA.)
Jiro: Você tem que se conformar; esquece o seu marido. Eu não vou a lugar nenhum. Você perdeu a chance de vir comigo. Você perdeu a chance de encontrar o seu marido.
Kiku: Gozado, mas escutar você dizer isso me deixa tão aliviada, tão forte.
Jiro: é isso, Kiku: você está viva.
Kiku: Patrãozinho, você vai mesmo ficar aqui o tempo todo para nunca mais me deixar?
Jiro: Vou. O tempo todo. Você não se importa, não é?
Kiku: Estou tão feliz. Esse quarto acabou servindo para alguma coisa. Fico feliz so de pensar que vou poder ficar com o meu patrãozinho, so nos dois. Parece que a Kiku de dez anos atras voltou a viver.
Jiro: Vou ficar aqui o tempo todo. Talvez até morrer.
Kiku: Vou esquecer o meu marido. Parece que a vida aqui recomeca agora. Eu me pergunto o que é? Nunca teve manha tão exuberante.
(JIRO FICA DE PÉ, ABRE UM POUCO O “SHOJI” E SAI PARA A VARANDA.)
Jiro: Ha-ha, que beleza. Kiku, o jardim está todo florido.
(OUVE-SE UM CHILREIO INCESSANTE DE PASSAROS.)
Kiku: Os botões se abriram?
Jiro: (DO JARDIM.) Olha! Lirios, rosas, violetas, primaveras, marianas. Que beleza. Eles se abriram de repente!
Kiku: (ESPIANDO ATRAVES DA ABERTURA ENTRE OS PAINEIS DO “SHOJI”.) Incrivel! Quem é que podia imaginar uma manha dessas?
Jiro: (SUA VOZ ESTA DISTANTE.) Kiku, onde é que está o poco de lavar roupa?
Kiku: Ali, à esquerda.
Jiro: (MUITO DISTANTE.) Está coberto de flores.
Kiku: Que estranho, que estranho… O jardim voltou para a vida.
CAI O PANO
CATASTROFE – de Samuel Beckett.
CATASTROFE
de
Samuel Beckett.
Traducao
de
Flavio de Campos.
Fevereiro, 1984.
————–
Personagens:
Diretor (D).
Sua Assistente (A).
Protagonista (P).
Lucas, iluminador, nos bastidores (L).
Ensaio.
Retoques finais na ultima cena.
Palco vazio. A e L acabaram de montar a luz; D acabou de chegar. D, numa poltrona, na direita‑baixa; casaco de peles; touca de peles para combinar; idade e fisico nao sao relevantes.
A esta de pe ao lado de D; ela veste um guarda‑po branco; nada sobre a cabeca; lapis preso na orelha; idade e fisico nao sao relevantes.
P, no centro do palco, de pe sobre uma caixa preta de meio metro de altura; chapeu preto de abas largas; camisolao preto ate os tornozelos; descalco; cabeca vergada a frente; maos nos bolsos; idade e fisico nao sao relevantes.
D e A observam P.
Pausa longa.
A ‑ (FINALMENTE) Gosta dele assim?
D ‑ Mais ou menos. (PAUSA) Para que o praticavel?
A ‑ Para a primeira fila ver os pes. (PAUSA)
D ‑ Para que o chapeu?
A ‑ Para ajudar a esconder o rosto. (PAUSA)
D ‑ Para que o camisolao?
A ‑ Para ele ficar todo preto. (PAUSA)
D ‑ Que que ele usa por baixo?
(A SE MOVE EM DIRECAO A P.)
D ‑ Fala.
(A PARA.)
A ‑ Roupa de dormir.
D ‑ Cor?
A ‑ Cinza. (D PEGA UM CHARUTO.)
D ‑ Fogo.
(A VOLTA, ACENDE O CHARUTO, FICA IMOVEL. D FUMA.)
D ‑ Como e a cabeca?
A ‑ Voce ja viu.
D ‑ Eu esqueco.
(A VAI ATE P.)
D ‑ Fala.
(A PARA.)
A ‑ Ficando careca; cabelo ralo.
D ‑ Cor?
A ‑ Cinza. (PAUSA)
D ‑ Para que mao no bolso?
A ‑ Para ele ficar todo preto.
D ‑ Nao devia.
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA PEGA UM BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)
A ‑ Maos expostas.
(ELA GUARDA BLOQUINHO E LAPIS.)
D ‑ Como e que sao?
(A CONFUSA.)
D ‑ (IRRITADO) As maos, como e que elas sao?
A ‑ Voce ja viu.
D ‑ Eu esqueco.
A ‑ Doentes. Degeneracao fibrosa.
D ‑ Que nem uma garra?
A ‑ Pode ser.
D ‑ Duas garras?
A ‑ So se ele fechar as maos.
D ‑ Nao pode.
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA PEGA O BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)
A ‑ Maos abertas.
(ELA GUARDA BLOQUINHO E LAPIS.)
D ‑ Fogo.
(A VOLTA, REACENDE O CHARUTO, FICA IMOVEL. D FUMA.)
D ‑ Bom. Vamos dar uma olhada.
(A CONFUSA.)
D ‑ (IRRITADO) Anda. Solta aquele camisolao.
(D CONSULTA O RELOGIO.)
D ‑ Corre com isso. Eu tenho uma reuniao.
(A VAI ATE P; TIRA O CAMISOLAO.
P SE SUBMETE, PASSIVO.
A RECUA, O CAMISOLAO NOS BRACOS.
P DE PIJAMA CINZA E VELHO, CABECA BAIXA, PUNHOS CERRADOS. PAUSA.)
A ‑ Acha melhor sem? (PAUSA) Ele esta tremendo.
D ‑ Tem coisa demais. Chapeu.
(A AVANCA, TIRA O CHAPEU, RECUA, O CHAPEU NA MAO. PAUSA.)
A ‑ Gosta daquele cranio?
D ‑ Precisa embranquecer.
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA LARGA CHAPEU E CAMISOLAO, PEGA BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)
A ‑ Embranquecer cranio.
(ELA GUARDA BLOQUINHO E LAPIS.)
D ‑ As maos.
(A CONFUSA.)
D ‑ (IRRITADO) Os punhos. Anda logo.
(A AVANCA, ABRE OS PUNHOS, RECUA.)
D ‑ E embranquecidos.
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA PEGA BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)
A ‑ Embranquecer maos.
(ELA GUARDA BLOQUINHO E LAPIS. ELES OBSERVAM P.)
D ‑ (FINALMENTE) Tem coisa errada. (ANGUSTIADO) O que que e?
A ‑ (TIMIDAMENTE) Que tal se… e se a gente… que tal juntar as duas?
D ‑ Nao custa tentar. (A AVANCA, JUNTA AS MAOS, RECUA.) Mais alto.
(A AVANCA, LEVANTA AS MAOS UNIDAS A ALTURA DA CINTURA, RECUA.)
D ‑ Um pouquinho mais.
(A AVANCA, LEVANTA AS MAOS UNIDAS A ALTURA DO PEITO.)
D ‑ Para! (A RECUA.) Melhor. Esta quase. Fogo.
(A VOLTA, REACENDE O CHARUTO, FICA IMOVEL. D FUMA.)
A ‑ Ele esta tremendo.
D ‑ Faz bem para o coracao.
(PAUSA)
A ‑ (TIMIDAMENTE) Que tal uma… pequena… so uma mordaca?
D ‑ Pelamor de Deus! Essa mania de clareza! Todo i pingado ate o infinito! Pequena mordaca! Pelamor de Deus!
A ‑ Certeza de que ele nao vai falar?
D ‑ Nem um pio.
(ELE CONSULTA SEU RELOGIO.)
D ‑ Na hora aga. Vou ver da plateia como e que esta.
(SAI D, PARA NAO APARECER MAIS.
A SE JOGA NA POLTRONA; SE POE DE PE MAL TINHA SENTADO; PEGA UM TRAPO, ESFREGA COM FORCA O ENCOSTO E O ASSENTO DA POLTRONA, JOGA O TRAPO FORA, SENTA DE NOVO.
PAUSA.)
D ‑ (DE FORA, QUEIXOSO) Nao da para eu ver os dedos do pe. (IRRITADO) Estou sentado na primeira fila e nao consigo ver os dedos do pe.
A ‑ (LEVANTANDO‑SE) Vou tomar nota.
(ELA PEGA BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)
A ‑ Levantar praticavel.
D ‑ Tem uma nesga de rosto.
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA PEGA BLOQUINHO, LAPIS; FAZ QUE VAI ANOTAR.)
D ‑ Abaixar a cabeca.
(A CONFUSA.)
D ‑ (IRRITADO) Anda logo. Abaixa a cabeca dele.
(A GUARDA BLOQUINHO E LAPIS, VAI ATE P, ABAIXA‑LHE A CABECA UM POUCO MAIS, RECUA.)
D ‑ Mais um pouquinho.
(A AVANCA, ABAIXA‑LHE A CABECA UM POUCO MAIS.)
D ‑ Aí!
(A RECUA.
D ‑ Bom. Esta ficando bom. (PAUSA) Podia ter um pouco mais de nudez…
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA PEGA BLOQUINHO, FAZ QUE VAI PEGAR LAPIS.)
D ‑ Anda logo! Anda logo!
(A GUARDA BLOQUINHO, VAI ATE P, HESITA.)
D ‑ Mostra o pescoco.
(A ABRE OS BOTOES DE CIMA, ABRE AS GOLAS, RECUA.)
D ‑ As pernas. As canelas.
(A AVANCA, ENROLA ATE ABAIXO DO JOELHO UMA DAS PERNAS DA
CALCA, RECUA.)
D ‑ A outra.
(O MESMO PARA A OUTRA PERNA, RECUA.)
D ‑ Mais alto. Os joelhos.
(A AVANCA, ENROLA AS CALCAS ACIMA DOS JOELHOS, RECUA.)
D ‑ E embranquecer.
A ‑ Vou tomar nota.
(ELA PEGA BLOQUINHO, LAPIS; ANOTA.)
A ‑ Embranquecer toda a carne.
D ‑ Esta quase. O Lucas está por ai?
A ‑ (CHAMANDO) Lucas!
(PAUSA. MAIS ALTO.)
A ‑ Lucas!
L ‑ (DE FORA, DISTANTE) Estou escutando.
(PAUSA. MAIS PERTO.)
L ‑ Qual é o problema, dessa vez?
A ‑ O Lucas está.
D ‑ Black‑out no palco.
L ‑ O que?
(A TRANSMITE EM TERMOS TECNICOS. FADE‑OUT DA LUZ GERAL. LUZ SÓ EM P. A NA SOMBRA.)
D ‑ Só a cabeca.
L ‑ O que?
(A TRANSMITE EM TERMOS TECNICOS. FADE‑OUT DA LUZ SOBRE O CORPO DE P. LUZ SO NA CABECA.
LONGA PAUSA.)
D ‑ Beleza.
(PAUSA)
A ‑ (TIMIDAMENTE) Que tal se ele… que tal se… que tal levantar a cabeca dele… um instantinho… mostrar o rosto… so um instantinho?
D ‑ Pelamor de Deus! Que mais? Levantar a cabeca! Onde e que voce acha que a gente está? Na Patagonia? Levantar a cabeca! Pelamor de Deus!
(PAUSA)
D ‑ Bem. Aí esta a nossa catastrofe. Na bucha. Mais uma e eu me mando.
A ‑ (PARA L) Mais uma e ele se manda.
(FADE‑IN NO CORPO DE P. PAUSA.
FADE‑IN DA LUZ GERAL.)
D ‑ Para!
(PAUSA)
D ‑ Agora… só quero ver eles…
(FADE‑OUT DA LUZ GERAL.
PAUSA. FADE‑OUT DA LUZ NO CORPO. LUZ SO NA CABECA. LONGA PAUSA.)
D ‑ Maravilha! Todo mundo a bater palma de pé. Dá para ouvir daqui.
PAUSA.
ENXURRADA DE APLAUSOS AO LONGE.
P ERGUE A CABECA, FITA A PLATEIA.
O APLAUSO DIMINUI, MORRE.
LONGA PAUSA.
FADE‑OUT DA LUZ NO ROSTO
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